Quando uma empresa passa quase uma década desenvolvendo o videogame mais falado e mais decepcionante do ano, o fracasso é atribuído a uma série de coisas. Principalmente quando se tem 8 milhões de pré-encomendas. O videogame “Cyberpunk 2077” já havia gerado algum lucro para a empresa polonesa CD Projekt Red, a mesma por trás da série de videogames “The Witcher”, que ganhou até série na Netflix. Mas o lançamento de “Cyberpunk 2077” em 10 de dezembro logo se tornou um desastre sem proporções. E, desde então, a situação só piorou.
O jogo não só tem um desempenho terrível em consoles de última geração, como PS4 e Xbox One, como chegou aos consumidores com incontáveis bugs – incluindo falhas básicas no desenvolvimento que tornam difícil os movimentos de andar, falar e atirar. E o que é mais hilário: o game permite que o jogador personalize a genitália de um personagem, mas um bug fez com que o pênis saia das calças e seja visível durante o jogo.
LEIA MAIS: Facebook lança streaming de videogames na rede social
O desastroso “Cyberpunk 2077” também custou aos dois cofundadores da CD Projekt Red US$ 1 bilhão quando suas ações despencaram em cerca de 40% na semana passada – embora o CEO Marcin Iwiński ainda detenha um patrimônio de cerca de US$ 964 milhões. A companhia, que registrou receita de US$ 140 milhões no ano passado, esperava iniciar um novo superciclo com o “Cyberpunk 2077” para impulsionar ainda mais o preço das ações. Agora, no entanto, está focada no controle de danos e prejuízos.
A CD Projekt Red está trabalhando duro para impedir uma queda livre de preços e lucro. No dia 14, apresentou um pedido de desculpas aos jogadores, prometendo corrigir as inúmeras falhas e oferecendo aos que compraram o jogo uma opção de reembolso.
Mas, no dia 17, a Sony deu um golpe considerado esmagador para os negócios da dona do “Cyberpunk 2077”: retirou o game de suas lojas PlayStation e ofereceu reembolso aos clientes que o compraram. No dia seguinte, a Microsoft anunciou que também devolveria o dinheiro. No entanto, o jogo continua à venda em sua loja.
Um dos cofundadores da CD Projekt Red, porém, conseguiu escapar do imenso prejuízo que a enxurrada de críticas e clientes indignados poderia ter causado.
Michał Kiciński parece ser um homem que valoriza suas crenças budistas mais do que seu tênue status de bilionário – que ele conquistou duas vezes antes do lançamento do “Cyberpunk”. “Não estou em posição de aconselhar ninguém”, disse ele à Forbes por telefone, em julho, quando o jogo se aproximava de seu período crítico. “Claro, estou envolvido. Eu vejo a CD Projekt como um filho que agora está maduro e vai caminhar sozinho.”
Aos 46 anos, o empreendedor deixou a empresa, que tem sede em Varsóvia, em 2013, logo após o primeiro anúncio do “Cyberpunk 2077”. Esgotado por anos de criatividade e conflito, ele também estava cansado de enfrentar as dívidas com grandes empresas e as decisões erradas que ameaçavam fechar o estúdio que ele havia fundado com Iwiński em 1994. Foi uma jornada exaustiva de altos e baixos, segundo ele.
Como muitos dos primeiros gamers, Kiciński tinha nove anos quando começou sua jornada de quatro anos para economizar os US$ 75 necessários para comprar um computador específico para jogar. Isso foi na era pré-Nintendo, nos anos 1980: os jogos tinham pixels enormes, demoravam para carregar e os gráficos eram horríveis. “Estava juntando um dólar de cada vez”, lembra. “Eu recebi dinheiro da minha primeira comunhão, algum dinheiro de um tio e da minha avó, que dava parte da sua poupança para mim.”
Seu amor por jogos rapidamente mostrou que valia a pena. Em 1988, Kiciński ganhou alguns trocados no mercado pirata de Varsóvia copiando jogos no gravador de seu pai e vendendo-os em uma barraca. “Em um final de semana eu ganhava mais dinheiro do que meus pais faziam durante um mês inteiro de trabalho”, lembra.
Naquele mesmo ano, Kiciński conheceu Iwiński no ensino médio em Czacki, centro de Varsóvia, onde nenhum dos dois tinha boas notas. “Quanto mais eu me interessava por computadores, menos interesse eu tinha na escola”, admite.
