A palavra “pandemia” – seja em que idioma for – não sai da boca e do pensamento de bilhões de pessoas desde março, quando a OMS declarou oficialmente que o coronavírus havia ultrapassado fronteiras e já estava presente em todos os continentes (em grego, pan = “todo” e demos = “povo”).
O biólogo e doutor em microbiologia Átila Iamarino explica que são diversas as formas de surgimento de uma pandemia: “As doenças ressurgem porque as pessoas param de tomar vacinas ou porque são criadas novas oportunidades de circulação do vírus – caso do sarampo e da catapora. Também podem surgir de uma doença recorrente todos os anos, pois as pessoas perdem a imunidade – caso da gripe. O novo coronavírus é uma infecção nova, um patógeno que se adaptou e começou a circular em humanos”.
O Sars-CoV-2 é um vírus que circula entre morcegos, que são animais sociais. O sistema imunológico deles tem uma carga genética que tolera maior circulação de doenças. O convívio entre tratadores, animais de criação e animais silvestres, como ocorre nos chamados mercados molhados (como o de Wuhan, na China), permite que esses vírus possam saltar dos morcegos para outros animais. A nipah e o vírus hendra, que acometem humanos, são exemplos de doenças que vieram do mamífero alado. A atual “culpa” do morcego, no entanto, ainda não foi totalmente estabelecida (estudos sugerem que haveria intermediários entre eles e nós – como a civeta, mamífero conhecido também como algália ou gato-almiscarado).
Lições do caos
O doutor em história econômica e professor do Insper Vinícius Müller ressalta a importância de olhar para o passado em um momento de caos e incerteza: “A história não vai se repetir, a crise de hoje não é igual à da gripe espanhola de 1918, mas olhar para trás nos dá um parâmetro, um ponto de partida para entender quais são os elementos que devemos avaliar”.
Para isso, não faltam relatos de grandes epidemias e pandemias.
Atenas vivia seu auge, por volta do ano 430 a.C., quando uma doença que mesclava sintomas de varíola e tifo atingiu a principal cidade-estado grega. A Praga de Atenas, como ficou conhecida, é apontada como fator determinante para a derrota ateniense contra Esparta, na Guerra do Peloponeso. No século III, foi a vez de os romanos enfrentarem um poderoso inimigo invisível – a malária.
A Yersínia pestis, bactéria que dá origem à peste bubônica, fez sua primeira aparição conhecida em 541 d.C., quando foi batizada de Praga de Justiniano, em homenagem ao imperador Justiniano, o Grande (que contraiu a doença e se curou). As cidades portuárias foram as mais afetadas. Navios mercantes facilitavam a propagação da peste, transmitida pelas pulgas dos ratos que estavam a bordo. Constantinopla, então capital do Império Bizantino, perdeu 40% de seus 800 mil habitantes. Calcula-se que, no auge da crise, cerca de 5 mil pessoas morriam por dia na cidade.
Nos anos seguintes, alguns novos surtos foram registrados, mas foi em 1330 que a peste bubônica reapareceu com força na China, após a conquista mongol. Por causa da guerra, a população estava enfraquecida. Em 20 anos, a peste dizimou cerca de 25 milhões de pessoas no Oriente.
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Sua “versão” mais famosa, batizada de Peste Negra e relembrada em filmes e jogos, assolou a Europa entre 1333 e 1351. Ainda pairam dúvidas sobre como ela se espalhou no continente. “As cidades se relacionam fundamentalmente por guerra ou por comércio. Sempre existiu algum tipo de intercâmbio de mercadorias ou de pessoas, e isso pode ter contribuído para a disseminação”, avalia Müller.
O mundo da Peste Negra era muito diferente do atual. A Idade Média era regida pela Igreja Católica e seu sistema econômico era o feudal. Mas as consequências guardam semelhanças com nossos dias. Estima-se que o número de mortes na Europa e na Ásia tenha superado os 100 milhões. O impacto social e econômico foi brutal. O comércio e a produção agrícola desabaram, deixando as populações ainda mais vulneráveis.
O centro do poder – a Igreja – também foi abalado. “A peste fez com que as pessoas, descontentes e esgotadas, começassem a ter muitas dúvidas. Esses questionamentos fragilizaram o domínio da Igreja”, afirma o historiador. O poder foi transferido para outra instituição política da época, o rei, que investia em melhorias nas cidades.
Do ponto de vista econômico, a escassez de mão de obra pressionou os salários para cima. “Essa valorização fortaleceu o camponês da Idade Média. Naquele momento, ele pôde rever sua própria condição social e transitar por outras atividade econômicas. Era o embrião do capitalismo, o que enfraqueceu o sistema feudal.”
A pandemia também teve impacto direto no âmbito cultural. Nos anos seguintes, o medo da morte passou a ser cultuado em toda a Europa, dando origem ao gênero artístico-literário chamado A Dança da Morte (ou Dança Macabra). As cantigas, crônicas, peças de teatro e até o estilo das esculturas na arquitetura gótica são heranças da peste. Nos séculos seguintes, houve novos surtos da doença – como em 1665, quando Londres perdeu 100 mil pessoas em um ano.
