Não é de hoje que a carne é fraca, que o glúten é vilão, que os agrotóxicos apavoram e que os transgênicos causam polêmica por onde passam.
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A preocupação crescente com a saúde tem levado milhões de pessoas a mudar seus hábitos, engordando o mercado de alimentos e bebidas saudáveis – que no ano passado, só no Brasil, movimentou US$ 23,8 bilhões.
Esse valor robusto inclui a venda de produtos orgânicos, fortificados, sem glúten, lactose ou proteína animal, com menor teor de sódio ou açúcar. Representa 10,2% a mais sobre o resultado de 2015, já descontada a inflação. O consumo de alimentos e bebidas saudáveis no país saltou 75,5% nos últimos cinco anos, contra 26,5% na média mundial.
O aumento de consumo entre os mais velhos, os mais obesos e a geração fitness explica a expansão do mercado saudável
Os números colocam o Brasil como o quinto maior mercado no consumo de alimentos saudáveis e o sétimo no de bebidas. Mesmo com a renda em queda e desemprego em alta, a perspectiva do segmento de orgânicos é crescer até 30% este ano, segundo a Organis, entidade criada em 2015 e que reúne 44 empresas e produtores. “São R$ 3 bilhões faturados no mercado interno. As empresas do setor estão preparadas para atender a todos os mercados. Continuamos como o principal país fornecedor de açúcar, castanhas, frutas e derivados”, diz Ming Liu, diretor da entidade e do Organics Brasil, projeto criado para promover as exportações. A cifra refere-se apenas aos alimentos orgânicos e é considerada expressiva, uma vez que a lei dos orgânicos só foi regulamentada em 2011, quando o selo de certificação se tornou obrigatório.
O potencial de crescimento do setor já atrai investidores, fomenta aquisições e joint-ventures e incrementa a expansão das lojas “verdes”. Sem contar os lançamentos: vão de hambúrguer e carpaccio de carne bovina a patê de fígado de frango e pirarucu “vida livre” (com rastreabilidade total). Tudo orgânico. Devem chegar às gôndolas ainda neste ano, após serem apresentados em maio na feira paulista de supermercados.
Episódios como o da operação Carne Fraca, ação deflagrada pela PF em março em 21 frigoríficos – e que levou à queda imediata de até 11% no valor das ações de parte das empresas investigadas –, também dão um empurrão adicional aos negócios de quem produz e vende orgânicos. Os empresários são unânimes em afirmar que o efeito maior da Carne Fraca será despertar a atenção do consumidor para o processo de fabricação e a origem daquilo que costumam colocar nas sacolas de compras.
DOBRANDO A PRODUÇÃO
“As sete lojas da Korin dobraram as vendas, não de carne bovina, mas de frango orgânico e sustentável nos primeiros cinco dias após a notícia. Foi um evento pontual, o mercado tradicional deve se estabilizar”, diz Reginaldo Morikawa, diretor-superintendente da Korin, criada em 1994 e controlada pela Igreja Messiânica Mundial, com base na agricultura natural e pioneira no país na criação de frango sem antibióticos.
Na Korin, o abate diário de 20 mil aves representa hoje 70% do faturamento de R$ 134 milhões. O frango orgânico começou a ser vendido em 2009, e sua primeira exportação foi feita para Hong Kong em 2016. A produção só não é maior porque faltam insumos, como milho e soja orgânicos, para alimentar as aves. A empresa também vai levar peixes orgânicos ao consumidor – pirarucu, tambaqui, tucunaré e outros pescados criados de forma livre na Amazônia por ribeirinhos – e com isso projeta fechar o ano crescendo 15,6%.
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A Associação Brasileira de Produtores Orgânicos (Abpo) também recebeu pedidos para dobrar a produção em abril. “Quando se coloca a origem de um produto em dúvida, o consumidor corre para aquilo que tem maior garantia”, diz Leonardo Leite de Barros, presidente da entidade, ao comentar que a operação Carne Fraca ajudou a difundir esse tipo de produto.
Mesmo sem o empurrão da operação da Polícia Federal, a produção tem crescido na casa dos dois dígitos percentuais, resultado do interesse de empresas que querem exportar (para Europa e Emirados Árabes) e vender para redes varejistas do Sudeste. “Nossa carne caiu no gosto do consumidor após o pecuarista aprender que, além de orgânica, ela tem de ser suculenta e gostosa”, afirma Barros.
Não é só no segmento de proteína animal que crescem os investimentos. Depois de ser adquirida em 2015 pela francesa Nutrition & Santé, subsidiária da japonesa farmacêutica Otsuka, a empresa Jasmine abriu a segunda fábrica no Paraná, dobrou a capacidade de produção de alimentos funcionais e orgânicos e criou uma linha de panificação sem glúten.