Em 1994, Kiciński decidiu que não valia mais a pena vender jogos piratas porque uma nova lei de direitos autorais os tornara ilegal. “Vendi todo o meu equipamento e me despedi de todos os meus amigos/ funcionários. Fiquei feliz. Foi a primeira vez em muito tempo que tive um fim de semana livre.”
Àquela altura, os games já tinham avançado na vida dos jovens empreendedores. Iwinski comprou uma unidade de CD para jogar jogos em 3D maiores e mais ousados, e Kiciński ainda se lembra do dia em que viu a nova tecnologia em ação e percebeu seu potencial.
Ele começou, então, a trabalhar importando jogos legítimos de grandes empresas de todo o mundo e vendendo-os com grande margem de lucro. “Depois de dois a três meses vendendo os CD-ROMs, decidimos formar uma empresa.”
LEIA MAIS: Tencent vê isolamento impulsionar receita com videogames
Os custos iniciais da CD Projekt Red não foram exatamente impressionantes. Trabalhando em uma pequena sala no apartamento de um amigo, a dupla desenvolveu relacionamentos com desenvolvedoras dos Estados Unidos, como a American Laser Games, que fez jogos populares da época como “Mad Dog McCree” e “Who Shot Johnny Rock?”.
Em cinco anos, Kiciński e Iwiński encontraram o que acreditavam ser o próximo grande jogo de sucesso, o “Baldur’s Gate”, desenvolvido pela empresa canadense BioWare e distribuído pela Interplay Entertainment. A decisão foi certeira. A CD Projekt se aproximou dos editores do jogo e contratou dubladores poloneses para a distribuição local. “Baldur’s Gate” também marcou o início do sucesso da empresa, que encontrou uma maneira de derrotar os piratas, já que os clientes estavam dispostos a pagar entre US$ 10 e US$ 13 a mais pelo jogo da CD Projekt para obter todos os “extras”.
“Baldur’s Gate” rendeu mais de US$ 600 mil em vendas para a CD Projekt em sua primeira semana. E a companhia, então, deu o próximo passo lógico. “Tínhamos o sonho de fazer nossos próprios jogos desde o início”, diz Kiciński. “Sabíamos que era complicado, sabíamos que consumiria muito dinheiro. E não tínhamos experiência.”
Embora a CD Projekt não tivesse conhecimento sobre o desenvolvimento de jogos, Kiciński e Iwiński acreditaram ter encontrado outro veículo perfeito para sua empresa: “The Witcher”, um elaborado mundo de fantasia baseado nos romances do mesquinho literário favorito da Polônia, Andrzej Sapkowski.
Mais uma vez, Kiciński e Iwinski tiveram um ótimo instinto. A franquia “Witcher”, lançada em 2007, vendeu cerca de 50 milhões de unidades com três jogos, e “The Witcher 3: The Wild Hunt” foi considerado um dos principais jogos de todos os tempos, com vendas que ultrapassaram 28 milhões de cópias.
REVÉS
Mas, então, quase tudo deu errado. A crise financeira de 2009 foi particularmente devastadora para a CD Projekt Red, que teve que demitir quase metade de seus 350 funcionários. “Havia um grande problema de fluxo de caixa”, explica Kiciński. “Era muito difícil pagar os salários.” Por fim, Kiciński ajudou a CD Projekt a encontrar um investidor: Zbigniew Jakubas. Os cofundadores concordaram em abrir mão de 22% da empresa em troca do financiamento necessário para produzir os jogos – cerca de US$ 4 milhões. No ano seguinte, uma fusão reversa com a empresa de tecnologia Optimus SA colocou o estúdio na bolsa de valores de Varsóvia em dezembro.
Quando “The Witcher 2” foi lançado, em maio de 2011, Kiciński estava se sentindo esgotado. Embora o jogo tenha sido um sucesso comercial e de crítica, o executivo estava se recuperando de uma fratura na perna e da doença de Lyme. “Depois do primeiro ‘Witcher’, a equipe de desenvolvimento cresceu de forma que a queima de caixa se acelerou”, conta.
