Eles chegam visivelmente animados para os encontros, empunhando uma garrafa e uma misteriosa maleta tipo 007. A garrafa é sempre um exemplar do tipo de vinho combinado para cada reunião. Pode ser um Shiraz de qualquer região vinícola, um mesmo rótulo de Bordeaux de safras diferentes, um espumante brasileiro a ser confrontado com renomados champanhes – as possibilidades são infinitas. Na maleta, trazem suas taças pessoais, no modelo adequado para tornar a degustação a mais prazerosa possível. São empresários, médicos, advogados… representantes, enfim, das mais diversas áreas profissionais da classe média alta para cima. Eles são os amantes de vinho que participam de confrarias, os informais clubes de amigos que se reúnem periodicamente para apreciar a bebida e expandir seu conhecimento sobre ela.
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“As confrarias se popularizaram tanto que é impossível dizer quantas existem hoje no Brasil. Suspeito que já estejam na casa dos milhares”, estima José Osvaldo Amarante, que lidera desde 1983 um dos mais tradicionais clubes de degustadores do país. “Nossa confraria foi a primeira a fazer as provas às cegas, sem identificar o rótulo que estava sendo avaliado”, afirma. Além de Amarante, figuram entre os fundadores dessa confraria pioneira Affonso Hennel, acionista controlador da Semp TCL; o restaurateur Belarmino Iglesias Filho, do Grupo Rubaiyat; Ciro Lilla, da importadora Mistral; Ennio Federico, sócio do site Winexperts; e os já falecidos Saul Galvão, jornalista especializado em vinhos, e Clóvis Siqueira, que foi professor de vinho do Senac.
As confrarias se popularizaram tanto que é impossível dizer quantas existem hoje no Brasil. Suspeita-se que sejam milharesO pontapé inicial para a disseminação do consumo de vinhos finos no país, porém, já havia sido dado três anos antes, com a criação da Sociedade Brasileira dos Amigos do Vinho, a SBAV, que até hoje se mantém ativa, promovendo palestras, cursos e encontros com produtores e importadores para uma centena de sócios. Vale lembrar que nos anos 1980 os entraves para a importação de bebidas eram tantos que os grandes vinhos estrangeiros costumavam desembarcar aqui na bagagem de mão dos viajantes. “Naquela época, os produtores nacionais, com raras exceções, ainda se dedicavam à fabricação de um vinho rústico, vendido em garrafão, e as ofertas em restaurantes se resumiam a algumas marcas chilenas e argentinas”, lembra o advogado Gilberto Medeiros, presidente da SBAV e dono de uma assessoria jurídica que atende personalidades como o apresentador Fausto Silva.
Na virada para a década de 1990, com a abertura do país à importação, o vinho estrangeiro de maior sucesso passou a ser um branco alemão que era comprado a granel e embalado aqui numa garrafa azul. “Era doce e refrescante, na medida para paladares menos apurados, mas foi importante na iniciação dos brasileiros amantes de vinhos. Eu mesmo tomei muito esse vinho”, conta Medeiros.
O grande mérito das confrarias é permitir aos participantes fazer esses ritos de passagem de maneira construtiva e divertida, aprendendo a separar o vinho medíocre do bom, o bom do excepcional, e o bom e barato de um vinho do mesmo nível que custe muito mais.
Amarante lembra-se vividamente do vinho que mais o encantou nas degustações. “Foi um Vega Sicilia 1967 que provei em setembro de 1983. Ele estava tão acima dos demais que foi uma unanimidade entre os confrades, todos o elegeram como o número um entre os vinhos espanhóis provados naquela ocasião”, conta.
É comum também ocorrer o inverso nas degustações: um vinho aparentemente inexpressivo se destacar entre rótulos famosos. Foi o que aconteceu recentemente numa prova às cegas em Bento Gonçalves (RS). “No meio das marcas mais famosas de champanhe, como Don Pérignon, Moët&Chandon e Veuve Clicquot, brilhou um representante aqui do Vale dos Vinhedos, o espumante Estrelas do Brasil. Ficou em segundo lugar, atrás apenas do Don Pérignon”, revela Felix Polo, diretor da vinícola Famiglia Valduga, que participou dessa degustação.
