Era 1985. South Beach estava na pior, sua infraestrutura malconservada, hotéis e edifícios abandonados. Num artigo de 1984, o New York Times a tinha caracterizado como “uma área degradada, desleixada, de prédios abandonados, terrenos baldios e ruas cheias de lixo, que o pessoal daqui chama de a pior favela da Flórida”.
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Mas Gloria Estefan adorava a praia. Quando criança, ia para lá todas as tardes, depois da escola, com o avô materno, Leonardo.
“Eu amo a água”, diz ela. “Nasci numa ilha. Adoro estar perto da água.”
Assim, quando se casou com Emilio, as visitas de fim de semana a South Beach continuaram obrigatórias, “e nós sempre vínhamos a Star Island, rodando de carro e sonhando”. A meio caminho entre o continente e South Beach, Star Island era um pequeno e exclusivo reduto de menos de 30 casas, todas à beira d’água. Comprar uma continuava sendo um sonho, até que a música Doctor Beat, do Miami Sound Machine, virou um sucesso internacional, o dinheiro começou a entrar, e os Estefan compraram sua primeira residência em Star Island, a literalmente alguns passos de South Beach.
Logo veio um pequeno prédio comercial na Euclid Avenue, compra baseada na convicção de Gloria de que South Beach mudaria para sempre. “Eu disse: ‘Um dia, vão redescobrir a praia’.” Foi o início de uma série de investimentos imobiliários astutos que mostram como os Estefan têm sido visionários em sua música e em seus negócios, dois empreendimentos fortemente vinculados à sua cidade de adoção, Miami.
"Eles sabem a importância de doar à comunidade e nunca se esqueceram de suas raízes cubanas" - Craig Robins, CEO da Dacra e criador do Miami Design District“Miami, com sua mescla de pessoas, era um lugar singular”, diz Emilio. “Era pouco desenvolvida, mas sabíamos que ela queria ter um novo estilo de música, um novo estilo de comida. Se havia uma cidade que precisava se desenvolver com sua própria personalidade, era Miami. E você quer retribuir à cidade que foi incrível para você. Foi a primeira cidade que nos aceitou.”
“Quer dizer que eles não fundaram Miami?”, diz Afo Verde, rindo. Verde, chairman e CEO da Sony Music Latin/Iberian Penninsula, gravadora de Gloria, conhece os Estefan há décadas, e acompanha desde o início o impacto de sua música em Miami – e além. “Eles foram os pioneiros. Emilio e Gloria representam o antes e o depois em música latina, e Miami é seu lugar.”
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Numa perfeita tarde de Miami, estou bebericando café cubano com os Estefan no quintal da residência deles em Star Island – onde a casa original que compraram ainda permanece como um anexo – com vista para a água. De vez em quando, passam barcos repletos de turistas, que acenam para o casal mais famoso de Miami.
Os Estefan estão acostumados com isso. E, enquanto Gloria é mais reservada (a atividade preferida dela é passear de barco com a família), Emilio aprecia o contato diário com Miami e sua gente. Toda manhã, ele segue de bicicleta pela McCarthur Causeway até a Marina e depois até a famosa Ocean Drive, onde invariavelmente faz uma parada para tomar um café cubano em seu restaurante, o Larios on the Beach. O casal também é dono do Cardozo Hotel, do Costa d’Este Resort & Spa, em Vero Beach, do Estefan Kitchen, no Miami Design District, e do Bongos Cuban Café, em Orlando. Além, é claro, dos lendários estúdios Crescent Moon, onde foram gravados os álbuns de Gloria que venderam milhões. “Todo mundo me conhece”, diz Emilio. “Os carros param e o pessoal grita: ‘Emilio, Emilio!’ Às vezes, saio com meu treinador, mas às vezes saio sozinho e não tem problema. As pessoas têm por nós o mesmo afeto que temos por elas.”
“A contribuição deles a Miami é imensa,” diz Craig Robins, fundador e CEO da Dacra Development (e personagem da matéria de capa desta edição). “E em todas as fases do crescimento da cidade – desde seus primeiros investimentos na Ocean Drive (que incluem o Larios, seu primeiro restaurante), ao pôr Miami no mapa como destino e fonte de criatividade na indústria musical, até seus numerosos projetos filantrópicos.”
