
Quando entramos no universo do montanhismo, aprendemos importantes lições que também podem ser aplicadas nas nossas vidas mesmo quando estamos longe das montanhas. Aprendemos, por exemplo, que é aos poucos que desenvolvemos nossa destreza para vencer obstáculos. Descobrimos também que podemos fazer coisas difíceis e que não sabíamos ser capazes e, mais do que isso, aprendemos que ao darmos um passo de cada vez, podemos chegar a qualquer lugar.
Em janeiro de 2024 recebi o convite para integrar um grupo de montanhistas que se preparava para subir o Monte Roraima. Aquele é um destino imperdível para quem gosta de aventura e natureza, mas hesitei um pouco por se tratar de numa região remota e de difícil acesso; uma jornada na tríplice fronteira entre Brasil, Venezuela e
Guiana onde não haveria alternativas: eu teria que percorrer todo o trajeto a pé, até o fim. Além das dificuldades naturais para conseguir alcançar o seu topo, refleti por eu ser uma mulher 50+, o que torna esse empreendimento, inevitavelmente, ainda mais desafiador.
Apesar das incertezas, decidi arriscar. Seríamos ao todo 16 brasileiros, dos quais eu conhecia apenas a Tiane Love e a Tania Otranto. Embarcaríamos todos juntos para a Venezuela na semana seguinte e, para alcançarmos o topo do Monte Roraima seriam 9 dias de caminhada, ida e volta, numa topografia muito irregular, com diferentes desafios a cada dia. Tive dúvidas sobre ser capaz de cumprir a jornada acompanhando o grupo até o fim, principalmente porque sabia apenas que eram pessoas experiência em outras escaladas como Kilimanjaro e Everest, mas eu iria descobrir a minha capacidade ao longo do caminho.
O acesso ao monte é complexo e a via de acesso possível para esse trekking começa na comunidade Paratepui, na Venezuela. Ali encontramos a equipe da @RoraimaAdventures. Eles nos apresentaram o time de 3 guias muito bem-preparados e os carregadores experientes que levariam, além das nossas barracas, os sacos de dormir, os alimentos e a estrutura de banheiro (tudo – tudo mesmo -, que vai para o monte, tem que voltar para a cidade).
Carga organizada, era hora de partir. O sol estava forte e fazia muito calor. O caminho, de terra, parecia ser muito longo. O ar estava com um forte cheiro de fumaça. A vegetação típica do cerrado estava preta devido à uma queimada recente, o que inclusive deixou a visibilidade comprometida. Apesar da fuligem, eu estava animada. Com coragem colocamos nossas mochilas e começamos nossa caminhada. Além da carga nas costas, cada um de nós carregava o sonho de alcançar o cume.
Percorremos 13,4Km ao longo do dia, sempre vendo o Monte Roraima à nossa frente até finalmente fizemos uma parada para acampar junto ao rio Trek. Tomamos um banho gelado no rio, jantamos no entorno de uma fogueira e cada um foi para a sua barraca. Todos estávamos muito cansados. Entrei no meu saco de dormir e, através de uma fresta no zíper da barraca, fiquei olhando para o céu estrelado. Adormeci sem perceber e acordei com o dia clareando. Fiquei ainda por um bom tempo ainda dentro da barraca, vendo o sol nascer atrás do contorno do belíssimo Monte Roraima.
No segundo dia caminhamos 10Km por um terreno relativamente plano, mas que apresentava uma importante variação altimétrica, até chegarmos à base do monte. Nos aguardava ainda o terceiro dia, quando caminharíamos 12,5km pela exaustiva subida até o topo. Antes de começarmos essa subida, mais íngreme da nossa jornada, aprendi um novo ritual: como a base de uma montanha concentra muita energia, o lugar é sagrado para muitos. Por isso, na base do monte, é preciso tocar na parede vertical de pedra para pedir o seu consentimento antes de começarmos a subida. Decidi cumprir esse ritual e confesso ter sentido uma emoção extra quando toquei na pedra. Talvez essa emoção venha diante das incertezas do caminho que estava diante de nós.
Esse trecho da elevação mais parecia uma escada natural bastante íngreme, com incontáveis degraus e sulcos de diferentes alturas, escavados na terra e na rocha. As diversas pedras soltas e lisas exigiam cautela, além da atenção com a cobra-coral que cruzou o caminho bem na nossa frente. Esperamos até que ela passasse e seguimos adiante. A minha mochila, que já não era leve no início da viagem, parecia se tornar mais pesada a cada passo. Apesar do grande esforço, eu me sentia bem. Teve um momento em que olhei para trás e vi, lá embaixo, o longo caminho que tínhamos percorrido nesses 3 dias. Me emocionei ao constatar que já estávamos quase no cume!