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A Peste Negra deu origem também à teoria miasmática, segundo a qual as doenças teriam origem nos odores de matéria orgânica em putrefação. Graças a ela, as pessoas passaram a queimar e sepultar seus mortos e depositar o lixo em lugares distantes. Passou a haver também maior preocupação com o saneamento básico, o que colaborou para a diminuição do alastramento.
“A Peste Negra deixou marcas genéticas na humanidade. Os marcadores genéticos que temos hoje são diferentes dos da época pré-peste. Ela selecionou as pessoas mais resistentes a ela”, conclui o biólogo Átila Iamarino.
Gripe e guerra
Em 1918, a humanidade enfrentou pela primeira vez, em larga escala, o vírus influenza. A primeira morte confirmada ocorreu no Kansas, estado onde as principais bases militares dos EUA estavam instaladas. Apesar da “primazia” norte-americana, a doença ficou mundialmente conhecida como gripe espanhola – porque a Espanha era um dos poucos países com imprensa livre na época e não omitia dados sobre ela.
A doença se espalhou em um momento crítico da humanidade. A Primeira Guerra Mundial (1914- -1918) foi determinante para a disseminação da pandemia. Em menos de dois anos, o vírus infectou cerca de 500 milhões de pessoas, o que representava um quarto da população mundial. O número de vítimas fatais é incerto – alguns historiadores falam em mais de 100 milhões. “Os números vão ser sempre subestimados porque não havia controle. Não existia um serviço de saúde que contabilizasse as mortes, muitos morriam sem atestado de óbito”, explica Anny Torres, doutora em história da medicina.
Para o historiador econômico Vinicius Müller, é difícil separar os impactos da guerra dos da gripe. Fato é que, depois da guerra e do surto, as exportações da Inglaterra, então a maior potência do planeta, desabaram 20%.
No Brasil, desde o fim do século XIX já existia um movimento para a melhoria do saneamento básico e do processo de urbanização, intensificado após a Revolta das Vacinas (1904). Os rumores da doença que matava no dia seguinte se espalharam pelo país antes mesmo de o vírus chegar, o que despertou uma resposta rápida da população diante da confirmação dos primeiros casos: escolas e comércio foram fechados, com exceção das atividades essenciais. No final, foram 35 mil mortos no país nos meses em que a gripe permaneceu por aqui. Entre eles, o presidente Rodrigues Alves – o mesmo que, em 1904, durante seu primeiro mandato como chefe da nação, tornou obrigatória a vacinação contra varíola, encabeçada pelo ministro da Saúde, Oswaldo Cruz.
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Como a doença era altamente contagiosa, era proibido o contato com os mortos. Os enterros, a exemplo do que ocorre hoje com o coronavírus, eram feitos sem a presença da família. “A taxa de mortalidade era maior entre os jovens e adultos, uma coisa inesperada. A gripe tem uma taxa de mortalidade muito alta até hoje [o Ministério da Saúde registrou 1.122 óbitos em 2019], mas é uma doença com a qual nos acostumamos, e por isso a tratamos como leve”, diz Anny Torres.
Novo mundo
“A economia brasileira sofreu uma crise muito forte entre 2014 e 2016, e muitos aguardavam uma retomada nos últimos quatro anos, o que não ocorreu. Entramos na pandemia com uma herança de capacidade ociosa, de desemprego elevado e de baixo crescimento econômico”, analisa o economista José Luis Oreiro. Mas não é só o Brasil que está em maus lençóis. Todo o conceito de globalização vai ser reavaliado. Por ora, o Japão anunciou a concessão de subsídios para empresas nipônicas instaladas na China retornarem ao país, e Donald Trump decidiu suspender temporariamente a imigração legal para os Estados Unidos.
“Esta crise está nos ensinando que os sistemas de saúde precisam ser perfeitos, que é necessário ter uma reserva de contingência para enfrentar possíveis pandemias e, mais importante, que os países não podem abrir mão de suas indústrias”, afirma Oreiro. Para ele, estamos diante da oportunidade de reindustrializar o país, a depender de como o Estado conduzir o enfrentamento da pandemia. “É importante entender que não dominamos a natureza como achávamos”, diz a historiadora. “E que toda grande crise é um grande aprendizado.”
Cronologia Pandêmica
- Praga de Justiniano
541 d.C. - Peste Negra
1333 – 1351 - Cólera
1817 – 1924 - A Terceira Peste
1855 - Gripe Russa
1889 – 1890 - Varíola
1896 – 1980 - Febre Amarela
1960 – 1962 - Gripe Espanhola
1918 – 1919 - Gripe Asiática
1957 – 1958 - HIV
1981 – presente - Gripe de Hong Kong
1968 – 1969 - Sars
2002 – 2003 - H1N1
2009 – 2010 - Ebola
2014 – 2016 - Covid-19
2019 – Presente
Reportagem publicada na edição 77, lançada em maio de 2020
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