No último ano do século 19, em 21 de fevereiro de 1900, Pietro Maria Bardi nasceu como uma representação dos avanços do próximo centenário. De uma comuna italiana chamada La Spezia, partiu para o mundo, mais especificamente para o Brasil, para se tornar um dos grandes educadores e jornalistas de arquitetura e arte da história.
Seu início estudantil poderia parecer preocupante. Repetiu algumas vezes o ensino básico antes de se formar. Mas nada prejudicou sua capacidade inata de se expressar por meio das palavras e de se posicionar sobre os mais variados assuntos. A escrita estava em tudo, até em sua participação no exército italiano, onde desenvolvia relatos e mensagens da luta armada.
Não demorou muito para que se tornasse jornalista. Falava sobre arte, política e arquitetura, e foi nesse cenário que conheceu sua segunda esposa, a arquiteta Lina Bo, com quem desenvolveu importantes marcos na cultura brasileira.
É difícil dizer se eles tinham alguma ideia do tamanho da influência que teriam no território brasileiro, mas a perspectiva de um cenário próspero e novo na arquitetura do país foi o que os atraiu para uma viagem tão longa. A Europa amargava uma lenta recuperação pós-guerra, enquanto a cena cultural ficava em segundo plano. Assim, em 1946, o casal decidiu fazer uma ousada investida na América do Sul.
Mas eles não partiram de sua terra natal de mãos vazias. Trouxeram para São Paulo um acervo com o qual o Brasil nunca tinha tido contato, uma significativa coleção de obras de arte. Exposições, galerias e bienais invadiram a província paulistana ainda tão acostumada apenas com a arte local. Foi o início da inserção do país no cenário internacional.
LEIA TAMBÉM: A inteligência artificial invade o mundo da arte
Na “Exposição de Pintura Italiana Moderna”, uma das tantas iniciativas culturais que a dupla implementou na cidade, Bardi e Lina Bo conheceram Assis Chateaubriand, o magnata das comunicações no Brasil. A união dos três intelectuais fez nascer algo que Chatô, como também era conhecido, já tinha idealizado há muito tempo: o Museu de Arte de São Paulo, mais conhecido como MASP.
De 1946 a 1947, São Paulo mergulhou na cultura. Em apenas um ano, as exposições de Bardi e o projeto do museu mudaram o rumo da arte no Brasil. Tempos depois, estudantes o encaravam como um tutor, um mestre da vida. E é dessa forma que o professor de história da arte do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, Nelson Aguilar, ainda o enxerga.
Em 1965, aos 20 anos, o universitário Aguilar conheceu Bardi, com quem passou a conviver e a quem passou a admirar. “Ele era uma espécie de oráculo, alguém que enxergava o futuro”, revela. De aluno de mestrado a professor universitário, cresceu com essa influência e nunca deixou de valorizá-la, lançando um livro sobre o assunto em 2019 pela Editora Unicamp. A obra, intitulada “Pietro Maria Bardi – Construtor de um Novo Paradigma Cultural”, discorre sobre a vida do intelectual italiano com a propriedade do convívio e o embasamento dos estudos.
“Bardi me orientou. Eu estava fazendo meu mestrado e praticamente vivia no Museu da Avenida Paulista. Tínhamos liberdade para falar o que fosse com ele, de arqueologia a arquitetura”, lembra. Segundo o professor, o conhecimento de Bardi era tão vasto que seus alunos nem conseguiam extrair todo conteúdo que desejavam. “Nós nem sabíamos o que perguntar direito para ele, não tínhamos esse nível de informação de hoje em dia. Quando eu penso no tanto de conhecimento a mais que poderia ter obtido, coloco a mão na cabeça…”, desabafa com humor.
Mas o que Aguilar podia, absorvia. Graças ao contato estreito, conheceu as genialidades, generosidades e polêmicas de um Bardi “poliédrico”, como denomina, explicando que o estudioso tinha muitas facetas – do homem que queria democratizar a cultura ao curador acusado de fraude.
Na galeria abaixo, veja 4 tópicos sobre a vida de Pietro Maria Bardi que podem ajudá-lo a entender melhor quem foi essa figura histórica:
-
Divulgação/Acervo- Instituto Lina Bo e P. M. Bardi 1- A importância do acervo do MASP
Embora tenha nascido em 1947, o MASP só se tornou o que conhecemos hoje, na Avenida Paulista, após 20 anos, em novembro 1968. Antes disso, o museu passou por duas sedes onde Chateaubriand trabalhava como jornalista. Essa demora para a mudança de endereço ocorreu por conta da complexa construção do famoso vão, que consumiu 12 anos de obras.
Embora o local não tenha sido sempre o mesmo, muito do acervo fez parte dos primórdios do projeto, como as obras que foram trazidas na primeira viagem de Bardi ao Brasil. Entre 1947 e 1952, o estudioso realizou diversas rotas pela Europa para a obtenção de novos materiais.
