O ser humano sempre foi fascinado pela natureza selvagem, por pisar onde poucos estiveram, pelas últimas fronteiras terrestres. A disputa para ser o primeiro homem nos polos, no início do século passado, é uma das histórias de exploração mais emocionantes de que se tem notícia. Assim que o “The New York Times” manchetou que o norte-americano Robert Edwin Peary alcançara o Polo Norte em 1909 (polemizando com Frederick Cook, que dizia ter chegado antes), estava dada a largada à corrida ao Polo Sul, que tinha como favorito o britânico Robert Falcon Scott. Mal sabia ele, no entanto, que o norueguês Roald Amundsen iria atacar o sul também – de fato, nem a própria tripulação do barco de três mastros Fram sabia: foi só ao saírem da última escala, na Ilha da Madeira, que Amundsen avisou aos seus 19 homens que não iriam mais ao Polo Norte. A bordo do Terra Nova, Scott zarpou com 65 homens, oito dias após o Fram. Exímio esquiador e com cachorros na equipe, Amundsen foi o primeiro a chegar, em 14 de dezembro de 1911, cinco semanas antes de Scott, que levou pôneis. Depois de encontrar a bandeira norueguesa tremulando no Polo Sul, o inglês e quatro de seus homens morreram com o frio da volta, a poucos quilômetros de onde estavam guardadas as provisões, surpreendidos por uma piora drástica nas já terríveis condições climáticas. Scott escreveu em seu diário até a última vela apagar, e ele congelar.
Cento e dez anos mais tarde a Antártica e o Ártico se consolidam como destinos de uma nata de viajantes que já conhece boa parte do globo e busca regiões pouco exploradas, ar puro, natureza intacta, fauna surpreendente – tudo isso longe de aglomerações. E, se a pandemia adiou as saídas da temporada 2020, a procura para as expedições de alta latitude em 2021 e 2022 já começou, motivada pela inauguração do Ultramarine, o navio mais novo do segmento, da Quark Expeditions, empresa pioneira no turismo polar. Os cofundadores Lars Wikander e Mike McDowell levaram o primeiro grupo de turistas para o Polo Norte em 1991, no quebra-gelo nuclear russo Sovetskiy Soyuz. A primeira circum-navegação turística da Antártica é de 1997.
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Com dois helicópteros a bordo, uma frota de 20 botes Zodiac, dois restaurantes bem espaçosos, sauna, spa, fitness center e quatro pontos distintos de embarque e desembarque dos 199 passageiros, o Ultramarine (128 m de comprimento) já está com agenda cheia para os próximos anos. Para o sul, destaque para o roteiro Epic Antarctica: Crossing the Circle via Falklands & South Georgia, de 21 de janeiro de 2021 a 12 de fevereiro de 2021, 23 dias por US$ 79.995 (por pessoa, na Ultra Suite). Sentido norte, o destaque fica com Best of Western Arctic: Canada & Greenland, de 14 de setembro a 3 de outubro de 2021, 20 dias por US$ 43.995 (por pessoa, na Ultra Suite). Além de serem oportunidades de vislumbrar animais como pinguins, baleias, ursos e morsas, emoldurados por icebergs, a programação conta com voos panorâmicos, pousos de helicóptero em locais remotos para trekking, caiaque, stand up paddle e mergulho nas águas geladas.
Gaúchos de Porto Alegre, Zelfa Silva e o marido Gunnar se apaixonaram de tal maneira pela Antártica em viagem realizada nas férias de 1997 que decidiram que iriam trabalhar com turismo voltado só para essa região – três anos depois, já levavam 40 brasileiros. Diretores da agência Antarctica Expeditions, filiada à IAATO (International Association Antarctica Tours Operators), o casal tem percebido o aumento de mais de 10% de crescimento por ano desde o início dos anos 2000. “O aumento só cresce, pois é um destino único e de total natureza, como se fosse um documentário da National Geographic ao vivo por vários dias. É cada vez maior a demanda de visitar um lugar pouco conhecido, aonde é impossível chegar sozinho”, comenta Zelfa.
AQUECIMENTO GLOBAL: NOVAS ROTAS
Se por um lado a circum-navegação da Antártica atrai turistas do mundo inteiro desde o final da década de 1990 com o apelo de visitar sítios históricos e bases científicas, o turismo no Ártico tem descoberto rotas traçadas graças ao derretimento de grandes massas de gelo causado pelo aquecimento global. Novos itinerários estão costurando trechos da costa da Groenlândia e trânsito entre as passagens Noroeste e Nordeste (conexões marítimas que ligam o Atlântico ao Pacífico).
As novidades acima do Círculo Polar Ártico também chamam atenção com a abertura de localidades até então inacessíveis na época da União Soviética, como Novaya Zemlya, no Mar Kara, Severnaya Zemlya (último grande território descoberto na Terra – em 1913, só mapeado em 1932), no Mar Laptev, e Franz Josef Land (a 900 km do Polo Norte), a nordeste do arquipélago norueguês de Svalbard.
A base para explorar o Ártico russo é Murmansk, a maior cidade acima do Circulo Polar, com mais de 300 mil habitantes. É de Murmansk que zarpa a expedição de 14 dias rumo ao Polo Norte, a bordo do quebra-gelo soviético 50 Years of Victory (leva helicópteros; US$ 48.995 por pessoa na suíte Arktika). Com dois reatores nucleares que geram 75 mil hp, o barco de 150,7 metros de comprimento precisa de quatro a seis dias para rasgar o gelo – às vezes com mais de 2,5 metros de espessura – até a latitude 90º. Lá, além de brindar com champanhe, você pode subir a 30 metros em um balão de ar quente para ter uma visão inacreditável de uma esquina do globo muito improvável. Do solo congelado, beira o surrealismo a imagem do navio estacionado no piso branco, ao lado do balão, e o pessoal ali, curtindo um churrasco no Polo Norte.
