Na semana que passou, nossas atenções ficaram voltadas às eleições presidenciais norte-americanas — natural, em razão das consequências que a nova administração pode ter no mundo e no Brasil. Ocorre que, como costuma acontecer, os norte-americanos não decidiram apenas o novo chefe de Estado, mas também vários outros temas de interesse nacional ou local. E, entre eles, há um assunto específico que também merece o olhar dos brasileiros porque pode vir a ter importante impacto entre nós, mais precisamente no nosso mercado de trabalho.
Refiro-me à “Prop 22”, aprovada pelos eleitores da Califórnia com impressionantes dez milhões de votos. Tal proposição estabelece exceções à AB5 (Assembly Bill 5), uma lei estadual trabalhista que entrara em vigor em janeiro de 2020, segundo a qual todos os trabalhadores que desempenham funções centrais ao negócio devem ser classificados como empregados. Foi com base na AB5 que o Estado da Califórnia, por meio de seu Procurador Geral, ajuizou ações contra as empresas Uber e Lyft, que resultaram na determinação judicial de que seus motoristas deveriam ser registrados como empregados. Ocorre que o custo da mão de obra empregatícia inviabiliza esse tipo de negócio e, justamente por isso, as companhias ameaçaram deixar o Estado, em que pese tenham lá sido fundadas e tenham lá seu maior mercado.
A aprovação da Proposição 22 é, portanto, um freio brusco a esse movimento estatal que resultaria na extinção dos serviços independentes de entrega e transporte na Califórnia. Segundo a norma recém-votada, os motoristas e entregadores de aplicativos não estarão sujeitos à AB5 e, portanto, continuarão a ser classificados como prestadores de serviços e não como empregados. Na prática, isso significa que embora possam ter acesso a alguns direitos, como a garantia de recebimento mínimo por hora trabalhada e vouchers subsidiados para seguro de saúde, não farão jus a benefícios de desemprego, à cobertura completa de saúde e, mais relevante, a uma garantia de remuneração mensal.
A tendência é que os demais Estados norte-americanos sigam a novíssima legislação da Califórnia, uma vez que ela é o berço das principais big techs. E como o Estado é referência no assunto também para o resto do mundo, incluindo nossos juristas brasileiros – que não hesitaram em brandir a lei AB5 como modelo de regulamentação a ser seguido -, o esperado é que também nós façamos uma reflexão a partir da reviravolta jurídica que lá ocorreu.
E é mesmo de se pensar porque os eleitores norte-americanos votaram majoritariamente em favor de uma lei que parece bem menos protetiva a seus trabalhadores. Pode-se argumentar que não foram os próprios motoristas que elegeram a medida. Mas o fato é que os destinatários das normas são a população como um todo – e foi ela que, diretamente perguntada, dispensou majoritária e democraticamente as medidas bem-intencionadas do Estado. Uma hipótese provável da razão pela qual tenha feito isso seja porque ela própria saiba, melhor do que os representantes estatais, que a suposta tutela só desprotegeria os trabalhadores, tirando-lhes a possibilidade de ter um trabalho flexível e rentável (muitos usam a função para complementar renda), ao passo que prejudicaria também a sociedade que faz bom uso dos já difundidos serviços de entrega e transporte. E aos que apontam um abuso no uso desse tipo de plebiscito ou referendo direto (nessas eleições na Califórnia foram nada menos que vinte e cinco), é preciso dizer: trata-se do expediente mais democrático que há, por meio do qual se permite ouvir, sem intermediários, os principais interessados, neutralizando grupos políticos que capturam determinadas pautas apenas para fazer proselitismo em interesse próprio.
O paralelo com o Brasil é inevitável, uma vez que fenômeno semelhante aconteceu aqui. Também aqui iniciou-se um movimento de iniciativas estatais (legislativas e judiciais) no sentido de se defender o vínculo de emprego para essas relações. Também aqui grupos políticos e sindicais, mais interessados em seus próprios destinos, puseram-se a defender maior “proteção” aos motoristas que trabalham com independência por meio de plataformas. E também aqui, quando foram ouvidos diretamente os interessados, estes disseram não querer ser empregados: foi o que revelou uma pesquisa Ibope feita em julho/20, quando mais de 70% dos motoristas responderam que dispensam a proteção da CLT.
Tanto nos EUA quanto no Brasil, apesar de seus ordenamentos jurídicos diversos, a discussão de fundo é simples e se resume à escolha entre (1) encarecer o trabalho em prol da “proteção” e correr o risco de inviabilizá-lo; ou (2) barateá-lo em prol de mais postos e mais dinheiro no bolso do trabalhador. É um debate válido para o qual, contudo, a população envolvida parece ter, tanto lá como aqui, pronta resposta: vota “não” aos que buscam protegê-la; prefere zelar pelo direito de seus trabalhadores de buscar mais renda, com independência.
Considerando-se que o fenômeno do trabalho independente por meio de aplicativos ou plataformas tende a se universalizar e dominar o mercado de trabalho do futuro, é imperioso utilizarmos a atenção ao exemplo norte-americano para garantir que, também aqui, a voz dos interessados se faça ouvir.
Ana Fischer é juíza do Trabalho da 3ª Região. Integrou a comissão de redação da Reforma Trabalhista e de outras normas legais. É uma das coordenadoras do GAET – Grupo de Altos Estudos do Trabalho do Ministério da Economia.
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