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É no ambiente de uma confraria de vinho que se encontra, também, a solenidade necessária para a prova de exemplares raros, que não teriam o mesmo sabor se experimentados solitariamente. Anos atrás, por exemplo, um excêntrico milionário carioca organizou uma degustação de champanhes centenários, que haviam sido resgatados de um naufrágio e arrematados em leilão. “Alguns estavam imprestáveis, mas outros estavam soberbos”, afirma o chef italiano Danio Braga, que comanda o restaurante e pousada Locanda Della Mimosa, em Petrópolis (RJ), cuja adega estampa a página de abertura desta reportagem. O nome do anfitrião ele mantém em segredo, para não ser riscado da sua seleta lista de amigos.
Discrição, aliás, é uma palavra-chave nas confrarias de pessoas mais abastadas. Uma das mais antigas costuma se reunir às sextas-feiras no restaurante Santo Colomba, em São Paulo, há 24 anos. Dela fazem parte, entre outros, o empresário Affonso Hennel, o construtor Romeu Chap Chap e o médico Silvano Raia, pioneiro dos transplantes de fígado no país. O chef e dono do Santo Colomba, José Alencar de Souza, é avisado sobre o tipo de vinho que será servido nas reuniões e providencia um cardápio especial para harmonizar com a bebida. O sommelier da casa encarrega-se de cobrir os rótulos das garrafas, numerá-las aleatoriamente e levá-las à mesa dos participantes. O chef Alencar, um mineiro especializado em pratos italianos, esmera-se tanto no atendimento aos confrades quanto na blindagem deles à curiosidade alheia. “Eu recebo várias confrarias aqui justamente porque garanto a discrição no serviço do restaurante”, explica.
Embora possam ser feitas na casa de um dos confrades, as reuniões das confrarias geralmente ocorrem nas áreas reservadas de restaurantes conhecidos, nos quais não se cobra a rolha pelo serviço dos vinhos, mas a gorjeta aos garçons costuma ser alta. O desafio mais em voga, ultimamente, é o de identificar exemplares de vinho com bom custo-benefício, já que pagar muito por uma garrafa deixou de ser o único meio de garantir a qualidade do produto. José Bonifácio Sobrinho, o Boni, dono de uma das adegas mais completas do país, sugere aos amantes de vinho francês, como ele próprio, experimentar produtos da Espanha, Califórnia e do Novo Mundo (Argentina, África do Sul e Austrália, entre outros), que estão cada dia melhores. Escolher vinho pelo rótulo é só ostentação, ensina.
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Se toda regra tem exceção, a Confraria dos Publicitários foge do padrão discreto de seus pares – principalmente quando a degustação (seis taças cada um) acaba e os participantes fecham a noite com cerveja. O grupo reúne-se 12 vezes por ano em renomados restaurantes da capital paulista e organiza uma competição em duplas que pontua, nos moldes da Fórmula 1, quem leva o melhor vinho da noite, todos por volta de R$ 500 a garrafa. Os vencedores não pagam o jantar e concorrem a um troféu anual. Acompanhamos uma dessas reuniões no restaurante Piselli, nos Jardins.
“Eu nem bebia. Aí fui para a Itália com minha esposa e amigos e lá eles pediam Tignanello (cerca de R$ 900 a garrafa). Uma hora, um deles me disse: ‘Olha aqui, você bebendo ou não, a conta vai ser rachada em quatro’. Eu falei: ‘Então pode me dar minha taça’. A partir daquele dia, virou hábito. O vinho me deixou mais leve, mais divertido”, conta Marcos Quintella, presidente do Grupo Newcomm e, de fato, um dos mais sorridentes da noite.
A reunião começa com o grupo meio silencioso, conversando normalmente. “No fim está todo mundo falando e rindo alto. Ver essa transformação é muito divertido”, diz o confrade Marcio Oliveira, presidente da Lew’Lara/TBWA.
A confraria foi fundada em 2009 por André “Deco” Rossi, que já ocupou cargos de direção em grandes agências de publicidade do país. Em 2010, após 14 anos de carreira, ele entrou na sala do patrão, Washington Olivetto, e disse que estava indo embora. Iria realizar seu sonho: fazer cursos sobre vinhos fora do país e abrir uma consultoria. Foi o que fez. “Hoje, com o vinho, ganho o mesmo que ganhava no mercado publicitário. E sou muito mais feliz.”