
Poucos itens de vestuário conseguiram atravessar tantas fronteiras e se reinventar com tamanha versatilidade quanto o tênis. Originalmente criado para melhorar o desempenho esportivo, ele deixou as quadras para ocupar um lugar de destaque no guarda-roupa global, ganhando status de símbolo cultural e de estilo. Através das décadas, acompanhou a evolução dos esportes, inspirou movimentos musicais, quebrou barreiras de gênero e conquistou o universo da alta moda.
A jornada dos tênis é também a história de expressão pessoal e pertencimento. Cada modelo carrega em si a marca de uma geração, refletindo mudanças sociais e culturais. Hoje, o tênis transcende sua função original, sendo usado em passarelas, escritórios e pistas de dança. O que antes era exclusividade dos atletas se tornou um fenômeno global, adotado por artistas, designers e fashionistas.
Das quadras para as ruas: o nascimento do ícone
Os tênis nasceram no universo esportivo, projetados para oferecer desempenho e conforto aos atletas. O Chuck Taylor All Star, lançado em 1917 pela Converse, começou sua jornada como calçado de basquete, mas logo se tornou um símbolo de estilo e rebeldia criativa. Segundo a Converse, “desde seu surgimento como o ‘Non-Skid’, um tênis funcional para esportes, até sua adoção pelo universo do rock nos anos 80, o Chuck Taylor All Star nunca deixou de evoluir”.
A professora Elizabeth Murilho, especialista em Sociologia da Moda e professora da Uiversidade Federal de Juiz de Fora, explica que “ao longo da década de 1970, a crescente valorização dos estilos juvenis fez com que outros grupos etários passassem a adotá-los, levando os tênis para além das quadras”. Esse movimento se intensificou com a ascensão das subculturas urbanas, como os punks e skatistas, que adotaram os tênis como parte fundamental de sua identidade visual.

Modelos como o Vans Old Skool são muito relacionados a esportes, principalmente o skate
Outros modelos icônicos seguiram esse mesmo caminho, como o Vans Old Skool, lançado em 1977, que rapidamente se tornou o queridinho dos skatistas californianos. A robustez e a aderência da sola vulcanizada fizeram dele a escolha ideal para a prática do esporte, enquanto sua estética minimalista conquistava os jovens. “O Old Skool foi um dos primeiros tênis a trazer a faixa lateral em couro, marcando não apenas uma evolução no design, mas também uma declaração de estilo”, comenta Diego Vanassibara, designer de calçados e CEO da marca homônima.
A batida que fez história: a influência musical
Nos anos 1980, o movimento hip-hop consolidou a presença dos tênis como peça-chave do estilo urbano. O clássico Adidas Superstar foi eternizado pelo grupo Run D.M.C. com a música “My Adidas”, marcando a primeira vez que um artista assinou um contrato milionário com uma marca esportiva, redefinindo a relação entre moda e música. Paralelamente, o Nike Air Jordan, lançado em 1985, tornou-se um fenômeno cultural ao unir o prestígio do jogador Michael Jordan com um design revolucionário que trouxe a tecnologia de amortecimento Air para as quadras.
Murilho destaca que “a associação com as estrelas do hip-hop contribuiu para a popularização de determinadas marcas, consolidando os tênis como expressão de identidade e pertencimento”. A partir desse momento, os tênis deixaram de ser apenas calçados esportivos e se tornaram parte da expressão cultural de uma geração.
A influência musical não se limitou ao hip-hop. No cenário do rock, o Converse All Star se tornou um símbolo de rebeldia nos pés de bandas icônicas como Ramones e Nirvana. “Os Chucks eram uma declaração silenciosa de não conformidade”, explica a professora. “Eles se tornaram parte do uniforme do rock alternativo, refletindo a busca pela autenticidade”.
Passo a passo pela igualdade: o caminho das mulheres no universo dos tênis
Se para os homens os tênis rapidamente se tornaram sinônimo de estilo, para as mulheres esse movimento foi mais lento. Durante muito tempo, o calçado foi considerado informal demais para o público feminino, restrito a situações casuais e atividades esportivas. “Apenas nos últimos anos houve uma sofisticação no design dos tênis femininos, permitindo combinações com saias, vestidos e até looks noturnos”, explica Murilho.

