Poucas coisas são unânimes na história da humanidade. Uma delas, certamente, é a possibilidade de ganhar dinheiro comendo chocolate.
Criada pelos maias em 1.500 a.C., a iguaria foi considerada um alimento sagrado pelo povo da região. Há quem diga que o Rei Montezuma, imperador asteca do período, consumia 50 copos da bebida por dia para estimular a sabedoria e o poder. Mas o chocolate conhecido hoje – doce e em barra – só apareceria mais de 3.000 anos depois, em meados de 1.700 d.C., quando a primeira chocolataria abriria suas portas em Paris.
LEIA MAIS: Conheça a empresa que quer acabar com a culpa na hora de comer chocolate
Desde então, o frenesi é quase generalizado. E com a evolução do produto, que foi se tornando cada vez mais acessível ao longo do tempo, logo se tornou necessário a profissionalização de especialistas em sabores nas fábricas. Assim surgiram os degustadores e analistas responsáveis pela checagem da qualidade das barras, bombons e outros derivados. Os verdadeiros – e sortudos – “Oompa Loompas” da vida real.
Degustador passa o dia comendo?
Ao contrário do que acredita a maioria das pessoas, os degustadores não são contratados para experimentar os doces durante oito horas, cinco dias por semana. Isso porque a profissão agrega diferentes funções – do controle de qualidade dos itens na área de cultivo à definição da data de validade e elaboração de novas receitas e produtos. Tarefas que demandam tanto a atenção das papilas gustativas quanto o conhecimento técnico sobre o chocolate.
“Na verdade, degustar é uma parte do nosso trabalho. Quando estamos trabalhando em um novo produto, utilizamos o sensorial para avaliar se ele atingiu o perfil de aroma e textura esperado. Já no recebimento das matérias-primas, provamos os itens para garantir que estão no padrão, capazes de gerar um alimento com a qualidade esperada. Também utilizamos a degustação para determinar a vida de prateleira dos produtos, acompanhando se as alterações ocorridas ao longo do tempo são aceitáveis para a entrega”, explica Angelica Regina da Silva Santos, analista de desenvolvimento da fabricante norte-americana Hershey’s .
Além disso, da mesma forma que um professor precisa estudar o conteúdo antes de dar uma aula, os degustadores provam chocolates rotineiramente para conhecer as opções disponíveis no mercado. “Nós degustamos já analisando e imaginando como vamos usar aquele produto e quais combinações de sabor podem dar certo”, conta Bertrand Busquet, diretor da Chocolate Academy São Paulo, da Barry Callebaut.
Na prática, o momento funciona quase como uma meditação – o analista sensorial deve se concentrar para não perder nenhum detalhe. Entre o prazer e a técnica, é liberado experimentar chocolate até mesmo antes do café da manhã. “Agora são 8h15 e, neste horário, todos os dias, eu já provei uns cinco chocolates. E faço a mesma coisa depois do almoço e do jantar, repetindo os produtos, já que, dependendo do horário da prova, podemos encontrar notas diferentes de um mesmo alimento”, conta Arcelia Gallardo, especialista em chocolate bean to bar, degustadora de chocolates finos e fundadora da Mission Chocolate.
E, para atender os diferentes objetivos do mercado, o método de avaliação do especialista deve acompanhar a lógica do produto. Enquanto alguns doces foram feitos para agradar ao maior número possível de consumidores, outros já trazem sabores mais complexos para harmonizações, por exemplo. “É importante entender qual metodologia ou técnica deverá ser aplicada para fornecer o resultado desejado, garantindo a satisfação daquele público-alvo”, ressalta Larissa Guerrini, principal technician sensory da Mars, produtora de alimentos e guloseimas.
Nem tudo é perfeito
A profissão, entretanto, não é feita apenas de momentos doces e prazerosos. Como profissionais, os degustadores também são submetidos a situações desagradáveis e alguns “perrengues” próprios do ofício. Entre as queixas mais comuns dos especialistas estão a má qualidade de alguns ingredientes e resultados finais um tanto decepcionantes.
“Existem chocolates bons e muito bons, mas também existem os ruins e os muito ruins. Diferente do vinho que você pode cuspir, o chocolate é mais difícil. Nem sempre é bom. E engorda, claro, o que pode interferir na saúde e na auto-estima”, diz Zelia Frangioni, fundadora dos portais “Chocólatras Online”, “Choco Web” e do prêmio Bean to Bar Brasil. “Tudo isso faz parte do trabalho. O principal obstáculo é aprender a aprimorar o paladar, para poder identificar defeitos que vão além do sabor e interferem no olfato e no visual. Precisamos entender sobre todas as etapas da fabricação”, reforça Andrei Martinez, gerente tree to store da Cacau Show.
Para Arcelia, a degustação também envolve um desprendimento do próprio paladar. Nascida nos Estados Unidos, a especialista estranhou o uso do jambu, hortaliça típica do Pará, no preparo de alguns chocolates brasileiros. Mesmo assim, ela explica, foi preciso que ela experimentasse não apenas os doces que levam o ingrediente, mas conhecesse também o gosto da planta em sopas e in natura para garantir a avaliação perfeita.