Por mais que a notícia da temporada de inauguração do moderno barco Ultramarine cause frisson no mercado de turismo, a experiência de desbravar as regiões polares com os navios quebra-gelo, adaptados para o turismo de luxo, deixa muita saudade em quem já teve tal oportunidade, como é o caso do engenheiro civil gaúcho Carlos Eduardo Trois Miranda, de 62 anos, proprietário da Omega Engenharia, que foi para a Antártica com a mulher Lucia Miranda, também engenheira, em 2009. A bordo do Kapitan Khlebnikov, saiu de Ushuaia (Argentina), atravessou a Passagem de Drake e chegou à Península Antártica, onde, de helicóptero, foi acompanhar a rotina da colônia de pinguins-imperadores em Snow Hill.
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“Realmente aconteceu uma conexão com o navio. Você sente a diferença quando viaja em uma embarcação assim, como o Kapitan Khlebnikov, um navio que tem história, que é utilizado para orientar e apoiar navios mercantes nos mares ao norte da Rússia, nos locais mais frios e inóspitos do globo”, explica Carlos. “Entre os momentos mais especiais, além da visita à colônia, foi muito marcante quando o navio ficou mais de um dia preso no gelo e precisou esperar a mudança de direção do vento para, vagarosamente, conseguir quebrar o gelo e abrir um canal para sair do lugar. Foi emocionante – e tenso.” Carlos planeja voltar à Antártica – mas antes quer pôr os pés na calota polar norte. “São lugares de conexão consigo mesmo e com o planeta; mais contato com a natureza. Atualmente há um aumento de interesse em viagens polares, pois o ser humano volta ao básico quando as coisas apertam.”
SEMICIRCUM-NAVEGAÇÃO DA ANTÁRTICA
Dar meia volta ao mundo, beirando o continente antártico, é a maior epopeia polar disponível para um turista. A cirurgiã pediátrica paulistana Daniela Silvestre, de 46 anos, pós-graduada em Medicina de Expedições em áreas remotas pelo Royal College of Physicians and Surgeons of Glasgow, tinha interesse em mergulhar profundamente na história polar. No início de 2020, embarcou na Nova Zelândia para uma aventura que deveria levar 32 dias até Ushuaia, mas que acabou durando 40, e foi parar em Montevidéu, graças ao fechamento dos portos causado pela pandemia. “Da Nova Zelândia, ficamos quatro dias navegando nas ilhas subantárticas antes de irmos ao continente. Na Antártica, estivemos em Cape Adare, local da primeira habitação. Em seguida, mais quatro dias até a Ilha de Ross, em McMurdo Sound, onde estão as cabanas de [Robert Falcon] Scott, de 1901 e de 1910; [Ernest] Shackleton, de 1907, e a Hillary Hut, de 1957, que serviu de apoio para a primeira travessia mecanizada da Antártica. Do Mar de Ross, seguimos para o local onde [Roald] Amundsen aportou para chegar ao Polo Sul geográfico em 1911, depois a Baía das Baleias, e subimos até o Uruguai”, detalha Daniela, que começou a sonhar com a ida ao continente gelado em 1991, após a primeira invernagem de Amyr Klink, com o Paratii, na Baía Dorian.
A saga do começo de 2020 foi a segunda jornada polar de Daniela. Em 2016, ela participou de uma ocasião especial: a Shackleton Centenary Expedition, que saiu de Buenos Aires e passou pelos locais onde o Endurance fez história. O explorador britânico Sir Ernest Shackleton (1874-1922) tentou se transformar no primeiro homem a atravessar a pé a Antártida. O navio Endurance, porém, foi engolido pelo gelo no Mar de Weddell em 1915 e lançou Shackleton ao desafio de enfrentar 1.300 km em um bote, atravessar a pé a ilha Geórgia do Sul e conseguir ajuda para salvar toda a tripulação. “Tínhamos descendentes dos sobreviventes do Endurance a bordo. Foi uma viagem muito marcante.”
Assim como Carlos, Daniela já sabe qual sua próxima meta polar. “Quero chegar ao Polo Sul geográfico andando, em um projeto chamado Last Degree South, que significa caminhar o último grau de latitude sul, indo do paralelo 89 ao 90.” Para a cirurgiã, ir à Antártica é uma viagem muito introspectiva e de autoconhecimento – e que ela recomenda com ênfase, por ser “o local mais deslumbrante do mundo.”
Veja, na galeria abaixo, imagens de roteiros de turismo polar:
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Divulgação Esculturas naturais de gelo no fiorde Bernstorff, na costa leste da Groenlândia
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Acacia Johnson A fauna é uma das principais atrações dos roteiros polares
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Acacia Johnson O Ultramarine, da Quark Expeditions, com dois helicópteros e 20 botes
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Acacia Johnson Quebra-gelo russo Kapitan
Khlebnikov, de 122 m,
adaptado para levar 110 passageiros com conforto
e ótima gastronomia
às mais altas latitudes
do planeta -
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Acacia Johnson Quebra-gelo russo 50 Years
of Victory, com 150 m
adaptado para levar 128 passageiros com conforto
e ótima gastronomia
às mais altas latitudes
do planeta
Esculturas naturais de gelo no fiorde Bernstorff, na costa leste da Groenlândia
Reportagem publicada na edição 83, lançada em dezembro de 2020
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