Imagine se, ao chegar no escritório, você esquecesse tudo o que acontece no resto da sua vida. Casa, família, cachorro, planos de férias e boletos. E, ao voltar para casa, não se lembrasse do que aconteceu durante a semana toda na firma.
Parece o plano perfeito para produzir mais e evitar o burnout. Ou pode ser o fim da criatividade gerada pela diversidade de ideias e experiências no trabalho? Na série “Severance”, ou “Ruptura”, em exibição na Apple TV+, funcionários de uma empresa passam por procedimento cirúrgico que separa as memórias da vida profissional e pessoal. E, assim, nunca lembram quem são ao entrar na empresa ou no que trabalham ao sair dela.
No mundo real, a tendência observada é exatamente o contrário dessa compartimentação da vida. “Cada vez mais as empresas vêm fazendo um movimento de unir vida pessoal e profissional por uma série de motivos”, diz Juliana Nascimento, diretora de desenvolvimento e carreira da empresa Cia. de Talentos, consultoria de recursos humanos.
Essa mistura de vida pessoal e profissional se fortaleceu com o isolamento forçado durante a pandemia. “Se as pessoas e as empresas tinham qualquer tipo de preconceito em unir vida pessoal e profissional, entenderam que isso não é mais possível”, diz Nascimento.
As lideranças precisaram ser mais flexíveis, principalmente em tempos de guerra por talentos, e se adaptar a conceitos como o anywhere office, a possibilidade de trabalhar de um café, da praia ou de qualquer outro lugar. “Se eu puder conciliar bem qualquer coisa que esteja acontecendo no meu entorno com o meu trabalho, muito provavelmente os meus resultados serão melhores”, afirma ela.
Entenda as 5 reflexões trazidas pela série “Ruptura” sobre equilíbrio pessoal e profissional:
1. Misturar pessoal e profissional nem sempre é bom
A pandemia intensificou a hiperconectividade e fez com que a divisão trabalho-casa perdesse a clareza que teve um dia, quando os expedientes aconteciam das 8h às 18h. “Houve uma invasão da vida privada, e foi ficando muito difícil introduzir pontos de separação”, diz o psiquiatra e psicanalista Marcelo Veras.
Nesse período, os maiores problemas de burnout observados na sua clínica foram de pessoas que tiveram suas vidas íntimas invadidas pelos empregadores, com chamadas constantes fora do horário do expediente ou nos finais de semana. Ele alerta que essa falta de respiro é prejudicial à saúde física e mental e pode causar danos cognitivos.
2. A saúde mental está no equilíbrio
Se as vidas pessoal e profissional não devem estar totalmente unidas, tampouco podem estar completamente separadas. “Isso dá a ideia de que o trabalho está num lugar apenas de ganhar dinheiro, e a saúde mental está justamente em conseguir conectar seus desejos pessoais e do trabalho”, diz Veras.
O ideal é que haja um equilíbrio. “São relações ao mesmo tempo de separação e de aproximação”, ele afirma. “A separação radical é a chave da desmotivação, ou seja, as pessoas vivem suas funções esperando o final de semana.”
3. Qual a hora de separar e quando unir
Mas como chegar em uma relação saudável entre vida pessoal e profissional? “A vida não tem equilíbrio, só equilibristas” – a frase do músico José Miguel Wisnik citada pelo psicanalista mostra que é preciso autoconhecimento para reconhecer os limites entre essas duas áreas da vida.
Há momentos em que é necessário ter foco em cada uma delas, mas há, ainda, situações em que o repertório profissional auxilia na resolução de problemas pessoais. E vice-versa. “Quando a gente une os nossos vários ‘eus’, a gente amplia o nosso repertório e consegue levar para dentro do ambiente organizacional tudo aquilo que a gente vivencia de aprendizados e de outros conhecimentos”, diz Nascimento.
4. Como a experiência de vida enriquece a carreira
O cenário construído pela série “Ruptura” também se afasta do observado nas empresas hoje pelo aspecto da diversidade. Há um movimento para unir pessoas com históricos, idades e origens diferentes como meio de criar equipes mais criativas e produtivas. “Antigamente, nos processos seletivos, se procurava pessoas com experiência internacional, intercâmbio. Hoje, é valorizado quem tirou um ano sabático, teve uma experiência social ou trabalhou em áreas que não têm relação com o mundo corporativo”, afirma Juliana.
Essas pessoas com diferentes olhares têm tanto – ou mais – a contribuir ao mundo organizacional do que aquelas com um background mais técnico.
5. Relacionamentos no trabalho aumentam a produtividade
Em “Ruptura”, mesmo que se encontrem fora da empresa, os funcionários que passaram pelo procedimento não se reconhecem. No mundo corporativo, por outro lado, há uma tendência em valorizar as relações sociais, entendendo que elas também trazem resultados. Ter um amigo no trabalho traz motivação e aumenta a produtividade e a criatividade. “Se eu estiver dentro de uma organização que pede que a gente não traga para dentro do trabalho aquilo que acontece na vida, eu vou tentar usar uma máscara para fingir que está tudo bem, mas certamente isso vai impactar o quanto eu vou estar presente”, diz Nascimento. “No fundo, a gente não consegue separar o pessoal. No final do dia, eu sou uma única pessoa.”