“Você precisa provar tudo, não tem como falar que não gosta de vieira ou de queijo mofado. Como degustadora, eu preciso experimentar todos os sabores do mundo para identificar o que tem em determinado chocolate. Isso inclui todos os cheiros e aromas também. É o lado mais chato”, confessa a profissional.
Outros requisitos curiosos da profissão incluem a proibição do fumo, já que o hábito interfere no gosto dos alimentos, e a gula antes das provas de qualidade. “Um dos pré-requisitos básicos para a degustação é não estar com fome”, ressalta a coordenadora de qualidade da Nestlé, Mariana Bartié.
Não é preciso encontrar o tíquete dourado para começar na profissão
Se na “Fantástica Fábrica de Chocolate”, filme de 1971, os visitantes precisavam encontrar um tíquete dourado para ter acesso às instalações da empresa de Willy Wonka e experimentar as guloseimas à vontade, os “chocólatras profissionais” precisam se dedicar muito aos estudos e especializações. Da mesma forma que os personagens da obra, entretanto, cada degustador acaba ingressando no setor de uma maneira diferente: há engenheiros, chefs e até farmacêuticos atuando na função.
A maior parte desses profissionais busca uma formação complementar para se especializar. Entre as instituições recomendados pelos especialista estão algumas nacionais, como a Castelli Escola de Chocolataria, em Canela (RS); o CIC (Centro de Inovação do Cacau), em Ilhéus (BA); e o Ital (Instituto de Tecnologia de Alimentos), em São Paulo (SP); além de opções internacionais, mas que oferecem formatos online, como o ICCT (International Institute of Chocolate and Cacao Tasting), na Inglaterra, e a École Chocolat, no Canadá. A carga horária pode variar conforme o nível e a turma.
SAIBA MAIS: Chocolate sustentável feito do fruto do cacau 100% puro chega ao mercado brasileiro
A segunda parte da capacitação – e a mais gostosa – é a ampliação da memória gustativa. “É um treino constante que pode ser cada vez mais profundo. Quanto mais treinado seu paladar e sua memória forem, mais ampla será sua capacidade de atuação. Também é essencial ter um bom conhecimento geral sobre diversas culturas e tradições culinárias, para que o profissional seja capaz de tirar o máximo proveito da sutileza de cada produto”, explica o chef Bertrand.
Em função da capacitação multidisciplinar dos profissionais que atuam nessa área, os sindicatos e associações acabam não estabelecendo um piso para os salários de degustador. Vale lembrar também que esse tipo de especialista pode atuar tanto de maneira independente, oferecendo seus serviços como uma consultoria, quanto integrar o time de uma fabricante do alimento. “Nas empresas, a remuneração depende da posição que o degustador ocupa na estrutura da qualidade, mas pode variar entre R$ 5 mil e R$ 15 mil”, afirma Mariana Bartié.
Perspectivas do mercado nacional
A boa notícia é que o mercado brasileiro ainda pode ser muito explorado. Nesse sentido, existem pelo menos dois fatores que colaboram para o desenvolvimento do setor e o surgimento de oportunidades para os degustadores: o primeiro é o avanço da ciência sensorial, estimulado pela concorrência das marcas, e o segundo é o movimento dos bean to bar, chocolates finos fabricados a partir de ingredientes selecionados.
“A ciência sensorial ajuda a entender, com mais precisão, quais são os desejos dos consumidores, fazendo que as empresas assegurem o sucesso dos seus produtos nas prateleiras dos supermercados. Hoje, é possível encontrar vagas tanto de estágio quanto de gerência em nível global”, afirma a especialista da Mars. “Já os bean to bar são responsáveis pela rápida mudança nos últimos anos no mercado nacional de chocolates. Eles têm foco no sabor do cacau fino, são feitos com poucos ingredientes, sem gorduras vegetais, sem aromatizantes, com transparência e sustentabilidade. Seguem a trilha dos vinhos e dos cafés especiais, com notas diferenciadas e, muitas vezes, surpreendentes. Diferentes das guloseimas que crescemos consumindo, os chocolates bean to bar podem ser verdadeiras experiências sensoriais. São eles que vale a pena degustar”, complementa a redatora do “Chocólatras Online”.
Apesar de o Brasil possuir um baixo consumo per capita da iguaria – cerca de 2,8 kg anuais por pessoa, segundo a Abicab (Associação Brasileira da Indústria de Chocolates, Cacau, Amendoim, Balas e Derivados), bem menos do que os 9 kg dos suíços contabilizados pela consultoria Target Map – os especialistas acreditam que a variedade de produtos está aumentando, à medida que o público se torna mais exigente e conhecedor do assunto.
No fim, os degustadores reconhecem que esta é, sim, uma profissão dos sonhos. “Dizem que 99% das pessoas em todo o mundo gostam de chocolate, enquanto 1% mente. Então, não é nada ruim receber um salário pra comer chocolate todo dia”, diz Busquet, da Chocolate Academy São Paulo.
Siga FORBES Brasil nas redes sociais:
Facebook
Twitter
Instagram
YouTube
LinkedIn
Siga Forbes Money no Telegram e tenha acesso a notícias do mercado financeiro em primeira mão
Baixe o app da Forbes Brasil na Play Store e na App Store.
Tenha também a Forbes no Google Notícias.