A busca incessante da ciência pela cura para a tristeza profunda (na medicina, tratada como depressão) está em ponto de mutação. O avanço dos tratamentos de quadros mais graves da doença com a cetamina (ou quetamina), um anestésico dissociativo que pode ser considerado da classe de substâncias psicodélicas não convencionais, prega que o mercado da saúde mental viverá abalos sísmicos nos próximos anos.
Os cada vez mais propagandeados efeitos dessa droga no sistema nervoso atraíram uma base crescente de investidores institucionais desde que ela foi aprovada pelos órgãos de regulamentação. O potencial de capitalização dos tratamentos com cetamina atualmente é de US$ 1 bilhão, mas deve alcançar US$ 3 bilhões até 2029, de acordo com a Blossom, empresa de análise de dados do mercado de psicodélicos. Isso só nos Estados Unidos e em países da Europa, mercados mais avançados em termos de aprovação e oferta do fármaco. A regulamentação do uso da cetamina para o tratamento da depressão em outros lugares do mundo, incluindo o Brasil, só ganhou força a partir de 2019, e, com a recente expansão desse mercado, a expectativa de investidores é para um crescimento ao ritmo de 75% ao ano.
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Nas estimativas da Organização Mundial da Saúde, quase 300 milhões de pessoas no mundo sofriam de depressão em 2022. “Desde 2019, a depressão é a doença que mais incapacita, ou seja, gera mais dias de trabalho perdidos”, diz Leandro Valiengo, diretor do serviço de cetamina no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. No Brasil, a pesquisa mais recente é a Vigitel 2021, do Ministério da Saúde, que apontou que 11,3% dos brasileiros têm diagnóstico da doença. Desses casos, cerca de 36% são de depressão refratária (ou persistente), que é aquela que não apresenta respostas a medicamentos antidepressivos convencionais. É aí que a cetamina entra.
De acordo com estudos médicos, o fármaco pode ser a solução para muitas dessas pessoas, assim como virou também a nova resposta para o mercado de saúde mental. Nos EUA, o número de pacientes de planos de saúde que se tratam com a cetamina dobrou de menos de 15 mil em 2016 para mais de 30 mil em 2021, de acordo com a plataforma de dados Komodo Health.
No entanto, especialistas acreditam que a população que usa cetamina para a depressão é largamente maior. Isso porque os planos de saúde não costumam aceitar o pedido para a cobertura do tratamento – muitos casos são conquistados com judicialização – então, em situações mais urgentes, os pacientes precisam desembolsar mais dinheiro para ter acesso às sessões.
O valor de uma sessão de infusão da cetamina (indicada para o tratamento da depressão refratária) varia entre R$ 600 e R$ 1,2 mil no Brasil. A maioria tem recomendação para tratamento entre 8 e 12 infusões regulares da substância em um intervalo de até três meses. Esse é considerado o protocolo inicial, ou seja, a “abordagem de ataque” da substância para o quadro do paciente. “Estudos mostram que a cetamina reduz em 60% a ideação suicida já na primeira infusão”, conta Valiengo.
O aspecto mais fundamental da cetamina é sua capacidade de atuação imediata na contenção da ideação suicida. Óbitos por lesões autoprovocadas subiram de 7 mil para 14 mil casos nos últimos 20 anos, segundo dados do Datasus, que não consideram subnotificações. “Ter essa noção de que existe um recurso que pode tirar você rapidamente de um quadro mais grave traz um alívio psicológico. Essa concepção, quando absorvida pelo indivíduo, melhora muito a qualidade de vida, porque ele sabe que tem ao que recorrer”, diz o psiquiatra Henrique Bottura, fundador e diretor no Instituto de Psiquiatria Paulista.
Tristeza, aflição e ansiedade
Sergio Bianchi, 64, trata depressão refratária com cetamina há três meses. Até meados de abril, o empresário fez 12 infusões. Ele sofria com a depressão há anos, mas nunca respondeu a medicamentos convencionais. Seus sintomas não eram debilitantes, ele conta, mas lidava com sensações de tristeza, aflição, ansiedade e “maus pensamentos”. Isso até seu psiquiatra sugerir o tratamento com cetamina. Ao fim do protocolo inicial, os reflexos da depressão haviam sumido. Nada mais das sensações ruins e da angústia. “A cetamina é muito melhor que os tratamentos que experimentei até aqui. Não sei se isso vai durar para sempre, mas espero que sim”, conta.
A prescrição da cetamina para o tratamento da depressão resistente no Brasil é caracterizada como uso off label, ou seja, que não consta da bula do medicamento. É, portanto, feita por conta e risco do médico, já que o uso da substância na apresentação líquida ainda não foi aprovado pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) para esse tratamento.
Atualmente, apenas o princípio ativo cloridrato de escetamina, que é uma substância distinta da cetamina, é regulamentado para tratar depressão. “Para o cloridrato de escetamina, somente o produto Spravato possui aprovação na classe terapêutica ‘antidepressivo’, na forma farmacêutica de spray. Os demais medicamentos com essa substância são injetáveis e não têm indicação aprovada como antidepressivo”, informa a Anvisa.
