Ao som de marolas do oceano Índico, brilham estrelas que já explodiram e não existem mais. Em seguida, são os anéis de saturno que surgem no visor do telescópio de forma tão nítida que parecem pintados à mão. Já é o quinto corpo celeste fisgado no universo pelo único observatório astronômico montado sobre as águas transparentes das Maldivas.
A experiência, de fato, começa na horizontal: deitado em uma estrutura circular de colchões, você passeia pelo céu guiado pelo raio laser do especialista, que amarra histórias astronômicas com questões mais existenciais, como, por exemplo, se nós, humanos, estamos mesmo sozinhos nesta vastidão de luzinhas cintilantes sobre o fundo negro infinito.
Uma brisa leve, champanhe no ponto e petit fours embalam a charla que antecipa a entrada no observatório de três metros de diâmetro, com sua cúpula giratória e o telescópio Research-grade Meade 16” LX200. Cada hóspede que foca a lente, solta uma interjeição particular – em comum, todos deixam escapar um sorriso frente à janela que se abre em outra dimensão.
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Encerrada a viagem espacial, ao pedalar de volta ao bangalô sobre o mar, corpo e mente flutuam extasiados com o desfecho de mais um dia no Anantara Kihavah, localizado em uma das 1196 ilhas (203 habitadas), no Baa Atol (Reserva da Biosfera da Unesco), um dos 26 atóis das Maldivas, arquipélago islâmico esparramado por 900 quilômetros (de norte a sul), ao sudoeste da Índia.
Com 80 villas (42 overwater e 38 na praia), o hotel ocupa uma pequena ilha de 560 metros de comprimento por 270 de largura e fica na região central do país, a noroeste da capital Malé (mais de 150 mil pessoas em uma ilha de 8 quilômetros quadrados). Uma opção para chegar lá, é voar do Brasil para o Qatar (14 horas), conexão Malé (5 horas) e mais 35 minutos de hidroavião em um voo especular sobre o mar manchado por círculos azuis.
O Kihavah se destaca na hotelaria de luxo das Maldivas por três motivos: o exclusivo observatório astronômico; a excelente qualidade do mergulho de snorkel ou autônomo em uma parede de coral vivo (Yellow Wall), que atrai turistas de outros hotéis; e um dos mais celebrados restaurantes subaquáticos do mundo, o Sea, a seis metros de profundidade, com seis mesas e um enorme trânsito de peixes coloridos, tubarões, tartarugas e uma adega com 450 rótulos de vinho de 17 países.
O projeto do observatório é a realização do sonho do maldivo Ali Shameen. Ele é filho de pescador, e foi em alto mar, com o pai, que aprendeu a importância das estrelas, assunto que virou obsessão em sua vida. “Queria ser professor de física ou química, mas o destino preferiu que eu trabalhasse com hotelaria”, conta.
Os primeiros programas de observação celeste para turistas, bem como palestras de Buzz Aldrin (segundo homem a pisar na lua em 1969) sobre a lua, Shameen desenvolveu para o Six Senses Laamu, no sul do país. Contratado pelo Anantara Kihavah em janeiro de 2016, ele recebeu carta branca para criar o primeiro observatório sobre as águas nas Maldivas. Em dois meses, apresentou um projeto de US$ 310 mil. “Apresentei a ideia e eles aprovaram em cinco minutos.” O observatório foi inaugurado dia 31 de dezembro de 2017.
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BANGALÔ DOS SONHOS NAS MALDIVAS
Antes de entrar no detalhe de qualquer atividade, o fato é que o simples desfrute de um bangalô sobre a água, com 267 metros quadrados e piscina privativa, já é motivo suficiente para atravessar metade do planeta. Até na parte de banho da acomodação o mar está presente: seja emoldurado por amplas janelas, seja no fundo transparente da banheira.
Mergulhar no quintal do quarto e ver arraias vira parte da rotina – antes e depois de qualquer programa, o mar chama. Acordou? Pula na água. Chegou de algum passeio? Pula de novo. Pela manhã, há alternativa de pedir o café no quarto, que é servido em uma bandeja que boia na piscina. Desenhado para famílias, o maior bangalô sobre a água tem 1.500 metros quadrados.
Duas ocasiões foram bastante especiais no restaurante subaquático Sea, próximo a um degrau de 20 metros de profundidade. Um café da manhã e uma degustação de vinho, ambas exclusivas. Não arrisco dizer qual gostei mais. Melhor mencionar a completa perda da noção do tempo. Acompanhar o vai e vem de 1.200 espécies de peixes hipnotiza pra valer. Duas horas passam em 15 minutos.
É um lugar realmente especial – e olha que não sou só eu falando. “Os corais aqui são mais preservados, há uma vida marinha muito ativa”, conta a norte-americana Linda Jones, diretora do centro de mergulho, há 1 ano e meio no Anantara, e há 10 anos nas Maldivas. “Não dá para se acostumar com este restaurante, é sempre muito divertido.
