Há nove anos, os suntuosos salões do Museu do Ipiranga não são ocupados por visitantes e a icônica obra de arte “Independência ou Morte”, de Pedro Américo, está longe dos olhares do público. Hoje (6) isso vai mudar, quando finalmente as (novíssimas) portas do edifício-monumento serão reabertas, em tempo da comemoração do bicentenário da Independência do Brasil.
O caminho não foi simples, rápido ou barato. Museu público mais antigo de São Paulo e patrimônio histórico federal, hoje sob administração da USP, ele foi fechado em 2013 por graves problemas estruturais – infiltrações sérias com risco de desabamento do teto, entre outros danos ocorridos desde sua inauguração, em 1890.
A ideia de uma reforma era antiga: “Estamos refletindo sobre a restauração e ampliação desde 2004, são muitos anos de trabalho acumulado”, revela Paulo Garcez, docente e chefe da Divisão de Acervo e Curadoria do Museu do Ipiranga.
As obras começaram de fato em 2019, levando três anos para que um extenso processo de revitalização fosse concretizado. A espera, no entanto, promete valer a pena. “A sociedade irá se reencontrar com um museu modernizado e plenamente acessível, que enfim poderá voltar a cumprir seu papel”, garante o professor sobre a reabertura, com previsão de receber até um milhão de visitantes por ano.
Os números impressionam. Ao todo, foram R$ 235 milhões investidos e 6.800 metros quadrados construídos – o que fez a construção original dobrar de tamanho. Entre as novas áreas, estão um mirante de 360º no topo do edifício, um auditório para 200 pessoas e uma sala de exposições temporárias de 900 metros quadrados no subsolo.
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VISUAL AMARELO APRIMORADO
Apesar dos espaços inéditos, o foco não foi modificar a estrutura já conhecida, mas recuperar o que o museu já tinha de melhor (e que havia se desgastado com o tempo). Considerando a opulência do edifício e dos materiais utilizados no século 19 – como o mármore italiano carrara e os revestimentos importados da França -, o trabalho foi minucioso, explica Garcez.
Um dos maiores exemplos disso são as fachadas. Foi necessário limpar e decapar as antigas camadas de pintura acumuladas que, pela espessura, acabaram por “camuflar” os ornamentos arquitetônicos originais do prédio. “Eram tantas camadas de tinta que a decoração já estava um pouco rasa. Agora ganharam um relevo impressionante”, diz o professor. Tetos e paredes do interior receberam tratamento similar.
Quem vê o edifício hoje já percebe a diferença: os 7.600 metros quadrados de fachadas, colunas, portas e janelas reluzem de longe, revestidos uniformemente por um amarelo vívido. Estudos em laboratório tentaram chegar o mais próximo possível da cor original do século 19 e uma tinta mineral foi desenvolvida exclusivamente para o museu. De acordo com Garcez, essa foi uma das partes mais difíceis e custosas de todo o projeto – mas está longe de ser a única.
OPULÊNCIA NOS MÍNIMOS DETALHES
No interior do prédio principal, os olhares são logo atraídos para a enorme e suntuosa escadaria de mármore Carrara do térreo. A pedra natural branca, extraída na cidade de mesmo nome, na Itália, é uma das mais luxuosas do mundo – o Davi, de Michelangelo, foi esculpido nela.
No Museu do Ipiranga, o mármore aparece esculpido e adornado na escada, de onde se vê uma escultura de Dom Pedro 2º. Estátuas em pedra de outras figuras históricas também decoram o percurso até o segundo andar e o Salão Nobre. O teto é repleto de afrescos e conta com uma novíssima claraboia.
O caminho para as salas de exposição também já chama atenção por onde se anda. Um dos motivos é o piso, decorado com ladrilhos hidráulicos de estampas geométricas coloridas. Os revestimentos originais foram trazidos da França durante a construção do museu, há 130 anos. Na restauração, 1.300 deles foram revitalizados, enquanto outros 700, muito danificados, precisaram ser substituídos.
Para ser fiel aos detalhes, a equipe de obras entrou em contato com a empresa original do material, a franco-alemã Villeroy & Boch, que está em funcionamento até hoje. “Os pisos foram restaurados de forma tão precisa que é praticamente impossível para um visitante comum distinguir quais foram repostos por nós e quais são os originais”, reforça Garcez.
A marcenaria do museu também se destaca, grande parte feita de pinho de riga, uma das madeiras mais nobres do mundo. Todas as 450 portas e janelas desse material, importado da Letônia, foram restauradas e receberam um vidro especial, que também veio do exterior.