O Spravato é um medicamento patenteado pela Janssen e comercializado a R$ 3 mil o frasco, mas só pode ser aplicado em ambiente hospitalar por uma equipe de saúde. Com serviços e estrutura inclusos, o custo do tratamento pode alcançar R$ 50 mil, pelo menos quatro vezes o valor do protocolo inicial de infusões de cetamina.
Assim como no caso do Spravato, o que encarece as sessões de infusão da cetamina são os custos com a equipe profissional e a estrutura para o acompanhamento dos pacientes. Mas o Cristália, maior laboratório de cetamina em apresentação líquida no país, entrou na Anvisa com pedido de reconhecimento do uso da droga no tratamento da depressão. “Acreditamos que em breve conseguiremos incluir essa indicação em nossa bula, aumentando o acesso de pacientes ao tratamento”, informou a empresa à Forbes.
Essa pode ser uma virada em termos de custos e acesso ao tratamento. A regulamentação pela Anvisa abre portas para que a substância integre a lista de medicamentos oferecidos pelo Sistema Único de Saúde e, assim, coberto pelos planos de saúde. Atualmente, as únicas formas de acesso às sessões são pelo sistema privado ou como participante de estudos.
Porém, já não há dúvidas sobre a eficácia do tratamento. “A Anvisa tem o maior interesse em aprovar o uso da cetamina; agora é uma questão de tempo, porque existem evidências científicas suficientes para autorizar esse uso”, afirma o psiquiatra Dartiu Xavier, que se dedica à pesquisa de psicodélicos na Unifesp.
Desdobramentos no Brasil
Com a comprovação da eficácia da droga em diversos estudos brasileiros, de 2019 para cá, os centros especializados em infusões de cetamina vêm se multiplicando no mercado nacional.
A Beneva, do grupo Bienstar Wellness, focado no mercado de saúde mental latino-americano, começou o trabalho com infusões de cetamina para o tratamento da depressão refratária no Brasil no segundo semestre de 2022. A expansão da rede de atenção com o uso de psicodélicos no país partiu do aporte de US$ 1,25 milhão que recebeu no fim de 2021, investimento que veio de fundos canadenses e da Novamind, empresa de serviços em saúde mental hoje parte do grupo Numinus, um dos maiores no segmento.
O plano da Beneva no Brasil é ambicioso: ter 40 salas de infusão só no município de São Paulo, o que significaria um faturamento de US$ 10 milhões e uma fatia de 0,3% do mercado potencial paulistano para os tratamentos. A empresa pretende levar a operação também para Campinas, Rio de Janeiro e Santa Catarina. “Não estamos inventando a roda, mas trazendo para cá uma realidade que já existe nos EUA e no Canadá há quatro anos”, diz Marco Algorta, CEO da Beneva. Ele conta que a clínica está crescendo mensalmente à taxa de 20% e que já está com 70% de ocupação; então, a ideia a curto prazo é triplicar a capacidade de atendimento com uma segunda unidade na capital paulista.
São mais de 20 centros de infusão de cetamina no país atualmente, número que só aumenta. Não é difícil encontrar propagandas nas redes sociais oferecendo o tratamento com a droga como espécie de solução milagrosa. Conforme as promessas sobre os efeitos da cetamina no quadro de depressão resistente se espalham, mais ofertas se proliferam. A questão é como separar o “joio do trigo”.
Nos EUA, o número de clínicas que oferecem tratamento com cetamina saltou de 20 em 2019 para mais de 400 em 2022, de acordo com as estimativas do fundo de venture capital Psy Med Ventures. Só que o abuso da cetamina após a agência reguladora dos EUA liberar a prescrição da droga via teleatendimento e para uso doméstico durante a pandemia se tornou um problema de saúde pública. Começam a se multiplicar relatos de quadros de cistite, arritmia e relatos mais graves de dissociação associados ao uso inadequado.
O psiquiatra Rodrigo Delfino, pesquisador da Universidade Federal de São Paulo, alerta que, por ser uma substância com esse potencial, o paciente não pode influenciar na dosagem, e o médico mesmo assim precisa estar atento a sinais de desenvolvimento de dependência, “apesar de isso não ser descrito nos estudos para o tratamento da depressão”, pondera.
Delfino relata que, com a fama, a procura pelas infusões com cetamina aumentou de forma significativa na Beneva, clínica em que trabalha. “Pelo menos metade dos casos que chegam para avaliação do paciente procurando a cetamina não têm a indicação para o tratamento”, conta. É uma questão ética. Para ele, seria uma violação ao seu juramento não oferecer outros tratamentos, já regulamentados, para casos que podem responder a substâncias mais baratas e acessíveis.
O pesquisador conta que o risco de associar o tratamento da cetamina com uma depressão do quadro de transtorno bipolar é induzir um quadro de mania no paciente. “Além disso, a aplicação da cetamina em pacientes com quadro psicótico em atividade pode provocar sintomas psicóticos”, conta. “Nossos pacientes passam pelo atendimento psiquiátrico, porque somos, antes de tudo, uma clínica psiquiátrica e de saúde mental, e não uma clínica de cetamina”, completa Marco Algorta, o CEO da Beneva.
* Esta matéria foi publicada na edição 107 da Revista Forbes, que pode ser acessada por aplicativo ou na versão impressa.