Eu trabalho todos os dias na minha clínica com o não. Como psiquiatra especializado em
dependências, tenho de dizer francamente aos meus pacientes que eles terão de dizer
não ao álcool, às drogas, às pílulas para dormir, aos jogos e todas as coisas que são
capazes de tornar o nosso comportamento viciado.
E, todos os dias, vejo a luta desses pacientes para dizerem não a si mesmos, testemunho
a dificuldade dessas pessoas em fazer isso. Porque eles não lutam apenas contra a
compulsão de querer voltar a usar alguma dessas substâncias, mas também contra um
ambiente que associa substâncias químicas à diversão, relaxamento e alívio,
especialmente no caso do álcool e dos remédios para cair no sono.
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Todo mundo sabe que as crianças aprendem rapidamente a dizer não (o que não significa
que gostem de ouvir um não quando querem fazer algo que não podem). Quando um
amiguinho vem pegar o brinquedo dela, rapidamente ela recusa. Quando a mãe quer que
ela coma algo de que ela detesta, com muita facilidade ela nega: “não quero isso”!
Ainda que tenhamos aprendido a recusar cedo na vida, em algum momento da nossa
história muitos de nós parecem se esquecer dessa conquista e passam a ter o sim como
baliza, passam a aceitar participar de eventos ou festas que não têm vontade de ir,
prestar favores a pessoas com as quais sequer se identificam, aceitar violência moral e
verbal e, até, empregos que odeiam. Ou seja, muitas vezes acabam por dizer sim a
coisas que não estão alinhadas aos valores e desejos delas.
Mais do que isso: um simples sim a um pedido por vezes acaba sendo mais um tijolo
adicionado na pilha de coisas que já pesavam sobre nós.
Além disso, tendemos a valorizar mais o que fazemos agora em detrimento do que
poderíamos fazer no futuro, ainda que possamos fazer exatamente a mesma coisa em,
digamos, seis meses. É algo que acontece, por exemplo, com muitos dependentes
químicos. Eles dão mais valor ao prazer gerado pela substância agora, mesmo se
dissermos a eles que dali a um ano a saúde deles estará grandemente comprometida. O
sim dito agora, portanto, acaba sendo mais apreciado, ao preço de um custo para o futuro
da saúde física e mental.
O não é o coração do verdadeiro autocuidado. Se entendermos isso, talvez fique mais
fácil dizê-lo. Claro que ao dizer não, sempre pagamos um preço. Mas não
necessariamente o custo é alto. Ao contrário. É essa palavra tão curtinha que nos ajuda a
colocar limites, traçar uma fronteira entre o que queremos para nós e o que os outros
(nossos familiares, amigos, mentores e até a sociedade em que vivemos) talvez desejem
que façamos.
Ao compreendermos isso, podemos olhar o não como uma conquista, não como uma
perda.
Muitas pessoas lutam contra a culpa quando se recusam ou se negam a fazer algo. De
fato, a culpa, especialmente na nossa sociedade judaico-cristã, está sempre a nos
espreitar em cada um de nossos atos. Mas, quando colocamos a nossa saúde mental e o
nosso bem-estar nessa calculadora de custos, fica mais fácil discernir o que ganhamos de
verdade e o que perdemos quando respondemos com um firme “não, obrigado (a)”.
Dr. Arthur Guerra é professor da Faculdade de Medicina da USP, da Faculdade de Medicina do ABC e cofundador da Caliandra Saúde Mental.
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