Sua jornada não foi em vão. Em pouco tempo, ele foi capaz de apresentar grandes artistas ao Brasil: Cézanne, Van Gogh, Manet, Delacroix, Velasquez, Mantegna e Rafael, por exemplo. Para o professor Nelson Aguilar, o feito de Bardi foi simplesmente inédito. “Antes disso, falávamos dos grandes mestres renascentistas, impressionistas e modernos como se fosse a partir de um contato telefônico defeituoso, do qual só se entende algumas palavras e tivéssemos que remontar arbitrariamente o todo.” E o mais surpreendente: essas obras não estavam de passagem, foram presentes eternos que se aclimataram ao Brasil.
“Pra resumir, só conhecíamos arte de ‘figurinhas’, como Pietro dizia. Mudou-se o patamar receptivo da arte brasileira”, revela Aguilar, indicando que esse foi o início da história da arte no país. “Tínhamos uma história local, ninguém lia nada de fora.” Com isso, o país virou de ponta cabeça e São Paulo se tornou uma completa roda gigante cultural, o berço de todo esse avanço.
“Bardi era nosso elo com a arte do exterior. Nós, como estudantes, só teríamos a oportunidade de presenciar tudo aquilo caso tivéssemos dinheiro para viajar – e nós não tínhamos”, relembra. Mas não foi preciso. Como diretor do MASP por 45 anos consecutivos, Bardi tinha independência e uma memória visual de obras de arte absolutamente infalível.
“Ele doou obras para o museu. Escolheu cada uma delas”, diz o professor. Para ele, a oportunidade de ver uma arte original, e não uma reprodução, fez com que o circuito cultural brasileiro borbulhasse com novos estudiosos, artistas e admiradores. “Cézanne é uma coisa cósmica, um portal. Não adianta pegar uma reprodução, colocar na sua frente e esperar que seja igual o original. O quadro tem materialidade, textura, presença… Imagina para um artista brasileiro ver isso na época? Foi uma experiência crucial.”
-
Divulgação/Acervo- Instituto Lina Bo e P. M. Bardi 2- Democratização da cultura
Bardi tinha um sonho. “Ele queria que o museu por ele dirigido tivesse a mesma frequência das partidas de futebol”, conta Aguilar. Criou no MASP um Instituto de Arte Contemporânea para formar designers, técnicos de publicidade, paisagistas, cineastas, historiadores da arte, artistas, vitrinistas etc. “Pensava que o papel da arte não era o de se popularizar, mas sim popularizar o acesso à arte.” Com foco na educação e na busca pela acessibilidade, durante sua gestão o museu não cobrava ingressos.
Aguilar revela que o sonho de Bardi não se realizou 100%, afinal as pessoas ainda não frequentam museus com tanta frequência quanto vão a shoppings ou estádios. Porém, sua atuação na tentativa de disseminar a cultura simplesmente não pode ser classificada como um fracasso. Ele conseguiu formar uma nova classe artística, abrir o Brasil para o exterior e fazer do MASP um lugar interessante e promissor. “Ele tornou o museu atraente, sem isso não haveria a sede na Avenida Paulista. O interesse dos estudantes também contou, os cursos viviam cheios”, explica o professor.
Para ele, existem dois fatores que funcionaram plenamente no país e criaram a cultura como a conhecemos atualmente: as bienais de São Paulo e o MASP. “Nossa cultura hoje em dia é produto dessa convergência.”
-
Divulgação/Acervo- Instituto Lina Bo e P. M. Bardi 3- Campanhas de difamação acusaram suas obras de fraude
Um dos assuntos que sempre foi peça central das polêmicas envolvendo o nome de Bardi era a acusação de que suas obras eram uma fraude.
Tudo começou por conta das peças que trazia das viagens. Elas eram tão surpreendentes que se iniciou uma campanha levantando suspeitas sobre sua originalidade. Aguilar conta que a reação de Bardi foi imediata. “Ele organizou mostras itinerantes nos principais museus europeus e norte-americanos. A imprensa internacional repercutiu entusiasticamente. Em Paris, a exposição na Orangerie foi inaugurada pelo presidente da república francesa e o público local se escandalizou ao perceber que as quatro filhas do rei Luís XV, pintadas por Jean-Marc Nattier, moravam em São Paulo.” Com esse tipo de iniciativa, calou muitos daqueles que duvidavam de seu acervo.
Mas, infelizmente, os imbróglios não pararam por aí. No início dos anos 1970, o pintor espanhol Joan Miró endereçou uma carta ao próprio Bardi onde negava a autoria de uma obra exposta no museu, o que ressuscitou a polêmica. A pintura em guache foi imediatamente retirada, mas histórias sobre falsificações continuaram surgindo em sua trajetória.
