Dessas coincidências da vida: na mesma semana, de 2018, com diferença de poucos dias, Beatriz Milhazes recebe propostas muito semelhantes de duas grandes instituições de São Paulo, sediadas na avenida Paulista. “Eu estava lendo um pedido, quando chegou o outro, ambos propondo uma mostra panorâmica. Aí, tive a ideia: por que não unir os dois? Eles nunca haviam trabalhado juntos, são estruturas bem diferentes, mas deu supercerto. Muito positiva a energia envolvida, todas as equipes com vontade e felicidade de realizar a exposição. Colaboração e cooperação: sentimentos tão importantes nesse período de pandemia.”
Nascia assim a maior exposição individual de um dos mais icônicos nomes do cenário artístico brasileiro atual, montada em dois endereços: Beatriz Milhazes: Avenida Paulista reúne 170 trabalhos produzidos entre os anos 1990 e 2020. No Masp, sob curadoria de Adriano Pedrosa, estão pinturas, esculturas e trabalhos inéditos. Obras de grande dimensão estão no segundo subsolo – do teto, pende a escultura Gamboa, que faz parte do palco da apresentação da Márcia Milhazes Companhia de Dança, em mais uma parceria das irmãs Beatriz e Márcia. A sete quarteirões do Masp, no prédio do Itaú Cultural, sob curadoria de Ivo Mesquita, três andares exibem 80 obras, entre colagens, gravuras e a apresentação de um documentário. Aberta em dezembro, a mostra fica em cartaz até 30 de maio.
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De longa data, os curadores acompanham a produção da artista carioca, nascida em 1960, sempre lembrada por obras vendidas por mais de US$ 1 milhão, como aconteceu em 2008, com O Mágico, arrematado na Sotheby’s, em Nova York, por US$ 1,049 milhão; com O Moderno, que atingiu US$ 1,1 milhão em Londres (em 2011); e Meu Limão, negociado por US$ 2,1 milhões na Sotheby ́s, a obra brasileira mais cara (em 2012). “Uma exposição desse tamanho só é possível graças à colaboração inédita entre duas instituições como o Masp e o Itaú Cultural. É uma oportunidade verdadeiramente única para se compreender o trabalho dessa que é uma das principais artistas brasileiras vivas, com uma obra já consolidada no panorama internacional”, resumiu Adriano Pedrosa. As obras da artista estão em acervos como Centre Pompidou (Paris); Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía (Madri); The Museum of Modern Art (Nova York); Tate Modern (Londres) e Museum of Contemporary Art (Tóquio). Ela é representada pela Pace Gallery, Fortes D’Aloia & Gabriel, Max Hetzler e White Cube. Beatriz Milhazes conversou com a Forbes dias antes da abertura da exposição no Masp, em 18 de dezembro. “Exposição em dois lugares é bom porque faço aeróbica. Fico de um lado para o outro.”
Forbes: Como foi a sua rotina em 2020?
Beatriz Milhazes: Eu estava na Europa em março quando explodiu a pandemia por lá. Hesitei em viajar, mas acabei indo – já levando minhas máscaras japonesas. Era para uma nova tapeçaria que estou fazendo no centro da França. E tinha um encontro com a Taschen, que vai lançar um outro livro ano que vem [2021]. Já usei máscara nessa viagem. Quando voltei ao Brasil foi o tempo de organizar a vida e a equipe para entrar na quarentena. Meu ateliê são duas casas no Jardim Botânico, reestruturamos a parte digital, nos preparamos para ficar dois meses sem pisar lá. Mas, como o Jardim Botânico é deserto – e ficou mais ainda –, resolvi ir para o ateliê, mas não me senti bem.
F: O que aconteceu?
BM: Tinha algo na atmosfera. Pela primeira vez não me senti bem ali, não me senti em casa. Os medos, as incertezas, tudo veio junto. Resolvi, então, experimentar o que a situação estava propiciando: trabalhar em casa, nunca tinha feito isso. Montei um pequeno espaço de desenho, levei lápis, pincel, e fechei o ateliê. Amo estar lá, passo mais tempo lá do que em casa. Mas nesse momento descobri que o ateliê não é a minha casa: é um local de trabalho. Eu quis estar em casa. Levei um pedacinho micro do ateliê pra casa.
F: O que produziu em casa?
BM: Os projetos em lugares variados do mundo não pararam. Nada foi suspenso, só readaptado. Estava com pinturas para terminar no ateliê visando a exposição da China [adiada para setembro de 2021] e para essa mostra no Masp, onde mostro obras realmente novas, que comecei ano passado e terminei na pandemia. Foram seis pinturas e três colagens. Desenvolvi um método em casa, como pensar a pintura, longe do ateliê. Por isso, introduzi o método de sketch. O desenho, como meio, eu nunca trabalhei. O desenho sempre foi uma ferramenta pontual, para momentos específicos. Sempre compro [material para desenhar] e fica guardado. Trabalhei sobre fotos das obras iniciadas e comecei a desenhar em cima delas, formando o pensamento e o que seria o desencadear a partir do momento que eu retomasse o ateliê. Avenida Paulista [obra feita para a exposição] é toda feita em sketch. Poderia ter desenvolvido direto na tela, mas fiz um sketch em um papel que virou uma pintura de 1,90 por 2,40 metros.
