
O Papa Francisco faleceu nesta segunda (20) e, nas horas que se seguiram, muitas homenagens se concentraram em sua influência global, sua liderança religiosa e sua política. Mas há uma outra camada — mais silenciosa, mais humilde e mais humana.
É a comida.
Porque, mesmo enquanto moldava a história, Francisco nunca abriu mão do sabor de casa. Falava com frequência sobre empanadas, doces e mate. Condenava o desperdício de alimentos como, em suas palavras, “um roubo das mãos dos pobres”. Promovia refeições anuais no Vaticano para pessoas em situação de rua.
Ele não desejava vinhos raros nem jantares de Estado elaborados. Queria sentar-se em uma pizzaria em Roma e comer em silêncio. Essa imagem se destacou porque contrariava o que esperamos do poder. E talvez seja por isso que as pessoas o amavam — não porque rejeitava o conforto, mas porque o ressignificava. Para Francisco, conforto não era riqueza. Era pão quente. Algo a ser partilhado.
Em um tempo em que tantas figuras públicas parecem distantes — ou cuidadosamente controladas —, a relação de Francisco com a comida parecia diferente. Não era performática. Era enraizada. Sua morte não marca apenas o fim de um papado, ela nos lembra dos rituais cotidianos que moldam a maneira como nos conectamos, como cuidamos e como lembramos.
Um apetite familiar
Quando se tornou papa em 2013, Francisco trouxe consigo não apenas uma mudança de tom — mas uma conexão profunda com as refeições que o formaram.
Tinha o hábito de tomar mate todos os dias, muitas vezes presenteado por peregrinos da América do Sul. Lembrava das empanadas que fazia com a avó em Buenos Aires. Tinha carinho pelo chipa, o pão de queijo paraguaio de textura elástica. E pelos alfajores recheados com doce de leite.
Mesmo na carta espiritual de despedida, Dilexit Nos, voltou a falar de comida — não de forma metafórica, mas literal — ao recordar o ato de assar doces com a avó como um gesto de afeto e continuidade.
Essas lembranças não eram compartilhadas para parecer mais acessível. Ele as nomeava porque tinham importância.
Quando a comida é uma mensagem
Para muitos, Francisco tinha o dom de tornar o pessoal algo universal — e isso nunca foi tão evidente quanto em suas falas sobre a fome e a justiça alimentar.

Em seu discurso durante a Segunda Conferência Internacional sobre Nutrição, na sede da FAO em 2014, Francisco falou sobre o desperdício e o consumo excessivo de alimentos
Costumava dizer que o desperdício de comida era “um pecado”, e apelava para que líderes mundiais enxergassem a segurança alimentar não apenas como uma questão logística, mas como um dever moral. No Dia Mundial dos Pobres, não oferecia apenas orações: sentava-se à mesa para almoçar com centenas de pessoas que viviam à margem.
Sua mensagem era clara: comida não era luxo, era algo que ninguém deveria ser privado de ter.
Misericórdia visível
Francisco não apenas falava sobre a fome, ele agia. Em 2016, criou o Dia Mundial dos Pobres, uma iniciativa do Vaticano que incluía refeições, atendimentos médicos e apoio a pessoas em situação de rua. Seu compromisso não era performático: era constante, visível e profundamente ligado à forma como ele entendia a misericórdia.
Em uma audiência semanal de 2013, na Praça de São Pedro, dedicada ao Dia Mundial do Meio Ambiente da ONU, Francisco falou sobre o que chamou de “cultura do desperdício”, alimentada pelo consumismo e pelo excesso.
“Desperdiçar comida é como roubar da mesa dos pobres e dos famintos”, disse. “Essa cultura do desperdício nos tornou insensíveis — até mesmo ao descarte de comida, o que é ainda mais desprezível quando tantas famílias ao redor do mundo sofrem com a fome e a desnutrição.”
Suas palavras não eram genéricas, eram incisivas. “O consumismo nos levou a nos acostumar com o excesso e o desperdício diário de alimentos, aos quais, às vezes, já não conseguimos atribuir o devido valor.”

O Papa Francisco ofereceu um almoço de pizzas napolitanas a 1.500 pessoas carentes de toda a Itália que foram ao Vaticano em 5 de setembro de 2016, em homenagem à recém-canonizada Madre Teresa
O sabor de casa ainda importa
Francisco pode ter liderado a Igreja a partir de Roma, mas seu paladar nunca deixou a Argentina. E isso importa, porque o sabor de casa, as refeições que nos formam e nos restauram, são mais do que preferências. São âncoras.
Até mesmo “O Livro de Receitas do Vaticano”, que inclui pratos ligados às suas comidas favoritas, carrega esse espírito. Não se lê como um projeto publicitário brilhante. Parece uma coleção de refeições lembradas, passadas entre famílias, partilhadas em pequenos momentos.
Fosse uma bagna càuda da Itália ou uma porção de sorvete de doce de leite — como o sabor “Aleluia” lançado em sua homenagem em Roma —, não se tratava de indulgência. Era sobre alegria, hospitalidade e pertencimento.
O que fica
Ao refletirmos sobre a morte do Papa Francisco, é importante ampliar o olhar — entender a dimensão de sua influência, reconhecer o peso histórico de seu papel.
Ao homem que pediu pizza. Ele não rejeitava a tradição: mostrava que a simplicidade também pode ser reverente.
Ao que bebia mate todas as manhãs. Um ritual que o ligava a milhões de pessoas que nunca o conheceram, mas conheciam aquele sabor.
Ao que acreditava que a comida podia ser um ato de misericórdia. Não apenas em feriados ou datas sagradas, mas em cada gesto de partilha.