Substitua a palavra “aluno” por “aprendiz”. Remova os professores da sala de aula. Retire as grades horárias. Ao término da sequência de anos letivos, não entregue um diploma para comprovar a presença no curso. Coloque no lugar de todos esses pilares, que pareciam irrevogáveis, as seguintes premissas: autonomia, muita vontade de aprender e resiliência. São esses os principais ingredientes da fórmula da École 42: uma instituição de ensino gratuita para programação e software, fundada em Paris, em 2013, pelo bilionário Xavier Niel (o 478º mais rico do mundo, com patrimônio avaliado em US$ 4,2 bilhões). Ele próprio retirou de seu bolso cerca de US$ 100 milhões para mantê-la funcionando por alguns anos.
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Três anos após o piloto da capital francesa, foi aberta a 42 do Vale do Silício, também encabeçada por Niel, o que difere totalmente do restante dos 18 campi anunciados ao redor do mundo, que operam em formato de franquia. Agora o Brasil entrou no mapa de expansão da marca e tem duas unidades prestes a inaugurar: uma em São Paulo (em agosto de 2019) e outra no Rio de Janeiro (em janeiro de 2020).
“Nunca escolhemos a cidade ou o país onde iremos abrir uma unidade. As pessoas nos procuram querendo ser parceiras. Para isso, nós os conhecemos, conversamos e avaliamos se há uma sinergia e também se concordamos ou não com a abertura. O ponto mais importante é encontrar parcerias que compartilhem os mesmos valores e o nosso espírito, de oferecer um ensino aberto e gratuito”, explica Florian Bucher, cofundador da École 42.
As franquias brasileiras passaram por esse crivo. A 42 de São Paulo, que vai inicialmente ocupar dois andares de um prédio moderno na Vila Madalena, abre as portas no dia 12 de agosto. Seus três sócios fundadores são Guilherme Décourt, Karen Kanaan e Caio Bolognesi. Para viabilizar os três primeiros anos de funcionamento, foram captados investimentos (o valor é confidencial, mas de, no mínimo, sete dígitos) de empresas como a Fundação Telefônica Vivo e FS Tecnologia.
Além da unidade paulistana, o trio detém o direito exclusivo de abrir novas franquias no país – com exceção do Rio de Janeiro, onde o direito da marca está nas mãos da aceleradora Fábrica de Startups e do IDG (Instituto de Desenvolvimento e Gestão). Na unidade carioca, no Porto Maravilha, o investimento inicial foi de R$ 12 milhões. “Trouxemos a instituição francesa a fim de resolver o principal problema do Rio de Janeiro – e do Brasil – no processo de transformação digital e inovação de grandes empresas: a formação de desenvolvedores de tecnologia. E, mais do que isso, queremos democratizar as oportunidades para que diferentes classes sociais tenham qualificação”, explica o CEO da Fábrica de Startups Brasil, Hector Gusmão, eleito Under 30 em 2018 pela Forbes. O processo seletivo para o Rio será aberto em outubro.
“Existe muita gente boa em todos os lugares, mas não existem oportunidades em todos os lugares, principalmente em países como o Brasil. O que eu vi na 42 é um método que não é perfeito, mas fascinante: pessoas de diferentes backgrounds com acesso à educação de qualidade, sem a barreira financeira”, afirma Décourt. Em São Paulo, desde a abertura do processo seletivo (em 1º de julho), que consiste em três fases, foram cerca de 6 mil inscritos – desses, mais de mil candidatos passaram para o “check-in”, que antecede a “piscina”.
CHECK-IN, PISCINA E BURACO NEGRO
O processo de seleção da 42 é global, padronizado e único. O primeiro teste consiste em exercícios de raciocínio e lógica, basicamente um game on-line. A segunda peneira é o check-in: o primeiro contato dos “tripulantes” (na 42, não se fala em alunos) com a estrutura física das écoles. O terceiro, e mais sofrido deles, é a piscina: 28 dias corridos de tarefas, nos quais a média de tempo na frente da tela é de 12 horas diárias – e que corta, logo na primeira semana, 30% dos participantes. “É, de fato, um sofrimento, as pessoas se frustram, mas o negócio é focar no aprendizado. Quem consegue trabalhar com isso desenvolve uma enorme autoconfiança”, garante Karen.
O tempo máximo para finalizar o treinamento completo é de três anos. Para medir o progresso, existem alguns desafios chamados de “buraco negro”, que devem ser resolvidos para evitar a eliminação. “O que gostamos muito da École 42 é que é uma ruptura, não é um sistema de ensino que foi adaptado. O papel do professor foi eliminado e substituído por uma inteligência coletiva. São mudanças que não apenas chamam atenção, como funcionam”, diz Décourt. Karen completa: “A nossa geração tem aquele esquema tradicional e antiquado de acordar, ir para a escola, muitas ordens a serem seguidas. A 42 é uma inversão disso. É colocar quem quer aprender como protagonista, o que desenvolve a autonomia da pessoa”.
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De Paris, o cofundador Florian sublinha a defesa de Karen. “Nós amamos dizer que na 42 as pessoas aprendem fazendo. Educação não é algo que pode ser congelado, mas, sim, adaptado. Nós mostramos que dá para fazer totalmente diferente, e o maior objetivo é que os estudantes consigam um trabalho”. Objetivo que está sendo alcançado, conforme os números das escolas em funcionamento: 98% dos alunos que passaram pelo processo saíram empregados; 30% optaram por empreender.
Já em São Paulo, os números da primeira fase revelam um pouco do que está por vir: “Cerca de 15% dos inscritos têm mais de 45 anos; 33% estão entre 30 e 45 anos; 52% estão entre 18 (a idade mínima) e 30 anos. Do total, 25% são mulheres”, revela Karen. Após os três primeiros anos de funcionamento, a expectativa da unidade paulistana é colocar no mercado 500 profissionais; a da carioca, 450. O custo total por aprendiz é de, em média, R$ 25 mil (20% do custo de um aluno da Unicamp, por exemplo). Em um país que negligencia o acesso à educação, esse pode ser um novo e promissor caminho.
Em tempo: o 42 do nome da instituição faz referência à resposta da pergunta-chave do clássico pop “O Guia do Mochileiro das Galáxias”, de Douglas Adams.
Reportagem publicada na edição 70, lançada em agosto de 2019
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