A gastronomia tem no fogo e no gelo uma base sólida para gerar praticamente tudo o que comemos. Na edição passada, contei sobre o processo secular da transformação das fogueiras do homem pré-histórico em um utensílio completamente diferente: uma caixa “mágica” chamada micro-ondas. Com o gelo, a saga não foi muito diferente.
No início de nossa história, o homem só comia alimentos frescos. Era nômade e não armazenava mantimentos. Mudava constantemente de “endereço” em busca de locais onde a caça e a coleta fossem mais abundantes. Com o tempo, a observação e a experiência ensinaram que o frio conservava refeições. Colocar alimentos em riachos frios, escondê-los em cavernas ou escavar no subsolo para criar caves eram os métodos de resfriamento. A parte mais escura e fresca de uma caverna, por exemplo, era a “geladeira”.
Quando as civilizações se formaram, o sal era o elemento básico da conservação dos alimentos. Os chineses de 3000 a.C. já o utilizavam para conservar os peixes acumulados em épocas de fartura – em seguida, desenvolveram uma tecnologia que utilizava gelo. Coberto de sal, durava ainda mais. Por volta de 500 a.C., egípcios faziam gelo em noites frias, colocando água em vasos de barro e mantendo as panelas molhadas. O poderoso Alexandre, o Grande, também usava essa técnica para ter gelo, que era logo consumido em seus famosos e fartos festins. Gregos e romanos tinham o hábito de esfriar suas bebidas no verão com gelo que guardavam do inverno, em compartimentos especiais. Pode-se dizer que os primeiros coquetéis teriam surgido entre esses povos, ainda mais que o vinho era sua “bebida oficial”.
O que poderíamos chamar de indústria do gelo vai surgir na Idade Média, a partir de um advento urbano tão apropriado como o saneamento e que garantiu que receitas e alimentos tivessem um aproveitamento ainda melhor. Cada aldeia, cada feudo tinha o seu frigorífico – um poço em que se congelava água isolada com palha e comercializada especialmente no verão. O derivado devia chegar limpo de poeira e palha aos consumidores, conforme controle realizado a partir do decreto da Carta Real. Os tempos modernos chegaram e, no início do século 18, algumas casas europeias já dispunham de compartimentos subterrâneos onde o gelo era armazenado no inverno para depois conservar carnes e peixes.
E como chegamos à geladeira? Os primeiros “aparelhos” do começo do século 18 eram caixas de madeira instaladas em uma casa e revestidas com metal ou outros materiais, para conservar o gelo comprado de terceiros. Nesse período, o médico escocês William Cullen é considerado um pioneiro na tecnologia de refrigeração. Depois vieram os americanos Jacob Perkins, engenheiro e físico que fabricou pela primeira vez gelo artificial, e o médico John Goorie, com a máquina de fazer gelo para ajudar pacientes com febre amarela.
A primeira geladeira surgiu em 1876 pelas mãos do engenheiro alemão Carl von Linde. Mas só em 1910 o chamado refrigerador doméstico chegaria aos lares. Nesse meio-tempo entre a geladeira de Von Linde e o aparelho comercializado para o público em geral, o alimento em temperaturas frias precisou viajar muito até se acomodar em um eletrodoméstico hoje onipresente.
Alguns cases. Um marinheiro americano, durante uma parada de emergência na Jamaica, teve a ideia de levar bananas para vender nos EUA. O negócio deu certo e ele prosperou, mas perdia muita quantidade nas viagens, pois elas apodreciam. Encomendou, então, um navio refrigerado – e decolou de vez.
Dois anos antes, o governo argentino ofereceu um prêmio a quem inventasse uma forma de refrigerar a carne para exportá-la. O engenheiro francês Charles Tellier instalou um sistema de refrigeração em um navio (o Le Frigorifique): encheu a embarcação com carne e velejou até Buenos Aires. Depois de 105 dias no mar, a carne chegou em boas condições. Em 1902, havia 460 navios refrigerados navegando pelos mares do planeta.
Hoje, um freezer relativamente simples e barato garante sua comida favorita durante meses. Ainda bem.
Carla Bolla é restauratrice do La Tambouille, em São Paulo
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