Na linha do horizonte, o que se vê é uma fileira de morros e montanhas que formam a Serra do Sincorá. Mas, trazendo os olhos mais para perto, são as uvas que chamam a atenção. Na linha do horizonte, o que se vê é uma fileira de morros e montanhas que formam a Serra do Sincorá. Mas, trazendo os olhos mais para perto, são as uvas que chamam a atenção em uma topografia ainda pouco identificada com a fruta, a Chapada Diamantina, na região central da Bahia, onde a história conta causos de árduas disputas por pedras preciosas. Esse tempo, no entanto, já vai longe e o ouro de hoje é líquido. Pelo menos para Fabiano Borré, CEO e sócio proprietário da primeira vinícola do centenário município de Mucugê – que numa estirada de carro soma 450 km de Salvador –, e que completou um ano de vida chamando a atenção dos apreciadores de vinho por uma característica da bebida.
“Quando decidimos pela vinícola, a gente queria criar uma identidade daqui, um terroir diamantino. Não queríamos fazer o que o mercado já faz”, diz Borré, enquanto caminha pelos vinhedos. “Por isso, decidimos seguir a linha do velho mundo na produção de vinho, fazendo nossa história com muita atenção.”
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Divulgação Fachada da vinícola Uvva, em Mucugê (BA)
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VeraOndei Vista dos vinhedos
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VeraOndei Vinhedo em produção manejado no sistema de dupla poda
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Divulgação Uvas em ponto de colheita, que ocorre de 15 de junho a 15 de agosto
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Divulgação Cantinhos de observação preparados para os visitantes
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VeraOndei Estrutura de armazenagem do vinho produzido
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VeraOndei Laboratório onde são realizados testes diárias dos lotes de vinhos
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Divulgação Arquitetura permite visão dos vinhedos de quase todos os locais do prédio central
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VeraOndei Vinícola conta com uma área para mostrar obras de artistas locais
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VeraOndei Cave com tonéis de descanso para os vinhos
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VeraOndei Vinho engarrafado em cave para repouso da bebida
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VeraOndei Uma das salas de degustação, onde os visitantes podem conhecer o vinho produzido
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Divulgação Vinícola conta com um restaurante recém inaugurado
Fachada da vinícola Uvva, em Mucugê (BA)
Por velho mundo, entenda-se vinhos de características muito marcantes, em pequena escala e com equilíbrio de complexos aromas, texturas e acidez, isso nas análises de sommeliers e leigos entendedores. Para os demais, significa que Borré pretendeu, desde o início, seguir uma linha de produção sem se deixar levar por modismos: ele quer ser uma marca com história. Que no caso do vinho da Vinícola Uvva é o resultado de um pai turrão, ou melhor, obstinado, e de um filho abusado.
Ivo Borré, que faleceu em 2021, aos 63 anos de idade, “era um homem de fazer”, nas palavras do filho Fabiano. Gaúcho em busca de terras pelo Brasil, acabou na Bahia plantando batatas e café em sociedade com o pai, um irmão e um cunhado, hoje sócios de Fabiano. A fazenda Progresso, um conjunto de propriedades de 26 mil hectares, é uma das maiores produtoras de batata na região e o grão é quase todo exportado como café premium para 10 países.
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O filho, Fabiano Borré, hoje com 44 anos, se formou administrador aos 24 anos, em 1997, e foi trabalhar na indústria e na área financeira de empresas de seguro. “Via meu pai crescendo e pensava ‘acho que em algumas coisas eu posso agregar’, mas ele tinha medo de abrir mão do comando dos negócios”, diz Borré, que tomou uma drástica decisão: pediu demissão e propôs ao pai trabalhar por três meses como estagiário na fazenda. Não só ganhou a batalha pela confiança paterna, mas de toda a família. Em 2007, Borré passou a chefiar a operação do café, do plantio à venda, e hoje é a figura pública do grupo, além de CEO.