O caso de amor dos Estefan com Miami começou quando cada um deles se mudou para a cidade como exilado, após a revolução cubana, e encontrou não só uma comunidade cubana bastante unida, como também uma mescla de pessoas acolhedoras – judeus, haitianos, dominicanos, norte-americanos. Isso acabaria transparecendo na exuberante variedade musical dos Estefan, essa inebriante mistura de batidas cubanas e americanas que Emilio gosta de chamar de “feijão com hambúrguer”.
Foi lá que Gloria e Emilio se conheceram e que ele a convenceu, em 1975, a cantar na banda dele, a Miami Latin Boys. Casaram-se, os Latin Boys viraram Miami Sound Machine, e Gloria Estefan se tornou a primeira latina a conquistar o mercado internacional, vendendo a espantosa cifra de 70 milhões de álbuns pelo mundo, com sucessos como Conga, Mi Tierra e Coming Out of the Dark. Por sua parte, Emilio se tornou um produtor com toque de Midas (Shakira, Thalia, Alexandre Pires e muitos outros trabalharam com ele), tendo ganhado 19 Grammys e erguido um império imobiliário e midiático. Os Estefan continuam no topo do mundo.
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No Aeroporto Internacional de Miami, um restaurante Estefan Kitchen Express saúda os viajantes com comidas inspiradas na avó de Gloria, que trabalhou como cozinheira quando veio para os Estados Unidos.
O item preferido de Gloria no cardápio é o Hot Cuban, sanduíche com um tipo de pão que “me lembra da massa que minha avó fazia. Eu sempre digo: ‘Não vá embora de Miami sem provar um Hot Cuban!’”
No âmbito da música, o musical On Your Feet!, baseado na vida deles, foi sucesso na Broadway e está em turnê nos Estados Unidos. Enquanto isso, Gloria vem regravando seus clássicos com arranjos brasileiros. Emilio está produzindo um novo álbum para o trio italiano Il Volo e desenvolvendo uma nova série para a Amazon e um filme estrelado por John Leguizamo. Como sempre, tudo será produzido em Miami. “Dirigi muitos filmes, e sempre me diziam para fazê-los em Hollywood ou na Inglaterra”, conta Emilio. “Eu dizia: ‘Não. Tudo tem de vir para Miami. É a cidade que abriu as portas para mim’.”
Os Estefan retribuíram generosamente. São conhecidos por contribuírem com diversos projetos benefi centes e, através de sua própria fundação, Gloria levantou US$ 40 milhões em prol do Projeto Miami para Curar a Paralisia, causa preciosa para ela desde que ficou quase paralisada num acidente com o ônibus da turnê de 1990.
“Sempre me impressiono com a humildade e generosidade dos Estefan – especialmente durante seu evento de Ação de Graças, quando eles passam o dia cozinhando e distribuindo comida grátis para aumentar a conscientização e os fundos de combate à fome em nossa região,” diz Robins. “É comum vê-los arregaçar as mangas, envolver-se pessoalmente e usar sua fama como força positiva para provocar mudanças em nossa comunidade.” Este ano, o casal foi homenageado pelo Conselho Escolar de Miami- Dade por suas realizações e contribuições com a comunidade global.
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“Os Estefan sabem a importância de doar à comunidade e nunca se esqueceram de suas raízes cubanas”, disseram as autoridades escolares. “Eles criaram a Fundação Gloria Estefan com o propósito de alcançar quem tem dificuldades por estar fora da proteção da sociedade, promovendo a saúde, a educação e o desenvolvimento cultural. São verdadeiros exemplos do melhor que Miami tem a oferecer.”
E o que Miami tem a oferecer é uma mistura de culturas que permanece irresistível para os Estefan. A cidade, diz Gloria, divertindo-se, “tem sua própria política externa, o que é muito interessante. Nós somos uma ponte – temos o melhor da América Latina e o melhor dos Estados Unidos. É muito estimulante”.
O então presidente Barack Obama resumiu isso da melhor maneira quando concedeu aos Estefan a Medalha Presidencial da Liberdade, uma rara honraria, em 2015. “Algumas pessoas achavam que eles eram norte-americanos demais para os latinos e latinos demais para os norte-americanos”, disse Obama sobre os Estefan antes da entrega das medalhas. “No fim das contas, todo mundo queria apenas dançar e curtir a conga.”
Reportagem publicada na edição 57, lançada em março de 2018