Com 300 empregados e 170 itens no portfólio, faturou R$ 130 milhões em 2016, 10% mais que 2015. “Nosso foco é crescer no zero açúcar, nos integrais e nos orgânicos”, diz Jean-Baptiste Antoine Cordon, CEO da Jasmine. Serão 40 produtos lançados neste ano, o que deve contribuir para incrementar ainda mais as vendas, que já aumentaram até março de 15% a 20%. “‘Saudabilidade’ e conveniência são as duas grandes alternativas para o varejo e a indústria alimentar se expandirem”, diz o francês, que, desde 2005, quando veio para o país, já comandou a Chandon e foi diretor na Louis Vuitton.
A afirmação faz sentido. Com ampliação de itens de marca própria, a Mundo Verde, maior rede de lojas de produtos naturais e orgânicos da América Latina, pretende abrir outras 62 franquias até dezembro, com investimentos de R$ 40 milhões. Comprada há três anos pelo empresário Carlos Wizard, a rede tem hoje 400 unidades. Faturou R$ 550 milhões em 2016, um crescimento de 11% sobre 2015. No primeiro bimestre deste ano, as vendas avançaram 17%.
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O aumento de consumo entre os mais velhos, os mais obesos e a geração fitness explica a expansão. “O segmento saiu do nicho do bicho-grilo para um público maior, preocupado com a saúde”, diz Charles Wizard, CEO da Mundo Verde e filho de Carlos. Oito em cada dez clientes são mulheres acima de 30 anos, o que fez a rede investir em uma linha própria para saúde e beleza. “Ampliar a marca própria é ter controle total da produção, e não deixar acontecer o que ocorreu com a carne. Não brigamos por preço, mas por qualidade”, afirma Wizard. A rede tem 150 produtos próprios, e a meta é chegar a 250 em 2017.
PONTOS FRACOS
A cadeia produtiva ainda desestruturada, a logística deficiente e a produção em menor escala ainda são entraves para democratizar a alimentação saudável, na opinião dos empresários do segmento.
Foi com o objetivo de tornar os orgânicos mais acessíveis que a Mãe Terra, empresa pioneira no ramo e situada em Osasco (SP), “penou, errou, mas se encontrou”, nas palavras do CEO Alexandre Borges, que a comprou em 2008. Hoje são mais de cem itens orgânicos entre ingredientes, castanhas, salgadinhos e até macarrão instantâneo (lámen).
“Quebrar o paradigma de que orgânico era só para gente rica sempre foi uma obsessão para mim”, diz Borges, que, ao enveredar aos 14 anos pelos caminhos “naturebas”, como ele mesmo conta, já ganhou apelidos como “Granola Boy” e “Banana com Aveia”. Há 20 anos, trabalhou nos EUA como caixa na Whole Food Market para entender o funcionamento da “rede sustentável”.
Levou cinco anos para estruturar a cadeia de supply da empresa. “E, ainda assim, tivemos de tirar o feijão orgânico de linha por falta de fornecedores. As embalagens já estavam prontas, mas tudo foi descartado.” Em 2013, o fundo de investimentos BR Opportunities comprou 30% da Mãe Terra, o que impulsionou os negócios.
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No ano passado, a empresa levou o lanche orgânico para os voos da Gol. “São 3 milhões de passageiros por mês, comendo pela primeira vez snacks ou minicookies orgânicos. Alimentamos um Uruguai por mês.” Sem revelar o faturamento, Borges diz apenas que está “na casa de três dígitos”. O crescimento foi de 37% em 2016 e deve chegar a 30% neste ano. Em parceria com a chef e apresentadora Bela Gil, a Mãe Terra criou uma linha de misturas pré-prontas para bolos e pães, além de ingredientes.
“Acredito que uma das chaves para a democratização da comida saudável, orgânica, é mudar a política de produção no Brasil, baseada em monoculturas e com impacto enorme na biodiversidade; depois, o consumo”, diz Bela, ao lembrar que só 25% da população come a quantidade de legumes e frutas recomendada pela OMS.
Mudar a forma de produzir foi a decisão do ator Marcos Palmeira, dono da fazenda Vale das Palmeiras (RJ), ao descobrir que quem ali trabalhava não comia suas hortaliças. “Para mim tudo era natural. Até que ouvi que não comiam porque estavam usando ‘veneno’ para fortificar o solo. Caiu minha ficha e mudamos a produção para orgânica.” No bairro do Leblon, um armazém vende parte do que é cultivado e feito na fazenda, como 7.500 queijos/mês. “Em breve vamos ter uma cerveja vegana, com malte que vem da Alemanha e da Polônia.” Mercado não falta, segundo o ator, para o orgânico. “Falta é política pública, incluir o orgânico nas escolas e fomentar a produção local.”
Na lista de clientes do armazém estão chefs como o francês Claude Troisgros, que também tem uma história de amor com o mundo orgânico. Há 25 anos, conheceu uma agricultora carioca que passou a lhe fornecer legumes. “Quando teve o desastre na região serrana em 2011, ela me avisou que havia perdido tudo e que pararia de plantar. Fui ao local, conheci a área e a ajudamos a recuperar tudo, em parceria com a Roberta Sudbrack [chef de FHC em Brasília].”