No final terceiro dia chegamos à 2.810m de altura acima do nível do mar. Chegar no alto foi como desembarcar em outro planeta. Ao alcançarmos o topo, a primeira coisa que vemos são as grandes esculturas naturais de pedra, chamadas de 4 Guardiões, alinhadas à direita da trilha, que dizem ser eles os defensores do monte. Pouco mais adiante, a inconfundível escultura natural Flying Turtle, muito bem representada no filme Up – Altas Aventuras. Ao vê-la de perto, descobri que não era apenas um elemento de ficção criado para o desenho animado, mas que ela existe de verdade. Era como atravessarmos um portal para outra dimensão onde havia também flores e fungos que jamais tínhamos visto antes. Eram tantas as descobertas que diante delas ficamos calados. O som do silêncio foi a primeira sensação que eu me lembro de ter sentido. Era um silêncio oco e estranhamente parecia ensurdecedor. O cenário fazia lembrar do livro “O Mundo Perdido”, de Arthur Conan Doyle.
O Monte Roraima é uma montanha de topo plano, também chamada Tepui. É formads de arenito negro, coberto de fungos escuros. Eu imaginava que o topo da montanha seria plano; porém, a área plana não é maior do que alguns poucos metros. No topo, na maior parte do tempo, a caminhada é sobre pináculos, que são como cogumelos gigantes, altos o suficiente para representar risco iminente ao longo de todo o trajeto. As trilhas no alto do monte são vias sobre muitos picos e pareciam não ter fim. Era preciso muita atenção e precisão nos saltos entre eles, o que representava sempre uma tensão extra. Aqueles que ousaram confiar nessa experiência tiveram que vencer obstáculos complicados no caminho, para cruzar uma caverna maravilhosa e nadar na água gelada do Fosso, o que fez desse um dos momentos inesquecíveis da viagem.
Nos dias que se sucederam fizemos muitas caminhadas. Foram noites dormindo em barracas montadas dentro de cavernas. Visitamos o Abismo, de onde vimos os labirintos da Guiana. Próximo ao Abismo encontramos piscinas naturais chamadas Jacuzzis, onde tomamos banhos congelantes. Vimos também a Pedra Elefante – um cenário perfeito para o filme Star Wars. Caminhamos pelo Vale dos Cristais, pela Floresta dos Bonsais e subimos o Mirante da Proa. Contemplar a vastidão da Floresta Amazônica lá do alto fazia com que as árvores, gigantescas, parecessem um enorme tapete verde. Um passo de cada vez; uma pedra, um tropeço e um degrau a mais – todos superados! Nesse dia foram 13 horas de trilha, quase sem descanso algum. Mesmo depois de ter superado de tantos obstáculos, faltava a subida da Pedra Maverick – o ponto mais alto do Monte Roraima. Vencer esse último trecho seria o desafio final, e para isso faltava pouco.
Os desafios eram sempre intensos. Pedras… Pedras soltas, de todos os tamanhos e formatos, e mais um trecho difícil, mais íngreme do que nos dias anteriores; mas essas dificuldades não nos deteriam. Além da mochila, eu carregava meu equipamento fotográfico, que parecia mais pesado a cada dia – mesmo sabendo que fotografias jamais mostrariam o que essa viagem foi de verdade.
Quando chegamos no topo do Maverick senti que cada metro caminhado valeu a pena: 2.875m! Ao chegar no alto não consegui conter minha emoção diante do privilégio de ter alcançado o topo do Monte Roraima. Chorei sozinha, chorei abraçando minha amiga Tania, chorei no abraço coletivo do nosso grupo. Minha emoção foi uma explosão de sentimentos, a recompensa por perceber que, com meu próprio esforço, dando um passo de cada vez, tinha alcançado o cume! Lá do alto a paisagem da Gran Sabana era tão ampla que dava para enxergar o infinito. Observei a amplidão do mundo lá embaixo. Pude ouvir vento e admirar a magnitude da Terra. O Monte Roraima superou todas as minhas expectativas.
Um abraço e até a próxima coluna!
*Marina Bandeira Klink é uma fotógrafa de natureza brasileira, com nome reconhecido especialmente por seus registros fotográficos das regiões mais remotas do globo. Atualmente, Marina propõe novas experiências para viajantes e fotógrafos que, assim como ela, deseja fazer registros em destinos não convencionais. Ela publicou 3 livros de fotografia e 2 livros infanto-juvenis – ambos adotados por escolas particulares e pela rede pública de ensino de todo o país. Além disso, seu trabalho está presente em livros didáticos, jornais e revistas e em exposições fotográficas no Brasil e exterior. Em suas palestras Marina relata experiências vividas em viagens nada usuais abordando temas como coragem para uma mudança de Mindset, desafios e superação, liderança, empreendedorismo e meio ambiente.
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