Está uma temperatura agradável de 27 graus num dia de meados de dezembro em Singapura, e algo está intrigando Allen Day, um cientista de dados de 41 anos. Usando as ferramentas que desenvolveu no Google, ele observa um uso misterioso e coordenado de inteligência artificial no blockchain da plataforma Ethereum. O ether é a terceira maior criptomoeda do mundo (depois do bitcoin e do XRP) e ainda tem uma capitalização de mercado de cerca de US$ 11 bilhões, apesar de ter perdido 83% de seu valor em 2018. Ao analisar o blockchain dele – a base de dados distribuída de transações que está na base da criptomoeda –, Day detecta um “montão de agentes autônomos” movimentando fundos “de maneira automatizada”. Embora ainda não saiba quem criou essa IA, ele suspeita que possam ser os agentes das bolsas de criptomoedas negociando entre si para inflacionar artificialmente o preço do ether. “Não são apenas agentes únicos fazendo as coisas sozinhos”, diz Day na sede do Google para a região da Ásia-Pacífico. “Estão se unindo a outros agentes para ter um efeito de grupo maior.”
LEIA MAIS: Bancos Centrais usam o blockchain para estabilizar o sistema financeiro global
O cargo oficial de Day é o de representante sênior de desenvolvedores do Google Cloud, mas ele descreve seu papel como o de “cliente zero” das iniciativas de computação na nuvem da empresa. Assim sendo, sua função é prever a demanda antes que um produto exista, e ele acha que tornar o blockchain mais acessível é a próxima grande novidade. Assim como o Google tornou a internet mais utilizável (e acabou lucrando com isso) 20 anos atrás, seus próximos bilhões podem vir de jogar um holofote nos blockchains. Se Day for bem-sucedido, o mundo saberá se o uso real do blockchain está à altura da empolgação em torno dessa tecnologia.
No ano passado, Day e uma pequena equipe de desenvolvedores de código aberto começaram a carregar dados dos blockchains inteiros das plataformas Bitcoin e Ethereum no BigQuery, serviço de análise de big data do Google. Depois, com a ajuda do desenvolvedor externo Evgeny Medvedev, ele criou um conjunto de softwares sofisticados para fazer buscas nos dados.
Apesar da total falta de publicidade, a notícia do projeto se espalhou rapidamente entre programadores ligados às criptomoedas. No ano passado, com o uso das novas ferramentas, foram criados mais de 500 projetos voltados a todo tipo de coisa, desde prever o preço do bitcoin até analisar a disparidade de riqueza entre os detentores de ether.
No que diz respeito à computação na nuvem, o Google está muito atrás da Amazon e da Microsoft. No ano passado, o Google embolsou uma receita de US$ 3 bilhões com serviços de nuvem, segundo estimativas. A Amazon e a Microsoft, por sua vez, faturaram cerca de US$ 27 bilhões e US$ 10 bilhões, respectivamente.
Day espera que seu projeto, conhecido como Blockchain ETL (sigla em inglês de “extrair, transformar, carregar”), ajude até mesmo o campo onde se desenrola essa concorrência. No entanto, mesmo aí o Google está tentando recuperar o atraso. A Amazon entrou forte no blockchain em 2018 com um conjunto de ferramentas para criar e gerenciar livros-razão distribuídos. A Microsoft adentrou esse espaço em 2015, quando lançou ferramentas para o blockchain da plataforma Ethereum. Agora ela hospeda uma série de serviços dentro de seu Azure Blockchain Workbench. Contudo, enquanto a Amazon e a Microsoft estão se concentrando em facilitar a criação de aplicativos de blockchain, Day se concentra em expor como os blockchains estão realmente sendo usados e por quem.
“No futuro, realizar mais atividades econômicas com blockchain não exigirá apenas um nível de confiança consensual”, diz Day, referindo-se ao mecanismo central de validação da tecnologia blockchain. “Exigirá ter alguma confiança em termos de saber sobre as pessoas com quem você está, de fato, interagindo.” Em outras palavras, se o blockchain atingir o grande público, alguns de seus recursos de anonimato, tão adorados, terão de ser abandonados.
VEJA TAMBÉM: IBM, Walmart e Merck iniciam programa de blockchain
Natural de Placer County, na Califórnia, Day ganhou seu primeiro computador aos 5 anos de idade e, alguns anos depois, começou a escrever programas simples. A fascinação por vulcões e dinossauros direcionou seu interesse para as ciências da vida, e ele acabou por se formar em biologia e mandarim pela Universidade do Oregon no ano 2000. De lá, ele foi para a UCLA para fazer doutorado em genética humana e ajudou a desenvolver um programa de computador para explorar o genoma.
Foi na UCLA que Day começou a recorrer à computação distribuída, conceito central dos blockchains, que armazenam seus dados em uma grande rede de computadores individuais. No início dos anos 2000, Day precisava analisar a gigantesca quantidade de dados que compõe o genoma humano. Para resolver esse problema, ele conectou muitos computadores pequenos, aumentando enormemente a potência deles.
“A tecnologia de sistemas distribuídos está no meu kit de ferramentas há um bom tempo”, afirma Day. “Eu vi que havia características interessantes dos blockchains que poderiam operar um supercomputador mundial.”
