Quando a União Europeia revelou sua última multa antitruste para o Google, na semana passada, foi difícil não prestar atenção ao número: US$ 5 bilhões.
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Parecia mais um ato forte de Margrethe Vestager, cujo mandato de cinco anos como a melhor autoridade antitruste da Europa foi marcado pela abordagem de não levar prisioneiros para as empresas de tecnologia do Vale do Silício. Nos últimos dois anos, ela apresentou à Apple uma conta de impostos de US$ 15 bilhões a serem pagos à Irlanda e, ao Google, uma multa de US$ 2,8 bilhões por práticas dominantes em seu aplicativo de compras.
Mas há uma luta maior e, em um círculo maior, que Margrethe ainda não entrou: uma que envolve a maneira como o Google e o Facebook usam os dados pessoais de bilhões de pessoas para dominar o mercado de publicidade online. A dupla foi responsável por 84% dos gastos globais em anúncios digitais em 2017, excluindo a China, segundo o GroupM, o braço de investimento da WPP.
As questões de concorrência, privacidade e dados pessoais têm se sobreposto umas às outras à medida que mais da economia global se torna ligada à web. E como a nova lei GDPR da UE define nossos dados pessoais, mais do que nunca, como uma valiosa classe de ativos, a privacidade dos cidadãos está cada vez mais vinculada a reguladores da concorrência como Margrethe.
No entanto, apesar de sua difícil abordagem ao Vale do Silício e de sua aversão pessoal a aplicativos para smartphone que rastreiam cookies, ela tem se mantido quieta quando o assunto é privacidade.
Quando Margrethe repreendeu o Facebook por enganar os reguladores sobre suas verdadeiras intenções em relação aos dados do WhatsApp, depois da aquisição de US$ 22 bilhões em 2014, a questão das informações pessoais “não surgiu como uma forte preocupação competitiva”, disse ela em entrevista concedida em dezembro de 2017. “Ainda não tivemos um caso em que essa fosse a principal preocupação em uma fusão”, acrescentou.
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Martin Sorrell, fundador da gigante de publicidade WPP, queixou-se sobre o domínio do mercado do Google e do Facebook. Sua empresa, sediada no Reino Unido, fez uma reclamação à Câmara dos Lordes da Grã-Bretanha, mas não é de conhecimento que tenha feito uma denúncia formal à UE. Um porta-voz da WPP não respondeu aos pedidos de entrevista.
Se – e quando – Margrethe Vestager obtiver um caso viável sobre o monopólio de nossos dados, a lei antitruste da UE terá toda a estrutura necessária para agir. A maioria dos casos antitruste é travada por regras sobre conduta “excludente”, ou seja, quando uma empresa exclui seus concorrentes. Mas outra parte explícita da lei se concentra na “conduta de exploração”, diz Thomas Vinje, sócio do escritório de advocacia Clifford Chance, em Bruxelas, especializado nas leis de concorrência estabelecidas pela UE. A conduta abusiva é uma característica fundamental do Tratado de Roma de 1957, a base da lei antitruste europeia. Margrethe teoricamente poderia argumentar que uma empresa como a Google ou o Facebook explorou os consumidores, com o efeito de excluir concorrentes, diz Vinje.
Ela não seria a primeira. Os reguladores da concorrência na Alemanha já analisaram se a vasta exploração de dados do consumidor por parte do Facebook colocou-o em posição de segmentar e vender publicidade de uma forma que nenhum outro conseguiria. O Federal Cartel Office do país publicou suas descobertas em dezembro e aguarda a resposta do Facebook.
Por que a Alemanha? Provavelmente porque o país tem a autoridade antitruste mais antiga da Europa, aponta Vinje. Depois da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos transmitiram versões de sua própria lei antitruste para a Alemanha, quando ajudou a reconstruir o sistema legal do país. Os EUA já haviam estabelecido suas regras antitruste em 1890 com o Sherman Act, embora a Europa não tenha feito o mesmo até a década de 1950, com o Tratado de Roma – e com a Alemanha abrindo o caminho.
“A Alemanha é o vovô da lei antitruste na Europa”, diz Vinje, que pode ser o motivo responsável pelo qual os alemães “estão na frente da Comissão Europeia nisso”.
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Não é só a Alemanha que está à frente da UE na investigação da natureza anticoncorrencial do Google e o uso de dados de pessoas no Facebook. A Comissão da Concorrência e do Consumidor da Austrália está analisando a questão, assim como o Japão (cujo responsável pela concorrência disse estar acompanhando a investigação alemã) e potencialmente o Reino Unido.
