O ritual de compartilhar o pão faz parte das celebrações judaico-cristãs há milhares de anos. E assumiu um novo significado na quarentena: o compartilhamento dos pães feitos em casa se tornou um hit nas redes sociais. Podemos relacionar esse fenômeno, que emerge como uma alegria em meio a tempos tão difíceis, com a importância que o ato de fazer o pão tem para a própria constituição da humanidade.
A história do pão remonta à pré-história humana, ao período neolítico, quando os primeiros grupos humanos deixaram de ser nômades, caçadores e coletores, e se fixaram nos territórios férteis do Oriente Médio, dando início à agricultura. Ali começava o cultivo de grãos, e dos grãos veio a produção de farinhas, por meio da criação de utensílios como pilões de pedra polida. As farinhas foram misturadas à água e assadas sobre pedras quentes, resultando em algo semelhante aos nossos conhecidos pães-folha.
A introdução do fermento só ocorreria milênios após os primeiros sinais de sedentarismo. O clássico livro História da Alimentação (1894), do sociólogo francês Louis Bourdeau, foi responsável por difundir a ideia de que o fermento teria sido descoberto por acaso no Egito antigo (4000 a.C.) por uma mulher que esqueceu a massa de trigo e água exposta em um canto da casa – no dia seguinte, encontrou a massa “crescida”.
No entanto, segundo o chef e pesquisador belga Pierre Leclerq, da Universidade de Liège, essa história corresponde a um mito. Para ele, a ideia de que a técnica de fermentação resultaria de um acaso mistifica as conquistas tecnológicas das sociedades antigas: “Esses mitos de descobertas ao acaso apresentam os homens e mulheres do passado como seres passivos, como se suas inovações caíssem do céu”.
A partir da Antiguidade, a panificação se desenvolveu em diversas sociedades: os gregos aprenderam com os egípcios, e os romanos, com os gregos. Na Roma antiga, os padeiros desfrutavam de considerável prestígio na sociedade. Durante a Idade Média, o pão virou um importante alimento para as populações da Europa. Na Modernidade, o pão teve papel central para o desenvolvimento da economia política. O estabelecimento do preço dos grãos se tornou objeto de negociações comerciais, inseridas nos processos de formação dos Estados-nação.
Com a revolução industrial entre os séculos 18 e 19, a produção do pão passou por uma notável modernização, da mecanização da colheita de grãos, passando pelos moinhos a vapor, até chegar às esteiras de produção e aos fermentos químicos, que o elevaram à condição de um dos principais (se não o principal) produtos alimentícios de consumo de massa do século 20.
Chegamos ao século 21, e com o boom dos pães feitos em casa ou por pequenos novos empreendimentos, estamos percebendo um retorno à panificação artesanal. Essa moda resgata técnicas que nunca se perderam em estabelecimentos tradicionais, como as padarias clássicas ao redor do mundo, que souberam inventar e preservar suas receitas. O ato de fazer o próprio pão, que vemos tão em voga agora, não apenas atualiza saberes do passado, como certamente carrega significados afetivos.
Minha família, a Bolla, é uma dessas que sempre cultivou a tradição de fazer pães. Por isso, no La Tambouille, restaurante fundado pelo meu pai, servimos uma variedade de fabricação própria, que preserva a melhor combinação entre o estilo clássico e as técnicas modernas. Para nós, o pão é uma maravilhosa herança histórica.
Carla Bolla é restauratrice do La Tambouille, em São Paulo
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