Contratado em 2016 para trabalhar nas áreas de saúde e bioinformática do Google, Day fez a transição para os blockchains, a iniciativa de computação distribuída mais em alta no planeta. Porém, as habilidades que ele tinha aperfeiçoado – sequenciamento de genomas de doenças infecciosas em tempo real e uso de IA para aumentar a produção de arroz – não eram fáceis de aplicar à decodificação de blockchains.
Antes de Day e Medvedev lançarem suas ferramentas, a simples pesquisa em um blockchain exigia softwares “exploradores de blocos” especializados, que permitiam aos usuários caçar apenas transações específicas, cada uma rotulada com um emaranhado único de mais de 26 caracteres alfanuméricos. O Blockchain ETL do Google, por outro lado, permite que os usuários façam buscas mais amplas em ecossistemas inteiros de transações.
Para demonstrar como os clientes poderiam usar o Blockchain ETL para melhorar a economia das criptomoedas, Day usou suas ferramentas para analisar o chamado “hard fork” – uma divisão irrevogável de uma base de dados de blockchain – que criou uma nova criptomoeda, o bitcoin cash, a partir do bitcoin, em meados de 2017.
E TAMBÉM: Microsoft lança serviços de computação em nuvem para IA e blockchain
Essa divisão em particular foi resultado de uma espécie de guerra, dentro da comunidade bitcoin, entre um grupo que queria manter o bitcoin como era e outro que queria desenvolver uma moeda que, como o dinheiro, fosse mais barata e rápida de usar em pequenos pagamentos. Usando o BigQuery do Google, Day descobriu que o bitcoin cash, em vez de aumentar as chamadas microtransações, como afirmavam os desenvolvedores desertores, estava, na verdade, sendo acumulado por grandes detentores de bitcoin cash. “Tenho muito interesse em quantificar o que está acontecendo para que possamos ver onde estão os casos de uso legítimos do blockchain”, diz Day. “Aí poderemos passar ao próximo caso de uso e determinar para que essas tecnologias são, de fato, apropriadas.”
Se o blockchain atingir o grande público, alguns de seus recursos de anonimato, tão adorados, terão de ser abandonadosO trabalho de Day vem inspirando outras pessoas. Tomasz Kolinko é um programador de Varsóvia e criador de um serviço que analisa contratos inteligentes, uma característica de certos blockchains destinada a fazer cumprir, de forma transparente, obrigações contratuais como empréstimos garantidos, mas com menor dependência de terceiros, como advogados. Kolinko estava frustrado com suas buscas em blockchains.
Em dezembro, Kolinko conheceu Day durante um hackathon em Singapura. Passado um mês da reunião, Kolinko estava usando as ferramentas do Google para buscar um recurso de contrato inteligente denominado “autodestruição”, destinado a limitar o tempo de vida de um contrato. Usando seus próprios softwares em conjunto com os de Day, Kolinko levou 23 segundos para pesquisar 1,2 milhão de contratos inteligentes – algo que antes levaria horas. O resultado: quase 700 deles deixavam em aberto um recurso de autodestruição que permitiria que qualquer pessoa cancelasse o contrato inteligente em um instante, independentemente de essa pessoa estar autorizada ou não. “Antigamente, não era fácil verificar todos os contratos que estavam usando esse recurso”, explica Kolinko. “Essa ferramenta é a mais assustadora e inspiradora que eu já desenvolvi.”
Agora, Day está se expandindo para além do bitcoin e do ether. Litecoin, zcash, dash, bitcoin cash, ethereum classic e dogecoin estão sendo adicionados ao BigQuery. Desenvolvedores independentes estão carregando seus próprios conjuntos de dados de criptomoedas no Google. Em agosto passado, um desenvolvedor holandês chamado Wietse Wind carregou no BigQuery todos os 400 gigabytes de dados de transações do blockchain XRP da Ripple, outra criptomoeda popular. Os dados de Wind, que ele atualiza a cada 15 minutos, levaram um designer dinamarquês de nome Thomas Silkjaer a criar um mapa de calor dos fluxos de criptomoedas. A esfera colorida resultante revela, de uma só vez, mais de 1 milhão de carteiras de criptomoedas, inclusive grandes bolsas como a Binance e a startup de cartões de débito de criptomoedas londrina Wirex, que estão profundamente envolvidas em transações com XRP.
“O Google tem sido um gigante adormecido na área de blockchain”, comenta o CEO da BlockApps, Kieren James-Lubin, que está atuando em parceria com o Google para vender aplicativos empresariais com blockchain. Além do trabalho de Day, o Google registrou várias patentes relacionadas ao blockchain. Inclusive uma, em 2018, para usar uma “malha” de blockchains interoperacionais destinada a aumentar a segurança, algo fundamental em um mundo onde hackers já roubaram milhões em criptomoedas. A empresa também está incentivando seus desenvolvedores a criar aplicativos com o blockchain da plataforma Ethereum, sendo que a GV, divisão de capital de risco do Google, fez diversos investimentos significativos em startups de criptomoedas.
Parece que o gigante está acordando.
Reportagem publicada na edição 66, lançada em março de 2019
Baixe o app de Forbes Brasil na Play Store e na App Store