Em Feira de Santana, Leite dos Sonhos é nome de confeitaria. Em Veneza, ‘Milk of Dreams’, em inglês, é o tema deste ano da bienal de arte mais antiga e prestigiada das artes visuais. Até 27 de novembro a 59ª edição da Biennale – como todos do meio a chamam – toma emprestado o título do curioso, para não dizer bizarro, livro infantil da pintora surrealista anglo-mexicana Leonora Carrington, que sai do esquecimento para amarrar o evento.
Conforme pedem os tempos atuais, esta é a Biennale do politicamente correto com a curadora ítalo-americana Cecilia Alemani no comando e, pela primeira vez, uma quantidade expressiva de artistas mulheres quebrando paradigmas. Entre elas, as grandes premiadas da edição a inglesa Sonia Boyce e a norte-americana Simone Leigh, ambas afrodescendentes. Leigh é autora da escultura de cinco metros de altura e três toneladas em bronze, ‘Brick House’ (Casa de Tijolo), sobre o poder do corpo da mulher preta como receptáculo do divino, antes instalada no High Line de Nova York.
Voltar a Veneza é um sonho, em especial desta vez em que o artista oficialmente selecionado para representar o Brasil é da nossa galeria. Em meio ao merecido clamor à arte feita por mulheres, Jonathas de Andrade, escolhido por Jacopo Crivelli Visconti, curador da Bienal de São Paulo, está entre os poucos artistas de sexo masculino aplaudido pela crítica internacional este ano. Alagoano de Maceió que vive em Recife, Jonathas é um observador da tragicomédia humana, em especial a do Nordeste.
Sua narrativa utiliza a crítica sócio-política como ferramenta para criar pontes entre as artes popular e contemporânea em instalações, fotografias, esculturas e vídeos que bebem no caldeirão da ficção, da sabedoria popular e do homoerotismo, com uma linguagem poética e irônica que se nutre da dura e surreal realidade do povo brasileiro.
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Deste admirável artista de 40 anos, a obra mais conhecida até hoje é o vídeo ‘O Peixe’ (2016), lançado na 32ª Bienal de São Paulo e apresentado em instituições internacionais como o New Museum em Nova York. Nele um peixe é abraçado com carinho ritualístico por seu pescador, sem dúvida um tema pra lá de curioso. Justamente por isso, aliado à profunda emoção que a obra transmite, mereceu menção no jornal The New York Times pelo incensado crítico de arte Jason Farago.
Ao Pavilhão do Brasil na Biennale, o artista levou a exposição inédita “Com o coração saindo pela boca”, uma compilação de frases idiomáticas, a começar pelo título, e de expressões populares da língua portuguesa brasileira que utilizam partes do corpo humano para expressar sentimentos, atitudes, desejo.
Razão pela qual Jonathas produziu duas esculturas iguais que representam uma orelha gigante, uma emoldurando a entrada do pavilhão, outra à saída do pavilhão. Quem nunca disse “entrar por um ouvido e sair pelo outro”? Os orelhões são uma indireta a quem leva muito a sério a enxurrada de bobagem que infesta os tempos atuais.
No interior do pavilhão, o artista compilou 250 expressões populares, como ‘dor de cotovelo’, ‘pé na jaca’, ‘mão boba’, ‘cabeça nas nuvens’, ‘morder a língua’, ‘fogo no rabo’, ‘nó na garganta’, reproduzidas em verbetes trilíngues em português, italiano e inglês por toda a extensão do espaço expositivo, com algumas delas representadas em peças de parede, vídeo e esculturas. “Costas quentes”, por exemplo, é literalmente uma escultura de um dorso com temperatura elevada, assim como “Cabeça no ar” é isso mesmo, uma cabeça que paira no ar. Segundo ele, estas expressões não só traduzem situações do cotidiano, como “têm ressonância com muito do que está acontecendo no país neste momento”. Tudo com muito humor, ironia e sarcasmo.
“Pingos nos Is”. O Pavilhão do Brasil foi inaugurado em 1966 para a 30ª Bienal de Veneza. Coube aos arquitetos Henrique Mindlin e Giancarlo Palanti projetar sua arquitetura modernista, mas como foi construído por Amerigo Marchesin, histórico colaborador do grande arquiteto italiano do pós-guerra, Carlo Scarpa, a fama da autoria, pelo menos na Itália, acabou indo para Scarpa. Mas o pavilhão é nosso. Cem por cento nosso, assim como a arte de Jonathas de Andrade é 100% brasileira.
Não vamos “bater boca” nem ficar de “sangue quente” ou em “pé de guerra” por isso, certo?
P.S.: Obras-chave da trajetória de quinze anos do artista estarão na mostra panorâmica “Jonathas de Andrade” na Estação Pinacoteca, em São Paulo, de 24.09.2022 a 28.02.2023.
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Com colaboração de Cynthia Garcia, historiadora de arte [email protected]
Nara Roesler fundou a Galeria Nara Roesler em 1989. Com a sociedade de seus filhos Alexandre e Daniel, a galeria em São Paulo, uma das mais expressivas do mercado, ampliou a atuação inaugurando no Rio de Janeiro, em 2014, e no ano seguinte em Nova York.
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