Quem diria que a paixão pelos animais poderia se tornar um case de empreendedorismo. Pois foi exatamente isso que aconteceu com Juliana Camargo, criadora e presidente da AMPARA Animal, iniciativa que surgiu em 2010 com o objetivo de mudar a realidade dos animais abandonados no Brasil.
Nascida no interior paranaense, em uma cidadezinha de 15 mil habitantes chamada Alto Paraná, Juliana, como a maioria dos vestibulandos, não sabia o que queria para o futuro. Aos 17 anos, decidiu então cursar Turismo e Hotelaria na vizinha Paranavaí. Durante o curso, teve aulas de Ecologia e Ecossustentabilidade . “Eu sempre fui louca por bichos. Já alimentava tudo que era animal de rua, arrumava briga com os vizinhos por causa disso… Quando conclui a faculdade, achei que o caminho natural era trabalhar com turismo de meio ambiente, então fui fazer uma pós-graduação em Gestão Ambiental em São Paulo”, lembra. “Foi aí que tudo mudou.”
Para poder viajar à capital para as aulas de especialização, bancar suas despesas na cidade grande e ainda pagar a mensalidade, Juliana decidiu seguir os (antigos e certeiros) conselhos da mãe e trabalhar como modelo. “Eu só cedi quando descobri quanto se pagava por um comercial, porque modelar era tudo o que não queria”, ri, revelando que vaidade não é seu forte. “Tenho mais de 200 pontos, cicatrizes pelo corpo todo. Sempre fui super desajeitada”, diz ela, do alto do seu 1,80 metro de altura, olhos verdes penetrantes e cabelos ondulados perfeitamente bagunçados.
Quando o dinheiro começou a entrar mais consistentemente, Juliana deixou o Paraná e se transferiu de vez para São Paulo. E, à medida que avançava nos estudos, sua visão de mundo mudava. Foi nessa época, em 2002, que aderiu ao vegetarianismo e começou a perceber como o comportamento do homem era capaz de interferir no meio ambiente. “Virei xiita: criei um centro de compostagem dentro do apartamento, cronometrava o banho… Fui ao extremo para depois encontrar um equilíbrio.”
Para ganhar melhores cachês, foi fazer teatro. “Naquela época, diziam que modelo não era capaz de decorar texto, por isso só pegávamos comerciais mudos. Fiz três escolas diferentes e comecei a ser requisitada para coisas mais elaboradas, até que fui convidada a fazer programas de entretenimento e esportes na Band”, conta.
Foi na televisão que Juliana percebeu que poderia amplificar sua voz em prol do meio ambiente. Com isso em mente, contatos com celebridades adquiridos graças ao trabalho como modelo e uma atuação contínua como voluntária em projetos sociais, desenhou um programa sobre educação ambiental e convidou o modelo e amigo Paulo Zulu para apresentar o piloto ao seu lado. “Foi aí que percebi o quão difícil seria fazer conteúdo sobre isso sem esbarrar nos grandes anunciantes da emissora, quase todos com telhado de vidro”, diz.
Enquanto vivenciava a decepção de ver que o programa não sairia do papel, Juliana envolvia-se cada vez mais com os resgates de animais da AILA – Aliança Internacional do Animal, uma ONG da comunidade de Paraisópolis, no bairro do Morumbi. Lá, conheceu Marta Giraldes, ativista e protecionista há mais de três décadas, hoje à frente da Ama Animais. “Ela me ensinou tudo o que sei”, conta.
UMA EMPREENDEDORA TEIMOSA
O primeiro conselho de Marta foi devidamente ignorado por Juliana. “Ela me disse que, se eu quisesse realmente fazer a diferença, que não fosse dona de abrigo. A chave para a mudança era a castração, a prevenção. Resgatar e cuidar dos animais era como enxugar gelo. Ela achava que eu tinha potencial para criar algo muito maior”, lembra, reconhecendo que a mentora tinha uma visão muito à frente do tempo sobre a causa.
Mas, como todo empreendedor, Juliana também tinha sua dose de teimosia. Chamou as amigas Marcela Becker, atual vice-presidente da AMPARA, e criou uma sede, logo tomada por animais acolhidos. “Resgatamos tantos que nos endividamos em pouco tempo. Foi um perrengue que durou três anos. Era tudo na base da informalidade, sem pessoal contratado, só voluntários, as contas aumentando… Mas como negar ajuda? Resgatar era a coisa que mais amávamos fazer.”