Então, por que Margrethe ficou quieta? Ela disse à FORBES que sua equipe de 900 funcionários estava desenvolvendo “ferramentas analíticas” para ver qual papel os dados poderiam ter no bloqueio de concorrentes, e que a construção dessas ferramentas “vem acontecendo há algum tempo”.
Seu desafio é usar uma instituição burocrática para acompanhar a tecnologia em rápida mudança e os modelos de negócios cada vez mais fluidos. E ela parece estar esperando uma reclamação viável aparecer sobre sua mesa. Rastrear o manuseio incorreto de dados é uma dificuldade enorme, mas uma queixa inicial cheia de evidências, pelo menos, “tornaria isso mais concreto”.
Vinje diz que, apesar da reputação de Margrethe como um cão feroz na esfera da tecnologia, ela tem sido de fato “muito cautelosa e conservadora” quando se trata da exploração de dados dos consumidores. Seus casos contra o Google, por exemplo, encaixam-se perfeitamente no território normal da lei antitruste europeia. “Mas em termos dos fatos e da lei, não é nada aventureiro comparado ao caso do Facebook alemão.”
“A conversa sobre ela travar uma guerra no Vale do Silício é um enorme exagero”, diz Vinje. Como reguladora e ex-política dinamarquesa, Margrethe tem sido encarada pelos olhos do público como uma pessoa de muito mais sucesso em suas atividades do que antecessores como Neelie Kroes, Joaquin Almunia e Mario Monti, cada um com mandato de cinco anos como chefe de concorrência. “Nunca vi nenhum deles capaz de vender a legislação antitruste europeia com um toque comum, como faz Margrethe.” Mas ela também escolheu cuidadosamente suas batalhas legais, acrescenta Vinje. “Ela ainda não fez nada muito arriscado.”
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Processar o Google ou o Facebook sobre o uso indevido dos dados do consumidor seria, historicamente, uma extensão de seu alcance, mesmo que a lei lhe desse espaço técnico para fazê-lo. Seria arriscado do ponto de vista político. Porém, talvez, o maior desafio seja obter as evidências. Como você prova que o Google e o Facebook têm um duopólio nos dados? “Muito disso ainda é obscuro”, diz Vinje.
Também não está claro quem deve fazer o policiamento. Deveria ser Margrethe do lado da concorrência, ou Giovanni Buttarelli, o antigo regulador italiano que agora dirige o European Data Protection Board, o principal coordenador para todas as coisas ligadas à lei GDPR? Ou deveria ser Vera Jourova, a Comissária de Justiça da União Europeia?
As novas regras impostas pela lei GDPR podem ter deixado Margrethe de lado nesta questão, como diz Nicolas Colin, um empresário francês integrante do conselho da comissão de dados pessoais da França entre 2014 e 2016. Tentar aplicar essas regras trouxe um desafio que colocou especialistas jurídicos contra economistas dentro dos escritórios dos reguladores. Na França, houve uma briga entre os órgãos reguladores de justiça e da concorrência, diz Colin. “Eles vêm de mundos diferentes. São advogados versus pessoas da área comercial. O problema é a falta de um acordo coordenado sobre a natureza econômica dos dados.” Colin aponta agora para o refrão comum de que “os dados são o novo petróleo”, mas “os dados são muito mais do que o petróleo”.
“O antitruste está passando por uma mudança radical”, acrescenta Colin, enquanto os reguladores lidam com os novos efeitos de rede das economias digitais e desafiam os dados pessoais como um ativo ou um direito humano.
Margrethe pode ter tempo suficiente para entrar no ringue. Seu mandato como autoridade antitruste termina em outubro de 2019, juntamente com o de outros comissários, e ela disse que quer fazer um segundo período de cinco anos. Sua cautela é abundante, no entanto. Ela evitou respostas diretas sobre como lidar com empresas de tecnologia sobre dados em sua entrevista à FORBES, e, em um TED Talk de setembro de 2017, ela mal mencionou os dados, concentrando-se apenas na visão mais ampla e abstrata de construir confiança na sociedade.
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Apesar da visão geral, o impacto de Margrethe pode ser pequeno se ela optar por não lidar com o domínio de dados. “Pode-se argumentar que o que a comissária tem focado hoje são nas coisas pequenas, que não terão grande importância econômica para ajudar os consumidores”, diz Vinje. “A lei antitruste precisa evoluir e ser impulsionada. A Comissão Europeia não está forçando os limites”, ele disse.