MUDANÇA DE DIREÇÃO
Apesar do crescimento do setor, o cenário econômico recessivo do país também leva a mudanças no foco de alguns negócios.
É o caso da Fazenda da Toca, em Itirapina (SP), do empresário e ex-piloto de Fórmula 1 Pedro Paulo Diniz. Em 2016, o faturamento cresceu 67% em relação a 2015. Mesmo assim, Diniz decidiu encerrar a produção de sucos e molhos para o varejo – vai fornecer polpa de frutas orgânicas para a indústria de alimentos. A venda de ovos orgânicos com sua marca nos mercados será mantida. “Revimos nossa estratégia, buscando encontrar um caminho possível diante de um cenário econômico cada vez mais desafiador”, diz Diniz, que começou o projeto de cultivo agroecológico em 2008.
A fazenda tem 2.300 hectares, emprega 110 funcionários e tem 100% da produção certificada orgânica. São mil toneladas de frutas orgânicas por ano destinadas à fabricação de polpas para o mercado interno e externo e 20 milhões de ovos. Metade do negócio pertence à Península Participações, empresa de investimento que gere os negócios e propriedades da família Diniz.
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“Nos próximos dez anos, vamos dobrar os investimentos para ampliar a produção agrícola e desenvolver pesquisas aplicadas em sistemas agroflorestais em larga escala”, diz o empresário. Um fator que impulsionaria a produção, segundo ele, seria uma política governamental de incentivo às atividades agrícolas sustentáveis. “O Brasil tem menos de 1 milhão de hectares de produção agrícola. A Argentina tem mais de 3 milhões de hectares. Acreditamos e queremos ver o Brasil como referência mundial na produção orgânica. Temos todas as condições para buscar essa posição, mas temos que construir políticas que incentivem e garantam a segurança jurídica, regulatória e financeira do setor.”
MAIS DOCE
Um dos itens que mais crescem na cesta de consumo de itens saudáveis dos brasileiros é o açúcar mascavo, segundo estudo da consultoria KantarWorldPanel. Subiu 27,5%, enquanto o refinado caiu 5%.
Segunda maior fabricante de açúcar orgânico e maior exportadora do produto, a Jalles Machado, de Goianésia (GO), chegou com a marca Itajá às redes GPA (Grupo Pão de Açúcar), Walmart e Carrefour. Exporta para 22 países, sendo 50% para os Estados Unidos e 30% para a Europa. Na lista de clientes estão Kellogg, Coca-Cola e Danone. “Entramos no mercado de orgânico há dois anos. Começamos com o demerara em 2016, que já representa metade de nossas vendas e agrada o paladar por ser mais doce”, diz Henrique Penna de Siqueira, diretor-comercial, que faz parte da terceira geração da família que comanda a empresa.
“Os saudáveis ganham cada vez mais espaço em mercados de todos os portes”, diz Rodrigo Mariano, gerente de economia e pesquisa da Associação Paulista de Supermercados (Apas). Os preços, que já chegaram a ser até três vezes maiores do que os similares tradicionais, recuaram. A diferença varia de 20% a 40%.
Com a marca de alimentos saudáveis Taeq, o GPA vende 300 itens em sua rede. Hoje, ela responde por pouco menos de 1% do faturamento do grupo, de R$ 26 bilhões, diz Rafael Berardi, gerente-geral de marcas exclusivas do grupo. “O próximo passo é popularizar o saudável e acabar com a barreira de que ‘isso não é para mim’.” Um terço dos itens é de orgânicos, como vegetais, molhos e sucos.
Ainda não muito conhecida do público, por ser fornecedora de ingredientes para cosméticos, a Beraca faz óleos, manteigas vegetais e naturais que compõem as marcas de grandes empresas como Natura (linha Ekos), L’Oréal (Khiels, Kérastase, Garnier Fructis) e L’Occitane. Começou em 1956 como um pequeno negócio da família Sabará na distribuição de cloro, e anos depois especializou-se em extrair de forma sustentável produtos da floresta amazônica e de outros biomas brasileiros.
Há cerca de dez anos, ela abriu subsidiárias nos EUA e na França e, no fim de 2015, firmou parceria com a suíça Clariant, do setor químico, que assumiu 30% da divisão de saúde e cuidados pessoais.
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“São mais de cem comunidades de extrativistas e agricultores de diversas regiões do Brasil que trabalham em parceria para fornecer argila branca, açaí, andiroba, babaçu, buriti, murumuru e cupuaçu, entre outros ingredientes. Eles são assistidos e treinados por um programa de valorização socioambiental da empresa”, diz o CEO Daniel Sabará, que pertence à terceira geração da família na Beraca. Com “foco em inovação e tecnologia”, hoje a Beraca exporta para 40 países. O mercado externo representa 50% do faturamento, que cresceu 15% no ano passado.
Como se vê nos números desta reportagem, o setor de alimentos saudáveis ainda é uma criança em fase de crescimento no Brasil, mas já esbanja saúde.
* Matéria publicada na edição 50 de FORBES Brasil, de abril de 2017