Nessa história, a uva foi quase um acaso, quando o pai de Borré topou preparar uma área de terras para a Embrapa realizar um experimento. Com a área de lavoura pronta para o plantio, o pai descobriu que os pesquisadores não tinham verba para comprar as mudas de videiras. Assim, em 2012, ele assumiu a compra e o projeto de cultivo de uva na Chapada. De 2015 para hoje, quando os vinhedos ganharam ritmo, a área de cultivo saltou de 15 hectares para 52 hectares de uvas cabernet sauvignon, cabernet franc, syrah, merlot, chardonnay, malbec, sauvignon blanc, petit verdot e pinot noir.
Em busca de enoturistas
O ano de 2015 foi um marco por ser dessa época a construção de uma pequena vinícola no mesmo local que hoje está a nova estrutura. “Em 2018 encontramos um vinho, um cabernet sauvignon”, diz Borré, que resultou em 800 garrafas. Mas a primeira safra de potencial comercial veio no ano seguinte, com 55 mil garrafas. A vinícola começou a colocá-las no mercado no ano passado. Nas barricas há estocado atualmente cerca de 200 mil garrafas de vinho, mas o projeto é para manter em estoque 260 mil garrafas/ano. “Nosso planejamento mostra que entre 2024/2025 alcançaremos a maturidade com, no mínimo, três safras dentro de casa”, diz Borré.
Por casa entende-se a atual estrutura construída há um ano, de 5 mil metros quadrados e quatro pavimentos, e que Borré não informa o quanto investiu. Mas ele diz que as contas do financiamento estão em dia e que a próxima empreitada é ter um aeroporto na fazenda. “Um aeroporto para tráfego executivo. Porque um jato leva cerca de duas horas de São Paulo à vinícola e assim poderemos receber mais turistas.”
O enoturismo que aterrissa hoje na vinícola, mesmo por carro, tem regras rígidas. A recepção de pequenos grupos, não mais que oito pessoas, precisa ter hora marcada com acompanhamento de um enólogo pelas dependências da vinícola. Mas a degustação, a passagem por todo o processamento da uva, a possibilidade de refeições em um restaurante recém inaugurado e a descoberta de que em um dos andares, além do vinho, é possível apreciar obras de arte, compensa.
“Não estava no projeto inicial ter uma galeria de arte. Tanto que usamos para a exposição o lugar que era para ser nossa enoteca”, diz Borré. A experiência que deu certo, e que já é uma marca do subsolo da vinícola, começou com obras do artista plástico Marcos Zacarias. “O Tempo Espelhado” mostra 20 obras produzidas nas duas últimas décadas pelo artista local que administra a Galeria Arte & Memória, em Igatu, uma vila localizada a cerca de 20 km de Mucugê. “Em 2024, o curador da exposição, o crítico de arte Paulo Herkenhoff, lança um livro sobre as obras expostas”, diz Borré.
Vinho e arte é o que atrai o médico cirurgião Luiz Cláudio Schettino, 65 anos, do Rio de Janeiro, que reservou um dos seis dias que passou na Chapada para conhecer a vinícola. Ele diz que é um hábito fazer esse tipo de passeio, mas confessa que a maior parte é fora do Brasil, quando viaja para congressos. “Sou um apreciador de vinho, é a minha primeira vez na Chapada e descobri a vinícola pesquisando a região”, diz ele.
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Evanice Carvalho, que mora em Salvador e é dona de um sítio de orgânicos em Ibicoara, a cerca de 80 km de Mucugê, afirma que a região da Chapada vem passando por grandes transformações na última década. “O setor imobiliário está mudando a região”, diz ela, que visitou a vinícola juntamente com Renata Since e Carolina Villa Flor, que aproveitaram o intervalo de um curso terapêutico.
“Há público e a vinda de outras vinícolas para a região agregariam muito”, diz Borré. “Quanto mais, melhor.” Na Chapada Diamantina há outras duas pequenas vinícolas, a Vaz e a Reconvexo, ambas localizadas no Morro do Chapéu, a 230 km de Mucugê. Estimular o enoturismo, ou turismo do vinho, pode trazer divisas para a Chapada, que já é um polo de atração. Mucugê, onde está a vinícola, por exemplo, é tombada como Patrimônio Nacional pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), por causa da natureza de seu entorno e do conjunto arquitetônico da era do ouro e dos diamantes. Em todo o mundo, o enoturismo deve movimentar neste ano US$ 85,1 bilhões (R$ 410 bilhões na cotação atual), com estimativa de chegar a US$ 292,5 bilhões (R$ 1,4 trilhão) em 2033, segundo a Future Market Insights Global and Consulting, com sede em Delaware, EUA.
