Dois casos muito diferentes me levaram a refletir sobre a confiança coletiva – e como ela pode ser abalada instantaneamente a partir dos meios digitais de informação. Estou me referindo ao potencial que esses meios têm de difundir uma questão e, de forma muito veloz, trazer à tona uma infinidade de manifestações que polarizam os favoráveis e os contrários, independentemente da veracidade dos fatos. Antes, havia um espaço depurador de tempo até a informação atingir a opinião pública, que apagava o que era, digamos, fogo de palha.
Isso me levou ao pensador francês Edgar Quinet (1803-1875), que assinalou: “A democracia tem necessidade de justiça, enquanto a aristocracia e a monarquia podem passar bem sem ela”. De fato, os dois casos sobre os quais vou discorrer levantaram questionamentos sobre a democracia e, claro, sobre a justiça.
O primeiro aconteceu na apuração dos votos na eleição norte-americana. O mundo acompanhou boquiaberto a acirrada disputa entre Joe Biden e Donald Trump. Mais do que o resultado, chamaram atenção as particularidades do processo eleitoral americano. Para nós, brasileiros, acostumados ao sistema eletrônico de votação e a conhecer o resultado em horas apenas, o voto em cédula de papel e a contagem manual nos remeteram a uma contradição contemporânea absurda no país que colocou o mundo na era digital.
Porém, a instantaneidade da informação e a possibilidade de expor, por meio de celulares e mídias sociais, as entranhas de um processo levado à fervura com intensas acusações de fraude, feitas principalmente por Trump, ergueram uma espessa cortina de fumaça sobre a solidez da democracia americana. A recusa do republicano em aceitar a derrota e sua pretensão de judicializar a disputa abalaram a confiança coletiva americana no sistema eleitoral e, pior, nas eleições, dividindo o país e colocando em xeque os futuros pleitos.
"O único modo de escapar ao abismo é observá-lo, e medi-lo e sondá-lo, e descer para dentro dele." - Cesare Pavese
À mesma época, estourou uma bolha de comoção nacional após parte de um julgamento em Santa Catarina viralizar nas redes. Nas imagens, via-se uma jovem ser confrontada de forma vexatória por um advogado na frente da defensoria pública e do juiz. A jovem Mariana Ferrer era a possível vítima de um crime de estupro. A opinião pública nacional viu ali um comportamento machista, violento e humilhante praticado pelo advogado de defesa do homem acusado de estupro, e uma flagrante inércia do juiz e do promotor. Infelizmente, esse tipo de abuso não é exceção no cotidiano forense. A grande diferença é que, na maioria das vezes, as vítimas são pobres, pretas ou ambas.
Aqui, não pretendo analisar o acerto do julgamento apenas em razão do resultado favorável ao acusado — cabe à sociedade exigir sempre do Direito Penal a garantia de um processo justo e legítimo — mas, sim, apontar que esse tipo de situação é incompatível com um sistema de justiça que se pretende inclusivo e equitativo no Estado democrático de direito. Pressupõe-se dignidade de tratamento.
Da mesma forma que a confiança coletiva americana pode ter sido abalada pelo processo eleitoral de 2020, o episódio protagonizado em Santa Catarina deixou evidente o desamparo à vítima e o desserviço no combate à violência pelo sistema judiciário.
É preciso mudanças. Uma delas pode ser a desconstrução do abusivo direito de defesa, que devasta a vida da vítima, assim como o reconhecimento, de fato, da condição de vulnerável da vítima de crime sexual, não de testemunha, como estabelece o regramento atual. Então, me arrisco a dizer que o único modo nesses casos de escaparmos ao abismo, como bem assinalou o escritor italiano Cesare Pavese, é sondá-lo e descer para dentro dele em busca de soluções.
Nelson Wilians é CEO da Nelson Wilians & Advogados Associados
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