Brasília pode ter novos ares e aromas daqui para a frente, e eles passam pelo campo. Podem ser de notas frutadas, florais, de cacau, ameixa, mirtilo, baunilha e até tabaco. Esses novos ares, que começaram de maneira tímida há cerca de cinco anos, agora vão ganhar corpo, como se diz na vitivinicultura, de preferência dentro de valorizadas garrafas. A 60 quilômetros da capital, dez produtores de uva são os donos de um projeto inédito: eles estão investindo cerca de R$ 20 milhões para construir a Vinícola Brasília, a primeira de porte e coletiva do Cerrado brasileiro. A promessa é que ela esteja pronta para receber os apreciadores de um bom vinho ainda em 2022. “Será um belo projeto. Não deixará nada a dever para muitas vinícolas no Brasil e no mundo. Uma vinícola para 300 mil litros, por ano, podendo até dobrar”, diz o produtor Ronaldo Triacca, proprietário da Villa Triacca Eco Pousada e Vinhos e um dos dez investidores.
Seus companheiros de jornada são os donos dos vinhedos Casa Vitor, Oma Sena, Vista da Mata, Hartos, Horus, Ercoara, Miro, Toscana do Cerrado e Marchese. A ideia do grupo é que cada um continue os seus projetos individuais e que parte do esforço de produção seja endereçado ao projeto comunitário. Está na agenda a criação e a comercialização de 50 rótulos de vinho por meio da nova vinícola. Triacca conta que um desses vinhos será um blend composto por parcelas de 10% da uva tipo syrah produzida por cada um dos produtores. O rótulo é uma espécie de celebração dessa união que vem ganhando muitos simpatizantes nas redes sociais onde Triacca e seus companheiros compartilham o passo a passo dessa história. “Os consumidores estão tão empolgados quanto nós. Há um sentimento de pertencimento, principalmente pelo brasiliense. Os vinhos finos do Cerrado poderão competir em nível nacional e internacional”, acredita o produtor.
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Faz sentido a certeza de Triacca e seus companheiros. A base está nas pesquisas da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) e da ciência produzida pelo seu grupo de estudiosos, entre eles João Dimas Garcia Maia, da Embrapa Uva e Vinho, localizada em Bento Gonçalves (RS), pesquisador na área de melhoramento genético da videira. “Existem várias iniciativas no Brasil central, em Goiás e Distrito Federal, que são muito boas tanto em uvas de mesa quanto para processamento, principalmente para vinhos finos. É um setor que vai crescer muito, pois a condição climática nesse bioma é muito favorável”, afirma Maia. “A região do Cerrado possui um período seco muito bem definido, que vai de abril até o início de novembro, com umidade do ar muito baixa. Esse clima evita a ocorrência de doenças e favorece a expressão da cor, dos aromas e do sabor da uva.”
Além de oferecer um fruto de boa qualidade para vinhos, sucos ou consumo direto na mesa, a produção de uva no Cerrado também “inverte” o calendário usual da fruta: enquanto a produção da região Sul ocorre no verão, a uva do Cerrado é produzida no inverno. Vale ressaltar que as diferenças climáticas não afetam negativamente a qualidade da fruta, pelo contrário, a amplitude térmica de maio a agosto nesta região, com variação média entre 14° C e 28º C, é positiva para os compostos fenólicos da uva e sua doçura. “O acúmulo de açúcar é muito importante para as uvas de mesa, pois é uma das características mais buscadas pelo consumidor. Para os vinhos também, quanto maior o açúcar, maior será o seu teor alcoólico depois do processamento”, pontua Maia.
Triacca foi um dos primeiros produtores a cultivar uvas viníferas em Brasília. A estreia aconteceu em 2018 quando o seu primeiro vinhedo entrou em produção, tirando daí uma pequena safra teste da bebida que viria a seguir. Agora, já com três hectares de uvas do tipo syrah, marselan, sauvignon blanc, a produção está em 3.000 garrafas na safra atual. Mas, para o projeto da Vinícola Brasília a conta é outra. Juntando a produção do grupo serão 12 mil garrafas no atual ciclo da fruta, com a estimativa de que até a inauguração se cheguea 20 mil garrafas. Além disso, o grupo mira um setor que pode agregar ainda mais valor aos agricultores: o enoturismo. “Será um divisor de águas para a região de Brasília. Essa vivência de enoturismo não existia até então”, diz Triacca.
