“É claro que não bebemos história, mas ela é parte importante de um vinho”, diz Pedro Baptista, enólogo da Adega Cartuxa responsável pela produção do Pêra-Manca, o vinho de quase R$ 5 mil que vende como água no Brasil. Na verdade, o que embriaga os brasileiros no Pêra-Manca tinto não é a sua história real, mas sim uma história que se conta como ligada a ele. Séculos atrás, havia em Évora, no Alentejo, uma área com pedras grandes que balançavam. Teria sido o vinho dessa área, conhecida como Pedra Manca, ou Pêra-Manca, que Pedro Álvares Cabral trouxe em seus navios e, portanto, o vinho oferecido aos nativos na chegada ao Brasil.
O Pêra-Manca da Adega Cartuxa, da Fundação Eugénio Almeida (FEA), no entanto, não é o mesmo da época do Cabral. Não vem do mesmo terreno. Só começou a ser produzido em 1990, quando a FEA recebeu a marca como doação da Casa Soares. Tampouco tem aromas ou paladar parecidos. “Sabemos que os vinhos eram mais doces, tinham menos cor, misturavam uvas tintas e brancas”, conta Baptista. “A associação, no entanto, não é errada. Era um vinho da mesma região, com solo e exposição solar parecidos.”
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Quem visita Évora e a Adega Cartuxa, contudo, bebe uma outra história: a história da muralha que cerca a cidade, do templo romano que sobrevive em seu interior, da Fundação Eugénio Almeida, da família que a constituiu e de sua relação com os cartuxos, uma ordem francesa de monges reclusos.
No século 16, os cartuxos se instalaram no Mosteiro de Santa Maria Scala Coeli (embaixo do qual hoje repousam as garrafas de Pêra-Manca) até serem expulsos de Portugal em 1834, junto com todas as ordens religiosas. O prédio foi depois vendido pelo estado para José Maria Eugénio de Almeida, o primeiro conde de Vilalva, que ali instalou uma empresa agrícola.
Nos anos 1960, seu bisneto, Vasco Maria Eugénio de Almeida, muito católico, restaurou o mosteiro e chamou os cartuxos de volta. Vasco criou ainda a fundação, com o objetivo de fomentar a cultura, as artes, a educação e a espiritualidade na comunidade de Évora. E a fundação criou a vinícola. Os vinhos, lançados depois da morte de Vasco, mas seguindo o que ele tinha planejado, hoje são a principal fonte de renda da instituição.
A Adega Cartuxa, onde hoje se recebem os turistas, funciona em outro prédio, também secular, que igualmente abrigou padres, neste caso, jesuítas. Ali o Pêra-Manca e outros vinhos especiais da FEA, como o Cartuxa e o Scala Coeli, estagiam em carvalho. Ali também estão as talhas de cerâmica tradicionais do Alentejo onde a fundação produz a linha Curtimenta.
Não é apenas a história, porém, que conquista no Pêra-Manca, mas também a complexidade de aromas, a estrutura e a elegância dos taninos desse corte de trincadeira e aragonês. “O Pêra-Manca é especial porque é único”, diz Baptista. “É fruto de uma seleção das melhores videiras feita durante décadas. Além disso, vem de vinhedos velhos, que rendem pouco. Todo o trabalho é feito à mão. Só é produzido em safras muito especiais.”
A safra 2015, que chegou ao Brasil a R$ 4.884,40, rendeu 44 mil garrafas, em média 40% mais do que o normal, pois as condições climáticas foram tão boas que pouquíssimos bagos precisaram ser descartados. Ainda assim, a importadora Adega Alentejana e a FEA decidiram trazer para o Brasil as mesmas cerca de 7 mil garrafas de sempre. “Vamos usar o excedente para abrir novos mercados”, diz João Teixeira, diretor comercial da FEA. “Mas estamos mantendo uma reserva para o caso de os brasileiros pedirem mais.”
Alentejanos de peso
Dúvida Tinto 2011
Um vinho potente, mas extremamente elegante, da vinícola do renomado António Saramago, o enólogo há mais tempo em exercício em Portugal. Um corte de aragonês, trincadeira e grand noir, tem 15% de álcool, mas na boca nem se percebe, tamanho é o equilíbrio.
Tapada dos Coelheiros Garrafeira 2008
Uma ótima oportunidade de experimentar um alentejano de alta qualidade já com bons anos de existência. Também criado por Saramago, este corte de cabernet sauvignon e aragonês já foi eleito pela crítica inglesa Jancis Robinson como o melhor alentejano. É rico em cor, aromas e taninos, mas tudo isso já está amansado pelo tempo. Hoje a vinícola pertence a brasileiros.
Mouchão Tonel 3-4 Tinto 2013
Uma propriedade muito antiga, o Mouchão é conhecido por seus vinhos de alicante bouschet. Este é um vinho bastante ousado com passagem por barricas construídas com outras madeiras, além do carvalho, como o castanho português e a macaúba brasileira. É um vinho granada, fresco, frutado e floral.
Reportagem publicada na edição 91, lançada em novembro de 2021.