Sentada em um restaurante à beira-mar no bairro de La Barceloneta, taça de espumante cava na mão, pratos com tapas catalãs espalhados sobre a mesa, Gloria Collell é o retrato do “mediterranean way of life” que a Freixenet busca exportar de Barcelona para o mundo. Coincidentemente ou não, é também o rosto estampado em um dos rótulos da marca, o Mía, voltado para um público jovem – “de espírito, como eu, que tenho mais de 50”, ela diz.
Bagagem ainda nas mãos, a enóloga havia acabado de chegar da ProWein, feira de vinhos na Alemanha. E logo passou a falar do que viu por lá: de embalagens em diferentes tamanhos a bebidas de teor alcoólico reduzido. Como criadora de linhas especiais da vinícola, Gloria vive conectada em tendências e nas inovações que pode incorporar a partir delas. Tudo a ver com o espírito dessa empresa familiar centenária que se fundiu com uma gigante alemã, a Henkell, mas que mantém os pés empoeirados pela terra de Sant Sadurní d’Anoia.
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Foi no município de 12 mil habitantes, na província de Barcelona, que nasceu a Freixenet, marca lançada pelo casal Dolores Sala e Pedro Ferrer em 1911. Hoje, lá funciona a maior fábrica de espumantes de método tradicional (ou champenoise) do mundo, com uma área equivalente a 20 campos de futebol. São nove andares, seis deles subterrâneos, que armazenam milhões de garrafas. Números superlativos que se refletem no trabalho de Gloria no desenvolvimento de vinhos.
“Queremos estar em todos os momentos em que as pessoas celebram”, diz ela, que ocupa o cargo de Internacional Wine Manager and Head of Hospitality and Wine. Mas não dá para apostar a mesmo. “Quando lançamos um produto, são um milhão de garrafas. Se você se equivoca, é um equívoco muito grande”, diz a enóloga.“Com uma marca como a Freixenet, precisamos pesquisar o mercado e aprender muito com o consumidor. Dizemos por aqui que ele é o chefe.”
Tem funcionado. Em 2021, as vendas bateram o marco de 100 milhões de garrafas. “No mundo, de cada dez espumantes abertos, um é Henkell-Freixenet. E, no Brasil, de cada dez espumantes importados, três são nossos”, diz Fabiano Ruiz, diretor executivo da Henkell Freixenet no Brasil. “Fomos de 600 mil garrafas de vinho em 2018 para 2,3 milhões em 2022. E queremos chegar a 4 milhões.
A filial brasileira foi a que registrou o maior crescimento em 2022 – 38% em volume e 37% em faturamento em relação ao ano anterior. Contribuíram para isso espumantes premium como a linha Freixenet Cuvée de Prestige, com rótulos especiais e safrados – entre eles, o Cuvée D.S e o Malvasía, feito com uvas envelhecidas em barricas de madeira durante 20 anos. Também entra na conta o Freixenet Zero Álcool (olha as tendências aí), produzido com uma técnica a frio que retira o álcool minimizando a perda de elementos aromáticos e atende um público crescente de pessoas que restringem o consumo alcoólico.
O Brasil é o nono maior mercado para a empresa, que exporta 85% de sua produção. Na dianteira estão Estados Unidos, Espanha, França, Inglaterra, Alemanha e Japão. “Estamos em um povoado no coração da região de Penedès, mas somos uma marca global”, diz o CFO Thomas Scholl, um dos alemães que se mudaram para a Espanha com a fusão entre a Freixenet e a Henkell, em 2018. Ele conta, meio em tom de brincadeira, que a movimentação resultou em mais alemães querendo ir para a Espanha do que em espanhóis querendo ir para a Alemanha – e o dia ensolarado na Catalunha ajuda a entender a piada.
Mas o fato é que a fusão das empresas resultou em um grupo líder mundial na produção de vinhos espumantes e facilitou o acesso a mercados em que uma ou outra transitavam melhor. Fora juntar características como “pontualidade, estrutura e organização alemãs a criatividade, inovação e energia espanholas” – o que soa um tanto clichê, mas Thomas diz ser verdade, pelo menos em parte, e gerou uma boa sinergia.
“Para mim, o êxito da Freixenet desde o princípio se deve à inovação”, diz o CFO. Ele se refere, por exemplo, à decisão, lá nos anos 1960, de lançar uma garrafa clara acetinada que se destacava em um oceano de garrafas verdes e contribuiu para uma explosão nas vendas do rótulo Carta Nevada. Depois, nos anos 1970, viria a emblemática garrafa preta da Cordón Negro. Ambas são sucesso de vendas até hoje. “O negócio cresceu muitíssimo por causa desse design. E eles hoje são os cavas mais vendidos no planeta.”
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Também se destaca o investimento em tecnologia para produzir em escala mantendo o padrão de qualidade. A Freixenet foi pioneira entre os espumantes em adotar um sistema de controle de temperatura de fermentação em tanques de aço inoxidável. Desenvolveu ainda um sistema automatizado próprio para substituir a remuage manual – operação que consiste em girar e inclinar as garrafas gradualmente, fazendo com que os sedimentos de levedura se direcionem para o gargalo.
Na fábrica de Sant Sadurní d’Anoia, grandes estruturas rotacionam 700 garrafas de uma só vez. “Temos uma patente única no setor”, diz Thomas. “Em vez de esperar semanas, podemos fazer isso em poucas horas. Assim economizamos tempo e, porque ganhamos tempo, podemos fabricar esse volume de produto.”
“Em nosso dicionário a palavra artesanal não é igual a qualidade”, diz Javier Flores Benitez, relações públicas da Freixenet, enquanto percorre a vinícola – em um veículo motorizado, porque só assim para dar conta de cobrir os longos corredores subterrâneos cercados de garrafas. “O que a tecnologia faz é oferecer um processo mais eficiente.” Ao mesmo tempo, o passado é preservado em leveduras herdadas dos primeiros tempos da vinícola do negócio e cultivadas desde então. “Graças a elas, nosso cava tem uma identidade própria. São autóctones, selecionadas pelos fundadores.”
Segundo Javier, uma das principais perguntas dos visitantes da vinícola – entre eles, um número crescente de brasileiros – é o que distingue cava e champagne. “O método é o mesmo. Basicamente são três diferenças: o clima, o solo e as variedades de uvas”, diz, para depois completar: “E os 200 anos de história que Champagne nos leva na frente”.
Isso porque a denominação de origem do cava surgiu nos anos 1970 justamente depois que os produtores da famosa região da França proibiram o uso do nome por quem não era de lá. A partir daí, só podia ser champagne o que era feito em Champagne. E os produtores de espumante de outras regiões que encontrassem sua própria marca. Foi o que a turma da Espanha fez.
Atualmente há, segundo Javier, 37 mil hectares de vinhedos de cava na Espanha – 32 mil deles ficam no território da Catalunha e, dentro dele, 26 mil estão na região de Penedès, onde se encontra Sant Sadurní d’Anoia. Em Sant Sadurní d’Anoia, praticamente tudo gira em torno das cem vinícolas locais, entre elas a Freixenet. Se existe um centro do mundo do cava, provavelmente está por ali. E – boa notícia para os turistas – fica a um pulo de trem da cidade de Barcelona, com seus muitos restaurantes e bares que servem tapas e, claro, cavas.
Reportagem originalmente publicada na edição 107 da Forbes Brasil