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RESTAURAÇÃO DO ACERVO
Outro trabalho extenso envolveu o tratamento de mais de 3.000 objetos históricos e de arte, no primeiro processo simultâneo e em grande escala de restauro do acervo do Museu do Ipiranga. No total, cinco equipes – o próprio laboratório de conservação da USP e quatro grandes ateliês privados de São Paulo – foram mobilizados para a tarefa.
A grandiosa e mais famosa obra da instituição, o quadro “Independência ou Morte”, pintado por Pedro Américo em 1888, teve de ser restaurada no próprio local de exposição, com a ajuda de um andaime. Maior do que as portas e janelas do museu, o quadro de 4,15 metros por 7,60 metros nunca saiu do Salão Nobre.
A última vez em que a tela passou por uma restauração foi na década de 1970, para os 150 anos da Independência. O processo, porém, não foi ideal: “Na época, não era permitida a importação de materiais de conservação adequados, então fomos obrigados a usar tintas nacionais, que não eram as melhores”. Isso fez com que a equipe precisasse, agora, reverter procedimentos anteriores para começar do zero.
O processo envolveu pesquisas junto ao Instituto de Física e Química da USP, que fizeram uma análise das tintas usadas e uma varredura na tela com luz infravermelha. “As tintas têm muitos componentes minerais e era preciso ver quais seriam mais compatíveis com as usadas no quadro, para não haver uma reação que prejudicasse a pintura”, explica o docente. Foram praticamente dois anos de restauro da obra, finalizada no mês de julho com uma última camada de verniz com filtro ultravioleta para conservar suas cores.
A pompa de “Independência ou Morte” fica ainda maior por sua moldura, de madeira revestida em ouro 24 quilates que passou por um delicado processo de restauro. “A folha de ouro é extremamente fina, você sequer pode tocá-la com a mão, só com pincel de pêlo de marta para evitar que o ouro enrugue”.
Outras pinturas famosas também foram profundamente restauradas, como “A Partida da Monção” (Almeida Júnior), “Fundação de São Paulo” (Oscar Pereira da Silva) e “Fundação de São Vicente” (Benedito Calixto). O mesmo aconteceu com a maquete São Paulo, uma versão miniatura da capital paulista no ano de 1841, do holandês Henrique Bakkenist. Toda feita em gesso, ela recebeu tratos como limpeza química, nivelamento das superfícies, reparos e uma nova pintura.
Carroças revestidas de ouro, esculturas, pinturas do teto, moedas e documentos históricos também estão na lista de itens que passaram pelo restauro – dos mais extensos aos mais leves, apenas para manutenção.
Além da restauração das obras originais, a curadoria do museu também fez versões miniaturas de algumas das peças com tratamento tátil. Isso significa que, através de diferenças de relevo e texturas, pessoas com deficiência visual terão a chance de apreciar e entender as obras de arte de forma mais completa.
JARDIM FRANCÊS
Outro componente icônico do Museu do Ipiranga é seu enorme Jardim Francês, em frente ao edifício. Projetado pelo francês Félix Émile Cochet em 1913, o espaço é marcado por seus caminhos retilíneos, formas geométricas e simetria, misturando a flora nativa brasileira com plantas estrangeiras.
Um valor de R$ 19 milhões foi destinado à restauração e recuperação do espaço. “É um restauro difícil, porque o jardim é vivo, é um bem cultural que se transforma todo dia”, comenta Garcez. A tentativa foi respeitar as escolhas originais de paisagismo, usando espécies exóticas selecionadas por Cochet, como ciprestes italianos, tamareiras das Ilhas Canárias e capim dos pampas, vindo da Argentina.
A fonte central, composta por 19 tanques interligados que formam um efeito cascata, será reativada, agora com iluminação especial. Junto a ela, outras duas fontes do projeto original do jardim também foram recuperadas. Um restaurante, food bikes e bicicletário também farão parte do espaço ao ar livre.
REFERÊNCIA FUTURA
Três anos, R$ 235 milhões e muito trabalho depois, Garcez vê a reabertura do Museu do Ipiranga não apenas do ponto de vista do valor sociocultural, mas acadêmico. “A restauração foi uma ação exemplar, de importância para o nosso país. Certamente foi um canteiro de aprendizados para a formação e especialização de profissionais, para futuras obras de monumentos e construções históricas”.
Hoje (6) e amanhã, a entrega será exclusiva para autoridades, convidados e profissionais que participaram da obra. Ele será aberto ao público geral a partir do dia 8, mediante agendamento virtual prévio.
Além das 11 exposições permanentes, haverá uma mostra temporária com o tema “Memórias da Independência” com duração de quatro meses.
SERVIÇO
Endereço: Rua dos Patriotas, nº 100
Horário: Terça a Domingo, das 12h às 17h
Preço: Entrada gratuita até 6 de novembro
Agendamento no site www.museudoipiranga.org.br