Prêmios construídos em equipe
Em abril, com oito rótulos avaliados acima de 90 pontos, o que significa vinho excelente, a vinícola Uvva foi destaque no Descorchados, um guia de vinhos que traz avaliações de rótulos de países da América do Sul, sendo os principais a Argentina, o Chile, o Uruguai e o Brasil. Na edição de 2023 foram testados, sempre às cegas, cerca de 4 mil vinhos produzidos por cerca de 500 vinícolas, das quais 35 brasileiras.
Mucugê está a 1.150 metros de altitude e uma amplitude térmica de mais de 20 graus, resultando em um microclima que ajuda a vinícola a produzir os chamados vinhos de guarda, aqueles feitos para envelhecer, ou melhor, evoluir, e que podem levar anos para que cheguem ao seu momento ideal de consumo por suas próprias características. Mas chegar aos vinhos premiados também é uma tarefa de equipe. A vinícola Uvva tem três enólogos, mas um é a estrela da casa. “Busco o vinho perfeito, mas não se sabe se ele existe”, Marcelo Petroli, 42 anos, que diz ter nascido num parreiral. Petroli é filho de um produtor de uvas em Bento Gonçalves (RS), onde se formou na Escola de Viticultura e Enologia, a mais antiga do país, criada em 1959. Passou pela gaúcha Miolo e por vinícolas do Vale do São Francisco, onde Borré o conheceu em 2012. Um ano depois, ele se mudaria para Mucugê.
Petroli conta que o projeto da Uvva o ganhou por um detalhe. “Um projeto de 10 anos no mercado de vinho é um tempo considerado curto”, diz ele. “O que vejo na Uvva é que tudo vem sendo construído pensando no longo tempo.” Ele explica que os vinhos passam por dois tipos de maturação: a técnica (que é a evolução dos açúcares) e a fenólica (relativa aos taninos, acidez, etc). “Os açúcares se desenvolvem mais rápido, mas a evolução fenólica é mais lenta. Aí, utilizamos a técnica da dupla poda para sincronizar na uva as duas fermentações”, diz ele, que explica que quanto mais quente for o clima, mais os açúcares se elevam. “Maior amplitude térmica leva a maturação plena, o que explica os vinhos diferentes da Chapada, mais complexos em aroma e estrutura e com taninos mais maduros e sedosos.”
Na vinícola, todo processo industrial foi montado para variadas dimensões de produção, chegando aos micro lotes. A colheita da uva, que tem seu pico no mês de julho, vai de 15 de junho a 15 de agosto. Com a atual área plantada, daria para colher de 10 mil a 12 mil quilos de uva por hectare, mas como a escolha foi por vinhos finos, a produção é modulada para 5 mil kg de uva por hectare. Petroli é o responsável pela agricultura de precisão no vinhedo, visando a nutrição de um solo naturalmente baixo em termos de matéria orgânica, no uso de insumos biológicos e na decisão de quais uvas vão imprimir o que Borré chama de “cepas diamantinas”. Petroli está ao lado de Borré desde o plantio experimental que seria realizado em 2 hectares juntamente com a Embrapa e que foi o embrião do que a Uvva é hoje.
“Confio plenamente no trabalho do Petroli e aprendi a fazer isso com meu pai, que tinha a quinta série”, diz Borré. “Mas isso não significa que você é melhor ou pior. É preciso ser visionário e praticar a empatia.” Em junho, a vinícola colocou no mercado dois espumantes, um natural, um extra brut, o primeiro syrah produzido em micro lote e um vinho que é uma homenagem à visão do pai. As 800 primeiras garrafas, que se pensava ser apenas uma experiência, evoluíram na guarda para um vinho aptos ao consumo. “Existe uma revolução silenciosa acontecendo no vinho do Brasil, em estados como Goiás, Minas Gerais, Pernambuco, São Paulo e na Bahia”, diz Borré. “Nós, da Chapada Diamantina, também queremos ser referência nessa revolução.”