Quando “disrupção” era apenas uma palavra esquecida no fundo dos dicionários, a Porsche surpreendeu o mercado com o Cayenne, um utilitário esportivo alto, largo e com espaço para uma família inteira – a antítese do que a marca alemã fazia desde 1948: carros compactos, baixos e de duas portas.
“Claro que não foi nada fácil expressar a identidade da marca Porsche em um carro que não tinha absolutamente nada em comum com os modelos existentes feitos pela empresa”, relembra Harm Lagaay, então chefe do departamento de design da marca alemã.
Leia mais: Como é novo Porsche que chega ao Brasil por R$ 1,8 milhão
Pela primeira vez em 20 anos, a Porsche detalha como foi o desenvolvimento do seu primeiro SUV e as razões que a levaram a pôr em risco sua reputação de fabricante de carros concebidos exclusivamente para o prazer ao volante – e assim enraivecer uma legião de entusiastas da marca. Em meados dos anos 1990, a empresa se viu em uma das crises econômicas mais significativas de sua história. Ficou claro que o lendário 911 e o Boxster, seu novo modelo de motor central, sozinhos não seriam capazes de levar a empresa a um futuro seguro. “Era evidente que o carro esportivo tinha seus limites no mercado. A divisão de vendas demonstrou isso claramente por meio de pesquisas. A longo prazo, a Porsche acabaria em declínio novamente”, rememora Anton Hunger, chefe de comunicações do ex-presidente do conselho executivo, Wendelin Wiedeking.
Como naqueles tempos os EUA eram o maior mercado para a Porsche, a empresa seguiu os conselhos do seu representante norteamericano e decidiu por um SUV, tipo de modelo sempre em alta por lá. E assim abandonou a ideia de uma minivan, que também estava no radar dos alemães – o que para uma marca com o ethos da Porsche seria algo muito além da disrupção.
Projeto Colorado
Como se tratava de um novo mercado, a empresa buscou um parceiro para desenvolver seu terceiro produto. Quase rolou com a Mercedes-Benz, mas foi com a Volkswagen que a Porsche se juntou para desenvolver o projeto Colorado – que, além do Cayenne, deu vida ao Touareg.
À Porsche coube a concepção da plataforma, da arquitetura do carro. Wolfsburg (sede da VW) contribuiu com a experiência em produção em larga escala. Contudo, cada uma usaria seus próprios motores e ajustaria o chassi de acordo com a finalidade de cada modelo.
Em agosto de 2002, as primeiras unidades do Cayenne saíram de uma fábrica erguida exclusivamente para ele, em Leipzig (Alemanha), enquanto o Touareg era expelido da planta da Volkswagen em Bratislava, na Eslováquia.
Duas versões foram oferecidas: na S, o recém-desenvolvido motor de 4.5 V8 rendia 340 cv, enquanto na Turbo a potência saltava para impressionantes 450 cv. Pouco tempo depois, uma opção Turbo S de 521 cv completaria a gama. Pelo menos no quesito força, os entusiastas não podiam reclamar do Cayenne. Para a Porsche, o Cayenne criou a base econômica para o sucesso sustentável sem comprometer os valores do automobilismo da marca de carros esportivos. “Com o Cayenne, conseguimos pela primeira vez transferir com sucesso a lenda da Porsche para um segmento de mercado completamente novo”, disse Oliver Blume, presidente do conselho executivo da Porsche AG.
Sucesso global
Em 1989, a Porsche tinha nas lojas apenas o icônico e longevo 911, o 928, e o acessível 944. Foi quando Ferry Porsche cravou: “Se construirmos um modelo off-road de acordo com nossos padrões de qualidade e se ele tiver um escudo da Porsche na frente, as pessoas vão comprar”.
O filho de Ferdinand Porsche estava certo: são mais de 1,4 milhão de Cayennes vendidos globalmente. No Brasil, onde já foram mais de 7.600 exemplares comercializados, sua chegada foi acompanhada de um fato curioso. “Nós lançaríamos o Cayenne no Salão de São Paulo, no final de outubro de 2002. Mas recebemos nosso exemplar de demonstração antes do Cayenne estrear mundialmente, durante o Salão de Paris, em setembro. Tivemos então que esconder o carro em um galpão até passar a estreia de Paris”, revela Marcel Visconde, presidente da Stuttgart Porsche, à época representante exclusivo da marca no Brasil.
Egresso da indústria farmacêutica e então cliente da Porsche, Visconde virou sócio da empresa justamente no desembarque do Cayenne por aqui. “Fui para aquele salão sem entender nada do mercado de automóveis. Mas naquele momento a Stuttgart precisava de investimentos para ampliar a rede, reestruturar o pós-venda e se adequar à chegada de um carro novo e que introduziria a empresa em um mercado de volume muito maior”, conta.
Ao dividir o showroom da concessionária, a partir de março de 2003, com 911 e Boxster – menores e tradicionais –, o Cayenne de fato causou estranheza, admite Visconde. “No entanto, logo a barreira do ceticismo caiu quando descobriram que o Cayenne tinha muita orientação esportiva. Que freava bem, fazia curva bem e andava tanto quanto qualquer outro Porsche”.
Para o executivo, o Cayenne foi essencial para a Porsche entender que havia outras comunidades de consumidores além dos compradores de esportivos, e que poderia crescer em novos mercados. “O mesmo acontece com o Taycan hoje. Se há alguns anos você dissesse a um entusiasta que a Porsche teria um carro 100% elétrico, ele não acreditaria. E hoje o Taycan é um sucesso”, avalia Visconde.
Vai ser clássico?
Para Visconde, contudo, é cedo para reconhecer a primeira geração do Cayenne como um clássico. “Para um SUV é difícil se estabelecer nesse mercado, principalmente por conta do alto volume produzido. Não vejo acontecendo hoje, mas lá para frente ele pode ter algum valor nesse mercado”, conclui.
Opinião parecida tem Pietro Consolini, diretor da Wish Motors, loja independente especializada em Porsches. “Foi ótimo ter um Porsche para o dia a dia. Os entusiastas acharam estranho no começo, mas depois que entenderam que o carro tinha DNA Porsche, começaram a gostar. Falando da primeira geração, é um carro que hoje orbita lojas de seminovos, não de clássicos. Ainda não conheço ninguém com desejo de pôr um Cayenne em sua coleção”, pondera.
Bruno Maia Rosa pensa diferente. Colecionador especializado em 356 e à frente da Invest Collection, empresa de consultoria de investimento em clássicos, acredita que ser um futuro colecionável é uma certeza. “A primeira geração é um marco na história. Significou um excesso de esforços da marca para um novo segmento, para novas tecnologias que não eram aplicadas em outros modelos. Mas isso leva a custo de manutenção alto, que quem não é entusiasta da marca não está inclinado a pagar. Então quem pegar um carro com bom histórico de manutenção vai se dar bem”, avalia Rosa. “Assim como com qualquer veículo que vira um clássico desejável, a mira é o topo de linha. Provavelmente a Turbo será o maior clássico da primeira geração”, conclui.
Artigo publicado na edição 98 da revista Forbes, de junho de 2022.