Foi nesse momento que Juliana relembrou os conselhos de Marta e resolveu dar um passo atrás. “Eu precisei vivenciar tudo isso para entender que não era o jeito mais eficiente de fazer o que eu queria. Fiz outra pós-graduação, desta vez em Gestão do Terceiro Setor, e comecei a entender como funcionava a filantropia no Brasil.”
Juliana explica que a proteção animal não é reconhecida como um trabalho social no país. Quase tudo é feito de forma informal: pessoas apaixonadas que, muitas vezes, tiram da própria boca para salvar vidas em sofrimento. Ela viu que precisava fazer exatamente o contrário. Criou a AMPARA Animal em 2010 – desta vez sem abrigo e com o apoio de Cassiana Garcia, atual diretora financeira da entidade, começou a estruturá-la com trabalho voluntário para arrecadação de fundos e, com eles, ajudar os protetores.
A instituição cresceu, ganhou a adesão, em 2011, da especialista em marketing Raquel Facuri, amiga de Juliana que largou uma posição de gerência na Natura para se juntar à causa, e em 2013 recebeu a certificação de OSCIP – Organização da Sociedade Civil de Interesse Público. “Então eu finalmente entendi que para que os projetos tivessem continuidade e abrangência significativa diante do problema [hoje o Brasil possui 30 milhões de animais abandonados] precisávamos prestar contas, oferecer contrapartidas e ganhar exposição na mídia. E eu só conseguiria isso com pessoal 100% dedicado. Então começamos a contratar funcionários, como uma empresa. Hoje, temos os mesmos departamentos que qualquer companhia tradicional: jurídico, financeiro, administrativo, marketing, eventos”, conta.
ENGRENAGEM CORPORATIVA
Em 2015, a AMPARA se tornou a instituição que mais ajuda animais no país ao atuar como uma “ONG mãe”, contribuindo com mais de 450 abrigos cadastrados em nível nacional, que são ajudados com ração, medicamentos, vacinas, atendimento veterinário, eventos de adoção e projetos de conscientização. Para fazer tudo isso – e ainda pagar os custos fixos, que incluem 27 funcionários e escritórios terceirizados especializados em terceiro setor (inclusive de gestão) e giram ao redor de R$ 80 mil por mês – a entidade atua em várias frentes.
Uma delas é aproveitar a expertise da instituição para prestar consultoria e gestão para terceiros. Nos últimos cinco anos, por exemplo, a AMPARA recebe pelo trabalho de gerenciamento do programa “Adotar é Tudo de Bom”, da Pedigree, hoje o maior do país. “Nós já tínhamos uma iniciativa semelhante, mas apenas em São Paulo, Rio e Paraná. Eles já atuavam em 11 estados. Então juntamos os dois e passamos a cuidar de toda a gestão”, conta Juliana.
Mais recentemente, a ONG foi contratada pelo Carrefour, depois do episódio da cadela Manchinha, morta pelo segurança de uma das lojas da rede varejista, para ajudar a gerenciar a crise e a evitar situações do tipo. “Quando eles nos procuraram, a primeira coisa que eu quis saber era se a ideia era fazer algo imediato, apenas para limpar a barra da empresa, ou se era uma política interna. Ficamos sabendo que o episódio tinha se transformado em uma crise internacional para o grupo, tamanha a mobilização da proteção animal”, conta. Desde então, a AMPARA vem trabalhando para mapear cada uma das lojas e implementar uma política de controle populacional naquelas com colônias de animais nas proximidades, além de oferecer treinamento para os funcionários da companhia e ações de adoção todos os meses. São cinco pessoas totalmente dedicadas ao trabalho, que é de longo prazo.
Existem, ainda, parcerias de associação de marca com as farmacêuticas Boehringer Ingelheim e Agener União, que fornecem medicamentos e vacinas todos os meses para 10 mil animais, além de contribuições em dinheiro.
Outra fonte de recursos é a campanha Visa Causas, na qual a operadora faz uma doação em dinheiro para a ONG escolhida pelo usuário cada vez que ele fizer uma transação de crédito ou débito. A AMPARA é a entidade da causa animal cadastrada no programa e, segundo Juliana, tem se beneficiado muito da iniciativa.