Você consegue ver detalhes dos peixes que em um mergulho normal não é possível, pois eles fogem”, explica Jones. Quase no fim do longo (e delicioso) café da manhã, ele aparece, como se nadasse em câmera lenta, tranquilão, um tubarão-de-pontas-negras-do-recife.
Neste mesmo ambiente, num fim de tarde – outro horário de rush dos peixes – degustação de três vinhos (Gessamí Gramona 2018, Bad Boy Garage e Macán Clásico 2016), conduzida pelo indiano Arunkumar Tamilselvan. Ele faz duas viagens por ano para países produtores de vinho para incrementar a coleção de mais de 15 mil garrafas da adega. Uma delas, Arun faz questão de mostrar: Graham’s Ne Oublie, de 1882, rótulo de 656 garrafas produzidas. O especialista conta que foi uma saga conseguir tal bebida. Ao custo de US$ 34 mil, ela será o presente de um hóspede para a sua mulher, que fará 50 anos, no final deste ano.
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Outros amantes do vinho aprovaram o programa certificado WSET (Wine and Spirit Education Trust), lançado em setembro de 2021, e que conta com três degustações de duas horas e um exame final – é o único hotel da Ásia que oferece tal oportunidade. “Lançamos este programa como uma homenagem à cultura de valorização do vinho em nosso resort”, explica o escocês Ross Sanders, gerente geral do Anantara Kihavah. “Nossa elaborada carta de vinhos tem sido premiada pelos principais veículos do setor, como World of Fine Wines e Wine Spectator.”
E, se no café da manhã o destaque foi um tubarão, na degustação happy hour quem deu o ar da graça – e ficou por um bom tempo – foi uma tartaruga enorme, que chegou a acenar ao se despedir.
Além do Sea, há outros cinco bares e restaurantes, três deles que logo entregam a que vieram: Fire, Spice e Sky. O Fire é o oposto do Sea: visual do mar acima da superfície. Cozinha japonesa: no centro de 18 lugares no balcão, uma grelha Teppanyaki. Sushis e sashimis, bifes de Wagyu, frutos do mar e lagostas muito aplaudidas pelos hóspedes. Chefs mostram suas habilidades acrobáticas enquanto delícias são assadas na Teppanyaki.
No Spice, sequência de cinco pratos indianos do chef Prabash Prabakaran, combinados com vinhos selecionados por Arunkumar Tamilselvan – mais um jantar espetacular. Já o Sky é um bar sobre o mar, com dois andares, que funciona como antessala para o observatório astronômico: embaixo, o teto tem pequenos pontos luz que formam constelações; no terraço, os colchões para vislumbrar o céu – drinques e tapas acompanham.
Para o almoço, o Manzaru serve clássicos da gastronomia mediterrânea e faz a vista embaralhar as cores da piscina de 49 metros (a mais longa das Maldivas) com as do Índico.
YELLOW WALL, SPA E TAI CHI
Por mais que o cardápio de esportes aquáticos conte com jet ski, parasailing e caiaque, não é fácil largar o snorkel e a máscara, tamanha a facilidade de acessar a Yellow Wall. Ela tem uma localização privilegiada no canal do atol, com correntes de nutrientes que são um banquete para milhares de espécies.
Basta nadar (ou caminhar) 50 metros no mar para se deparar com os peixes coloridos no coral. A seção vertical do recife vai a 30 metros de profundidade, mas boa parte da comunidade marinha circula no raso mesmo. A parede tem colônias de corais de várias cores, porém, o amarelo e o dourado (mais evidentes no fim da tarde ou à noite) prevalecem.
Quem quer se aventurar em outros pontos, sem problema: basta embarcar no Ocean Whisperer, um veleiro de 42 metros para excursões no arquipélago. Um mergulho clássico (de snorkel) no Baa Atol acontece de junho a novembro: 45 minutos de lancha a partir do Anantara Kihavah levam até a Baía de Hanifaru, onde arraias-jamantas circulam sem dar muita bola aos turistas que se emocionam ao vê-las (eu, inclusive), sobretudo quando elas nadam na vertical e exibem o dorso branco.
Quando contemplada de cima, três estruturas de madeira se destacam na ilha: uma com 42 bangalôs sobre a água; outra com os restaurantes Spice, Fire, Sky e Sea, além do observatório astronômico; e uma terceira, com o Anantara Spa – ali, recebi a massagem Blissful Marma, de 90 minutos, corpo todo (mas há um leque enorme de opções de tratamentos ayurvédicos em programas de até sete dias). Com o rosto encaixado na maca, você fica de frente para uma abertura transparente no chão, podendo ver o movimento do mar (e a eventual passagem de peixes) enquanto relaxa.
A vietnamita responsável por minha massagem também conduziu a última atividade que fiz antes de pegar o hidroavião de volta pra Malé: aula de tai chi chuan, com vista para o mar, óbvio. Nunca tinha feito tai chi, mas talvez por estar embalado por seis dias mágicos, logo me encaixei na fluidez dos movimentos chineses.
Ao terminar, de novo emocionado, encarei o Índico e tive uma profunda consciência daquele instante, daquele lugar. Nossa, que saudade.
Reportagem publicada na edição 101, lançada em setembro de 2022