Para o intelectual, o momento de maior glória foi a compra de um quadro que ele jurava ser do renascentista Rafael, que muitos alegavam ser apenas da escola do pintor. “Se fosse da escola, uma obra que poderia valer US$ 10 milhões valeria US$ 2”, explica o professor. Bardi tinha certeza que se tratava de uma pintura original e, depois de um tempo, documentos que provavam sua crença foram encontrados. “Isso para ele foi uma espécie de resposta para aqueles que falavam que ele trazia réplicas”, conta. A obra “Ressurreição de Cristo”, de Rafael, ainda faz parte do acervo permanente do MASP.
-
Divulgação/Acervo- Instituto Lina Bo e P. M. Bardi 4- A relação de Bardi e Lina Bo
Casado com a famosa arquiteta Lina Bo, Pietro Maria Bardi é, muitas vezes, ofuscado pelo nome da esposa. Para responder a essa questão, o professor ressalta o fato de que os dois, juntos, disseminavam a cultura em um país que estava se abrindo para os avanços nessa área.
Se no caso de Bardi o feito já era extraordinário, Lina Bo tinha um atenuante forte e importante: “A arquiteta abriu o panteão feminino arquitetônico”, revela. Além de grande artista, ela se tornou uma figura feminina marcante na história cultural do país, uma das primeiras a se destacar no meio e ser reconhecida.
Além disso, junto com o marido e com Assis Chateaubriand, Lina participou da criação do museu da Paulista. O famoso “vão do MASP” foi uma criação intencional e inteligente da arquiteta. O terreno onde o museu foi instalado tinha, como condição, que jamais escondesse a paisagem para a Avenida Nove de Julho, que dava vista para o centro e a Serra da Cantareira. Sendo assim, como num toque de mágica arquitetônico, Lina apresentou um projeto onde era possível ver toda a paisagem preservada a partir de um grande vão.
Em conjunto, Lina Bo e Bardi criaram o museu mais importante do Brasil e uma vida de companheirismo. Entre 1946 e 1992, ano de falecimento da arquiteta, fizeram da arte e do MASP uma lua de mel duradoura. Nelson Aguilar revela um texto em que Lina descreve sua relação com o marido: “Admirado desde menina-soquete no tempo do Liceu Artístico de Roma. Pietro era importante, moderno, promovia as artes, era o maior jornalista italiano. Namoramos e casamos”.
1- A importância do acervo do MASP
Embora tenha nascido em 1947, o MASP só se tornou o que conhecemos hoje, na Avenida Paulista, após 20 anos, em novembro 1968. Antes disso, o museu passou por duas sedes onde Chateaubriand trabalhava como jornalista. Essa demora para a mudança de endereço ocorreu por conta da complexa construção do famoso vão, que consumiu 12 anos de obras.
Embora o local não tenha sido sempre o mesmo, muito do acervo fez parte dos primórdios do projeto, como as obras que foram trazidas na primeira viagem de Bardi ao Brasil. Entre 1947 e 1952, o estudioso realizou diversas rotas pela Europa para a obtenção de novos materiais.
Sua jornada não foi em vão. Em pouco tempo, ele foi capaz de apresentar grandes artistas ao Brasil: Cézanne, Van Gogh, Manet, Delacroix, Velasquez, Mantegna e Rafael, por exemplo. Para o professor Nelson Aguilar, o feito de Bardi foi simplesmente inédito. “Antes disso, falávamos dos grandes mestres renascentistas, impressionistas e modernos como se fosse a partir de um contato telefônico defeituoso, do qual só se entende algumas palavras e tivéssemos que remontar arbitrariamente o todo.” E o mais surpreendente: essas obras não estavam de passagem, foram presentes eternos que se aclimataram ao Brasil.
“Pra resumir, só conhecíamos arte de ‘figurinhas’, como Pietro dizia. Mudou-se o patamar receptivo da arte brasileira”, revela Aguilar, indicando que esse foi o início da história da arte no país. “Tínhamos uma história local, ninguém lia nada de fora.” Com isso, o país virou de ponta cabeça e São Paulo se tornou uma completa roda gigante cultural, o berço de todo esse avanço.
“Bardi era nosso elo com a arte do exterior. Nós, como estudantes, só teríamos a oportunidade de presenciar tudo aquilo caso tivéssemos dinheiro para viajar – e nós não tínhamos”, relembra. Mas não foi preciso. Como diretor do MASP por 45 anos consecutivos, Bardi tinha independência e uma memória visual de obras de arte absolutamente infalível.
“Ele doou obras para o museu. Escolheu cada uma delas”, diz o professor. Para ele, a oportunidade de ver uma arte original, e não uma reprodução, fez com que o circuito cultural brasileiro borbulhasse com novos estudiosos, artistas e admiradores. “Cézanne é uma coisa cósmica, um portal. Não adianta pegar uma reprodução, colocar na sua frente e esperar que seja igual o original. O quadro tem materialidade, textura, presença… Imagina para um artista brasileiro ver isso na época? Foi uma experiência crucial.”
Facebook
Twitter
Instagram
YouTube
LinkedIn
Baixe o app da Forbes Brasil na Play Store e na App Store.
Tenha também a Forbes no Google Notícias.