A estrutura veterinária operada pela entidade também contribui do ponto de vista financeiro. Ao operar com altos níveis de eficiência para poder atender aos mutirões de castração, ela funciona tão bem que participou de uma licitação pública para prestar o serviço em unidades móveis nas campanhas promovidas pela prefeitura de São Paulo. E ganhou. Mais do que o dinheiro, Juliana orgulha-se do feito como uma vitória da causa. “Cansamos de receber reclamações de animais que sofreram com o serviço oferecido. As empresas que fazem isso estão lá para ganhar dinheiro e fazem de tudo para baixar os custos, muitas vezes comprometendo a qualidade do atendimento e a vida dos animais.”
Outra vitória recente da entidade foi a conquista da imunidade tributária no que diz respeito ao ITCMD. “Nós só conseguimos porque somos consideradas uma ferramenta de controle de zoonoses. Ao contrário dos animais silvestres, que estão sob a Secretaria do Meio Ambiente, com uma legislação que os protege, os cães e gatos são vinculados à Secretaria da Saúde, como animais que devem ser controlados para não transmitir doenças. É um contrassenso total. Somos o segundo maior mercado pet do mundo e esses animais não têm uma legislação específica para sua proteção.”
Existem, ainda, os recursos arrecadados com o leilão. Em 2017 e 2018, por causa da crise, a ação não foi realizada, mas a edição do ano passado, numa versão pocket, levantou R$ 150 mil. Para 2020 está previsto um super evento de aniversário de uma década da ONG, com expectativa de arrecadar R$ 500 mil. “São peças de artistas, objetos de esportistas, experiências, tudo leiloado.”
O leque de captação da entidade inclui, ainda, loja física e virtual para a comercialização de produtos com a marca, a recente habilitação como ONG beneficiada no Movimento Arredondar, que tem o objetivo de fazer o ato de doar mais fácil e acessível por meio do arredondamento dos centavos no momento da compra, e a Nota Fiscal Paulista, iniciativa na qual os consumidores podem doar seus créditos, cuja maior parceira é a Cobasi.
Tudo isso tem dado resultado. Além de sustentar uma engrenagem gigantesca – responsável por mais de 1,6 milhão de quilos de ração distribuídos, 155 mil animais vacinados, 350 mil medicados, 4.600 castrados e mais de 12.000 adotados – a AMPARA acaba de ser classificada como uma das 100 melhores ONGs do Brasil. A iniciativa, do Instituto Doar, agência O Mundo Que Queremos e Rede Filantropia, em parceria com a Fundação Getulio Vargas, reconhece organizações não governamentais que se destacam pela transparência e gestão de suas atuações. Em 2019, 757 ONGs foram avaliadas em 47 critérios, como estrutura administrativa e financeira e presença de conselhos de gestão. A Ampara levou, ainda, o prêmio na categoria Melhor ONG da Região Sudeste, mesmo pertencendo a uma categoria não contemplada pela iniciativa. “Foi uma injeção de ânimo”, confessa Juliana.
O CALEDÁRIO: MUITO MAIS DO QUE UMA IDEIA
Juliana reconhece que uma de suas primeiras ideias foi a grande responsável por fazer a ficha cair. “Em 2011, quando fizemos a primeira versão do calendário, minha expectativa era pulverizar a nossa mensagem, ou seja, conscientizar as pessoas sobre a adoção.” Na época, ela teve o insight de convidar amigas famosas que tinham simpatia pela causa ou animais adotados, como as modelos Thaila Ayala e Fiorella Mattheis. “Eu achava que ao ver que elas tinham adotado, as pessoas iam querer adotar também”, lembra.
A iniciativa ganhou tanta repercussão e mídia espontânea que a ONG começou a atrair empresas interessadas nessa visibilidade e a ação foi tomando proporções gigantescas. No segundo ano, as fotos ficaram a cargo de Jacques Dequeker, renomado fotógrafo de moda, que não cobrou um centavo pelo trabalho. “Quando fizemos a primeira exposição no Shopping Iguatemi, não podia nem entrar animal lá, quiçá falar sobre vira-latas”, ri, explicando que a inspiração vem das campanhas do Peta.