A Adidas realizou um shooting 100% feminino para divulgar o modelo Adidas Superstar
A relação das mulheres com os tênis reflete uma luta maior por liberdade e igualdade. Segundo Elizabeth, “o tênis sempre esteve associado a um universo masculino, especialmente nos esportes e nas subculturas urbanas”. Isso começou a mudar nas décadas de 1980 e 1990, quando a moda passou a valorizar um estilo mais casual, e o grunge ajudou a normalizar o uso de tênis em contextos urbanos. “A cultura grunge trouxe a ideia de conforto e despreocupacão com o que era visto como ‘feminino’, permitindo que mulheres adotassem os tênis como parte de sua identidade visual”, analisa.
Nos anos 2010, o movimento “athleisure” — fusão entre roupa esportiva e casual — consolidou de vez a presença dos tênis no guarda-roupa feminino. “As marcas passaram a criar linhas específicas para mulheres, com designs mais elegantes, cores variadas e detalhes sofisticados”, observa Murilho. Hoje, grandes grifes como Nike e Adidas lançam coleções assinadas por atletas e celebridades femininas, reafirmando o papel das mulheres como protagonistas na história dos tênis.
Entre a rua e a passarela: o encontro com o luxo
O avanço do streetwear e a busca das grifes por uma linguagem mais jovem e descontraída trouxeram os tênis para o universo da alta moda. “A alta-costura hoje só sobrevive porque reflete o que acontece nas ruas”, afirma Vanassibara. Essa fusão entre a moda de luxo e a estética urbana tem raízes nas décadas passadas, mas se intensificou com o crescimento do streetwear, especialmente no final dos anos 2010.
Modelos como o L003 Neo Shot, lançado recentemente pela Lacoste, demonstram essa interseção entre elegância e influência esportiva, consolidando o tênis como um verdadeiro objeto de desejo. Para Diego, “os tênis se tornaram mais do que um calçado: eles são uma declaração de estilo e status”.

Marcas de grife como a Lacoste aproveitaram o boom dos tênis na moda para galgar espaço nesse mercado
O mercado de luxo abraçou o tênis como forma de se conectar com o público jovem e reinventar a própria ideia de elegância. “Não se trata apenas de performance, mas de status e raridade”, explica o designer. “O design inovador e o valor simbólico das marcas transformaram o tênis em um artigo de luxo”. Marcas como Balenciaga, Gucci e Louis Vuitton investiram pesadamente em modelos exclusivos e edições limitadas, transformando o tênis em um verdadeiro protagonista nas passarelas.
Modelos que marcaram época: o que torna um tênis icônico?
Mas o que faz de um tênis um ícone? Para Vanassibara, “o que é icônico perdura”. Exemplos como o Chuck Taylor All Star, o Old Skool da Vans, o Air Jordan 1 e o Stan Smith da Adidas atravessaram gerações, adaptando-se às tendências sem perder sua essência. “Esses modelos se reinventam a cada geração, mantendo sua relevância cultural”, acrescenta.
Outro ponto destacado pelo designer é a capacidade de esses modelos transcenderem funções esportivas. “O Air Jordan, por exemplo, não é apenas um tênis de basquete. Ele se tornou um símbolo de status e colecionismo, com edições limitadas disputadas no mundo todo”, observa. Murilho complementa: “O tênis icônico é aquele que consegue criar um vínculo emocional com seu público. Ele carrega histórias e simbolismos que ultrapassam o simples ato de calçá-lo”.

Os modelos Air Jordan, que a princípio eram mais focados para o basquete, se tornaram um dos tênis mais cobiçados (e caros) do mundo
O futuro nos pés: os próximos capítulos dessa história
Hoje, os tênis continuam evoluindo, incorporando tecnologias de ponta e buscando a sustentabilidade. A fusão entre moda, performance e consciência ambiental promete redesenhar mais uma vez o futuro desse calçado tão simbólico. A Nike, por exemplo, lançou o Space Hippie, um tênis feito quase inteiramente de materiais reciclados, enquanto marcas de luxo apostam em edições limitadas que misturam artesanato e inovação.
Vanassibara acredita que o futuro do design de tênis está na fusão de materiais sustentáveis e estética ousada. “Os tênis vão continuar sendo espaço de experimentação, tanto em termos de forma quanto de função”, afirma. Murilho complementa: “O tênis transcendeu seu uso esportivo para se tornar um símbolo de liberdade e identidade, e essa trajetória está longe de acabar”.