Antes da pandemia de Covid-19, a Uvibra (União Brasileira de Vitivinicultura), destacava o setor com um crescimento anual da ordem de 10% a 15%. Em 2019, apenas o município gaúcho de Bento Gonçalves, a meca das vinícolas brasileiras com o seu Vale do Vinhedos, recebeu cerca de 1,5 milhão de turistas, entre eles os chamados “enoturistas”. Não por acaso, o enoturismo no país tem como marco inicial a Festa Nacional da Uva, em Caxias do Sul, município a 50 quilômetros de Bento Gonçalves. A expectativa é que esse movimento de “enoturistas” volte a ser ascendente, à medida que a população se proteja com a vacina contra o coronavírus.
Vale registrar que, no mundo, os “enoturistas” são estimados em cerca de 30 milhões de viajantes. “Nesse primeiro momento, queremos agregar valor ao produto via enoturismo, comercializando nas propriedades e na vinícola”, diz Triacca. “Estamos tendo apoio da secretaria de turismo do Distrito Federal e do Ministério da Agricultura na estruturação dessa rota enoturística para que a atividade já cresça com força.” O apoio também vem da família: filhos e companheira estão na administração do negócio. Mas não apenas na propriedade de Triacca. Assim como ocorre em outras regiões produtoras de uvas, a vitivinicultura é uma agricultura familiar na maior parte das vezes.
Ao enoturismo, Triacca afirma, também, que no futuro os vinhos dos dez produtores serão ofertados no e-commerce e em restaurantes. Os vinhos no Brasil representam um mercado em ascensão. De acordo com a Ideal Consulting, especializada em bebidas e alimentos, no primeiro semestre deste ano o consumo de vinho no país cresceu 4%. Foram 208,5 milhões de litros, entre nacionais e importados, ante 200,1 milhões de litros no ano passado. Os dados da OIV (Organização Internacional da Vinha e do Vinho) mostram que em todo 2020 os brasileiros consumiram 430 milhões de litros de vinho, ante 360 milhões de litros no ano anterior.
Os vitivinicultores de Brasília estão apostando que o vinho do Cerrado tem potencial para receber o mesmo reconhecimento que o café do Cerrado. “Dizem que onde você faz café bom, você faz vinho bom. Eu acredito que nós temos muita chance de sermos reconhecidos em uma velocidade muito maior que o café do Cerrado”, acredita Triacca. “Logo virão prêmios e o reconhecimento pela qualidade do vinho.” Uva no Cerrado é um desafio que pode dar certo como mais uma riqueza do bioma. O Cerrado brasileiro é uma das áreas de savana mais exuberantes do mundo. Somente de plantas nativas catalogadas são 11,6 mil espécies. Há preciosidades de sabores exóticos como o bacupari, a pêra-do-campo, o murici, a cagaita, a mama-cadela, o pequi, o baru e o araticum, entre outras.
Nessa conta não estão as plantas mais conhecidas da maior parte da população, e que foram chegando para disputar espaço na agricultura, entre elas soja, milho, arroz, trigo, feijão, girassol, gergelim e o café. O grão, elevado à categoria de Indicação Geográfica com o “Café do Cerrado”, é uma iguaria para os amantes da bebida. Por isso, depois da uva podem vir outras frutas, como as vermelhas de potencial de mercado, entre elas o morango, o mirtilo e a amora-preta. Um dos focos da Embrapa Cerrados, unidade com sede em Planaltina (DF), tem realizado uma série de cursos de capacitação em fruticultura tropical, em parceria com entidades como a Emater, Senar e a Ride (Rota da Fruticultura da Região Integrada de Desenvolvimento do Distrito Federal e Entorno).
Não apenas para o vinho, mas também para as uvas de mesas o cenário é de crescimento. A fazenda de 20 hectares, Monte Branco, localizada no município de Padre Bernardo (GO), produziu nesta safra cerca de 17 toneladas por hectare da variedade de uva BRS Vitória, desenvolvida pela Embrapa. “Temos recebido muitos elogios e isso é motivo de muita satisfação para a gente”, conta Jefferson dos Reis, gerente de produção da Monte Branco. A fazenda espera dobrar a área dos parreirais nos próximos anos e já coloca um grande desafio à frente: a qualificação da mão de obra. “Trata-se de um fruto delicado, que necessita de cuidados tanto na poda quanto na colheita”, afirma a nutricionista Adriana Fernandes, proprietária da fazenda. Cuidados com as delicadas frutas é justamente um dos focos do atual trabalho da Embrapa, com a realização de palestras e visitas técnicas sobre fruticultura tropical na região.
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