A ideia acabou se transformando em uma via de mão dupla. Ao mesmo que as empresas apoiadoras ganhavam exposição e reputação, os artistas começaram a se envolver cada vez mais com a causa. Bruno Gagliasso, Paolla Oliveira e Cleo Pires são apoiadores constantes. “A participação deles em um evento da Pedigree, por exemplo, vale 100 toneladas de ração”, conta Juliana. “Eles começaram a me perguntar o que a Ampara ganharia se eles participassem de determinado evento ou ação.” Embora o calendário, propriamente dito, não gere lucro, ele acabou atraindo para a causa contribuições valiosas.
LARGA ESCALA
Assim como no mundo corporativo, ganhar escala também é um dos objetivos de Juliana para tentar mitigar o problema do abandono animal. Para deixar o caráter assistencialista de lado e ajudar outras entidades a atingirem o mesmo nível de profissionalização da Ampara, a entidade disponibiliza, gratuitamente, um estatuto modelo, para que elas possam ter um CNPJ, ensina a usar as redes sociais, oferece informação jurídica e contábil e até dá dicas para melhorar a situação dos abrigos.
“A ideia é ajudá-los a caminharem com as próprias pernas”, diz a empreendedora. A cada dois anos, a ONG promove a Cãovenção, um encontro de todos os protetores da rede de apoio em um hotel em São Paulo, com conteúdos dos mais variados, como uma consultoria.
Outra estratégia é mudar a cultura e o mindset das pessoas sobre o respeito aos animais. Para isso, a AMPARA criou um programa chamado ‘O Mundo Animal de Bibi’ para a conscientização infantil. Foi o primeiro da AMPARA inscrito na Lei Rouanet. Trata-se de uma peça de teatro itinerante, uma série com 12 episódios de animação e 12 livros (numa tiragem total de 60 mil exemplares) distribuídos gratuitamente em escolas públicas do Brasil que falam sobre temas variados, desde a situação dos animais nos circos até adoção.” Com a lei federal, o projeto – que tem estreia marcada para abril – captou R$ 1 milhão do Carrefour e R$ 450 mil da Visa.
Chamar a atenção é outra estratégia para sustentar o que já existe hoje e conquistar novos adeptos. Todos os anos, a AMPARA prepara uma campanha publicitária com base em um aspecto específico da causa. Em 2019, batizada de “Sinta na Pele”, a iniciativa caracterizou artistas em situações de sofrimento comumente vividas pelos animais – de rinhas a confinamento, tortura e abandono. Lea T, Thaila Ayala, Bruno Gagliasso, Giovanna Ewbank, Laura Neiva, João Vicente de Castro, Fernanda Paes Leme, Fernanda Tavares, Luan Santana, Romulo Arantes Neto, Ellen Jabour, José Loreto e Fiorella Mattheis protagonizaram a campanha, assinada pela Ampara Silvestre, braço da ONG voltado para animais do tipo criado em 2016 para atuar como uma aceleradora de projetos em defesa principalmente das onças pardas e pintadas.
Outra campanha de suporte à AMPARA Silvestre foi desenvolvida pela agência África, unindo moda e proteção animal. A espécie escolhida foi a onça-pintada, por se tratar de um animal ameaçado, que pode desaparecer nos próximos anos. A ação convocou o mundo da moda a retribuir pela inspiração e uso, há centenas de anos, das manchas em roseta que adornam o corpo desses animais. Assim nasceu a Life Print, a primeira animal print certificada do mundo, que garante que o lucro dos produtos feitos a partir dessa estampa seja revertido para a preservação da onça-pintada. Entre as marcas que já aderiram à proposta estão Cia Marítima, MOB, Animale e Malwee. A ação já tem conseguido resultados significativos.
Na primeira fase, os recursos foram usados para a construção do recinto da onça Tupã, no Rancho dos Gnomos, em Joanópolis, interior de São Paulo. Agora, a instituição beneficiada é o NEX, de Goiás, que proporciona cuidados e bem-estar para onças condenadas ao cativeiro, além de oferecer um local adequado para reabilitar indivíduos que podem retornar à natureza. O próximo objetivo é a compra de uma área que faz parte de um santuário natural que protege onças e outras espécies em vida livre na região amazônica. Juliana ainda não sabe como vai fazer isso. Mas alguém duvida que ela conseguirá?
Facebook
Twitter
Instagram
YouTube
LinkedIn
Baixe o app da Forbes Brasil na Play Store e na App Store.
Tenha também a Forbes no Google Notícias.