A equipe começou a desenvolver dois jogos “Witcher” simultaneamente no meio de uma crise financeira. As equipes de desenvolvimento começaram a trabalhar no “Witcher 2”, mas a tecnologia antiga tinha muitas limitações e enfrentou problemas de funcionalidade semelhantes aos que afetam o “Cyberpunk 2077”. “Basicamente, concentramos toda a nossa energia e recursos para fazer o ‘Witcher 2’ para o mercado”, diz Kiciński.
Foi nesse momento que Kiciński começou a planejar a sua saída do negócio e a pensar no seu legado. Ele construiu uma produtora que desenvolveria o “Witcher 3” e poderia até tocar a próxima franquia da CD Projekt, o “Cyberpunk 2077”, baseado no título de RPG do designer de games Mike Pondsmith.
Ele finalmente conseguiu tempo suficiente e a velocidade necessária para produzir um jogo tão digno quanto a lucrativa série “Witcher”. Mas ele não chegou a ver o resultado.
LEIA MAIS: Governo reduz IPI de videogames
A CD Projekt Red é conhecida no mercado por exaurir seus funcionários nos meses finais de produção. Dada a pressão para produzir outro game de grande sucesso, Kiciński entendeu que a única maneira de cumprir os prazos implacáveis era cortar custos e corrigir as falhas após o lançamento. Esses erros de produção acabariam se tornando desastrosos para o “Cyberpunk 2077”, mas Kiciński deixou isso para outras pessoas resolverem. “Assim que a empresa se estabilizou, me senti confiante de que poderia sair.”
Ao longo de seu longo período de desenvolvimento, o “Cyberpunk 2077” consumiu muitos recursos em divulgação e marketing. Seu maior triunfo pré-lançamento foi a escolha do ator de Hollywood Keanu Reeves como o personagem principal do jogo. Nos últimos meses, apesar de atrasar o lançamento em vários meses, a pandemia proporcionou uma rara oportunidade de sucesso. Com toda a lista de filmes de grande orçamento engavetada em 2020, não poderia ter havido melhor momento para lançar um videogame desse calibre.
Os analistas previam que o “Cyberpunk 2077” poderia vender mais de 25 milhões de unidades no primeiro ano ao preço de US$ 60, o que significaria uma receita recorde bilionária para a empresa.
Mas, nos meses anteriores ao lançamento, muito da fama em torno do game já havia evaporado. Após vários atrasos no lançamento – a data mudou de abril para setembro e de setembro para novembro – antes de ser anunciado para 10 de dezembro. A CD Projekt Red supostamente intensificou as produções – e incluiu semanas de trabalho de seis dias para cumprir o prazo final.
Para lançar o jogo a tempo das compras de Natal, foram adotados alguns atalhos, que levaram a inúmeros bugs, incluindo a incompatibilidade com consoles mais antigos e o infame caso do pênis, juntamente com toda uma série de problemas que poderiam ter sido evitados. Vários analistas disseram à Forbes que a expectativa era que a CD Projekt Red alternasse os lançamentos do “Cyberpunk” e do “Witcher” a cada dois anos e meio, com conteúdo para download que gerassem receita. Com o tempo extra agora necessário para corrigir os problemas do “Cyberpunk 2077″, e para evitar erros semelhantes nos próximos lançamentos, esse calendário provavelmente foi abandonado.
Depois que Kiciński saiu da CD Projekt Red em 2013, Iwiński tornou-se a cara da empresa, trabalhando ao lado do irmão mais velho de Kiciński, Adam, que foi o primeiro funcionário da empresa em 1994 e agora atua como presidente e coCEO.
LEIA MAIS: Magazine Luiza compra fintech de pagamentos por R$ 290 mi
Hoje, Michał Kiciński ajuda a administrar a Mudita, uma empresa de hardware que projetou uma alternativa simples e, ao mesmo tempo, sofisticada para smartphones com o objetivo de ajudar aqueles que sofrem de “excesso de informações” e “padrões viciantes no celular”. O lançamento dos telefones está previsto para abril de 2021. Ele detém 49% da nova empresa e seu otimismo continua tão confiante como antes.
“Este telefone”, diz ele, “é o meu novo ‘Witcher 1’.”
Facebook
Twitter
Instagram
YouTube
LinkedIn
Siga Forbes Money no Telegram e tenha acesso a notícias do mercado financeiro em primeira mão
Baixe o app da Forbes Brasil na Play Store e na App Store.
Tenha também a Forbes no Google Notícias