F: Você alterou o hábito de produzir à tarde?
BM: Sou uma pessoa que gosta de rotina. Gosto de ordem. Ela me dá liberdade. Eu estava precisando ficar em casa, sem sair, sem viagem. Por isso, incorporei a quarentena facilmente, sem drama. Minha empregada não foi trabalhar por cinco meses. Voltei ao trabalho doméstico, coisa que não fazia há décadas. Foi ótimo voltar a cozinhar, fazer faxina, lavar a roupa. Consegui também a regularidade de três vezes por semana exercício físico com professor online. Simplifiquei tudo ao máximo, para dar mais tempo ao desenho. Meu horário de parte artística segue sendo à tarde. Comecei a me comunicar com os amigos pelo desenho. Não podia encontrá-los no aniversário, então, fazia um desenho de bolo e mandava.
F: Qual envolvimento você já tinha com a avenida Paulista?
BM: Nos anos 80, quando comecei a vir a São Paulo a trabalho, eu era encantada pela cidade e pela Paulista. Essa avenida era o exemplo de tudo o que o Rio não tinha: essa coisa urbana, maciça, a beleza do urbano, os prédios. Com a frequência maior de visitas, São Paulo fez parte da minha vida. Agora, está sendo um reencontro com a avenida, pois estou fazendo tudo a pé, vendo os acontecimentos. O domingo na Paulista, no Masp, é realmente impressionante, uma experiência única.
F: Há quanto tempo faz parcerias artísticas com sua irmã?
BM: Isso é muito interessante. Nos anos 90, comecei a fazer cenários para as coreografias da Márcia. A gente tem uma coisa que nos une que é o barroco. A linguagem da minha irmã está ligada à minúcia de gestos. Em 2004, fiz uma primeira interferência que invadiu o palco – antes, eram mais passivos, cortinas, painéis… Esse era um móbile, com elementos que caíam do centro. Gamboa recebeu a coreografia em 2018 na White Cube. Ideia da minha irmã de apresentar parte da performance ali. Foi um sucesso, e agora vamos fazer de novo.
F: De onde vem o apelido Bola e Bolinha?
BM: Acho que nasceu do Topo Gigio. Eu desenhava com as bochechas inchadas, a gente começou a imitar. Sou Bola por ser a mais velha. Às vezes, meu pai virava Bolão.
F: Onde passaram a infância?
BM: Ela foi bastante rica, principalmente pelas idas a Paraty. A família da minha mãe migrou da Itália para Paraty, minha mãe nasceu lá, a gente ia nas férias, era só a área histórica, isso influenciou o meu interesse por arte popular, barroco, artesania.
F: Por que cursou jornalismo e como seguiu o caminho das artes?
BM: Fiz vestibular pra três faculdades: educação física, porque gosto de fazer exercício, jornalismo e história. Passei nas três e decidi pelo jornalismo. No segundo ano da faculdade, comecei a me decepcionar com o curso. Eu desenhava em casa e minha mãe sugeriu fazer o curso de verão da Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Pensei: “Por que não?”. Nessa época eu dava aula para criança, mas já estava de férias. E, no momento que entrei e fiz a oficina básica, não tive nenhuma dúvida mais. Aquilo lá me deu um clique, parece que recebi uma missão, nunca mais olhei para o lado. Só segui adiante. Tinha 19 anos. Me formei em jornalismo e abri meu primeiro ateliê em 1983.
F: Qual trabalho você expôs em “Como vai você, geração 80?”, no Parque Lage, em 1984?
BM: Cada artista ocupava um espaço da escola. Eu fazia uns anjinhos barrocos, então, pintei um céu, usei as colunas da estrutura, fiz um anjo recortado e pintado em Eucatex. Foi muito marcante, era o fim da ditadura. Foi uma explosão, 120 artistas, a maioria jovens, com a possibilidade de construir e fazer de forma livre o que bem entendessem. Uma quantidade de pessoas inacreditável visitou, multidões. Fiz minha primeira mostra em 1985, mas sabia que tinha um chão pela frente. Só em 1990 aconteceu a minha primeira mostra que me senti assim: agora cheguei em um ponto para explorar o que posso fazer.
Veja, na galeria abaixo, algumas obras de Beatriz Milhazes:
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Vicente de Melo A obra Avenida Paulista
foi produzida especialmente para a mostra no Masp -
Manuel Águas/Pepe Schettino O quadro Meu Limão foi negociado em 2012 por
US$ 2,1 milhões na Sotheby’s e se tornou a obra brasileira mais cara
de um artista vivo -
Reprodução Gamboa, que na atual exposição fará parte de
uma coreografia feita por Márcia Milhazes, irmã de Beatriz -
Pepe Schettino Cebola Roxa (2020)
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Anúncio publicitário -
Modinha (2007)
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Jorge Miño Ilha de Capri (2002)
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Pepe Schettino Benguelê (1998)
A obra Avenida Paulista
foi produzida especialmente para a mostra no Masp
Reportagem publicada na edição 83, lançada em dezembro de 2020
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