A obra da paraense Berna Reale, uma das principais expoentes da performance no país, está toda estruturada em torno da denúncia social. Não é a intelectualidade o que busca esta artista corajosa, ao contrário, os códigos que caracterizam seu trabalho também nas outras modalidades, a fotografia, a instalação e agora, pela primeira vez, a pintura, objetivam uma linguagem acessível ao maior número de pessoas. Berna é uma artista contaminada pelo mundo, é uma artista mais da rua, mais da performance pública, que se nutre da adrenalina da urbe, onde se encontra gente que jamais entrou em museu ou galeria.
Seu entendimento das questões sociais, em particular das mulheres e das minorias, vem de um fato curioso, que a distingue no cenário mundial das artes. Ela se formou em arte, depois trabalhou em instituições voltadas à arte. Coisas do destino, em 2007, a arte a levou a desenvolver um trabalho no interior de uma instituição criminal. Foi a primeira vez que entrou em contato com a perícia criminal. Não tardou, fez concurso público e academia de polícia, e tornou-se perita criminal, sim, isso mesmo. Em 2010 já analisava cenas do crime em Belém do Pará, onde nasceu e vive. Áreas diametralmente opostas, a arte e a perícia criminal? Não para Berna. Esse contraste paradoxal amplia sua visão destemida, aprofunda seu olhar, aguça seu discernimento em relação aos injustiçados na sociedade brasileira. Devido à investigação forense ela não toma conhecimento da realidade, como a maioria de nós, de forma editada, filtrada e até distorcida dos meios de comunicação. Berna vê a realidade nua e crua, vê o corpo estendido no chão, mais um corpo que se vai… É a face real da vida que alimenta sua obra visceral, forte, transgressora, que clama pela nossa reflexão. A Berna Perita e a Berna Artista se somam.
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Uma vez, perguntei a ela sobre o preconceito dos PCs (abreviatura de perito criminal) em relação à Berna artista. Ela respondeu por email: “Sim, o preconceito existe. Sempre há uma desconfiança se o artista tem capacidade científica. Muitas vezes esse preconceito se nota em simples atitudes, em outras é velado. Os colegas de trabalho na perícia, em sua maioria, não entendem os códigos da arte, para eles sou a colega que faz coisas estranhas, que de vez em quando aparece de cabeça raspada ou é vista nos jornais. (…) Encarar a realidade de frente me fez mais sensível, um ser humano que se preocupa mais com o outro, que se cobra para fazer algo pelo coletivo, me tornei muito mais preocupada com a sociedade que antes quando eu era somente artista. (…) A corrupção é a grande fonte de destruição no Brasil em todas as áreas, e a educação e a cultura infelizmente não estão fora desse alcance devastador. Tudo no Brasil está sucateado, saúde, segurança, educação e cultura devido à corrupção sistêmica do país. A corrupção não deixa alocar os recursos para onde eles são necessários: ela é gananciosa, gulosa, devastadora”.
A atual individual da artista, “AGORA: Right Now”, até 23 de julho em nossa galeria de São Paulo, retrata a violência contra a mulher. Algumas fotografias são protagonizadas pela própria Berna. Numa delas, ela está marcada por hematomas e com uma fita vermelha de bolinhas envolvendo seu rosto à maneira de uma máscara fetichista. É “Mina”, título com duplo sentido que se refere à jazida (de violência), ao explosivo e à Minnie, a ingênua ratinha explorada pelo universo Disney. “AGORA: Right Now” resulta de sua experiência dos últimos dois anos trabalhando no presídio feminino CRF (Centro de Reeducação Feminina) na Grande Belém. Em cores inflamadas, pop, imagens brutais clamam por justiça, sintetizam o teatro do absurdo da vida.
Outro artista de nossa galeria que eu gostaria de homenagear este mês é o inglês afrodescendente Isaac Julien, cineasta e fotógrafo, que cria vídeo-instalações. Como a de Berna, a obra de Julien também é investigativa, baseia-se na investigação sobre personalidades afro-americanas proeminentes, como o abolicionista Frederick Douglass (1818-1895), tema da 34ª Bienal de São Paulo. Sua vídeo-instalação filmada em São Paulo e em Salvador, “A Marvellous Entanglement” (2019), retrata a vida de Lina Bo Bardi e traz Fernanda Torres e Fernanda Montenegro, que interpretam a arquiteta em duas fases de sua vida. No dia 1º de junho último, em uma das comemorações do Jubileu de Platina, Julian, que havia sido honrado em 2017 com a Comenda da Ordem do Império Britânico, abreviada como CBE, recebeu agora o título de “Sir” da rainha Elizabeth II por seus serviços prestados à Arte.
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Com colaboração de Cynthia Garcia, historiadora de arte [email protected]
Nara Roesler fundou a Galeria Nara Roesler em 1989. Com a sociedade de seus filhos Alexandre e Daniel, a galeria em São Paulo, uma das mais expressivas do mercado, ampliou a atuação inaugurando no Rio de Janeiro, em 2014, e no ano seguinte em Nova York.
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