Os acúmulos materiais de uma vida de 32 anos do meu irmão cabem em um carro – um Toyota Hilux 4×4, 1994, que vive precisando de reparos de tanto viajar pela Austrália. O Léo é seis anos mais novo que eu e logo cedo revelou suas vocações e gostos bem diferentes dos meus.
Muito ligado à natureza, sabia reconhecer espécies de árvores e bichos quando ainda era criança. Lembro de encontrarmos aranhas no sítio do nosso avô e ele, do alto de seus talvez 7 anos, gritar: “Não se mexam! É uma armadeira, venenosa!”. Então pegava um pote de vidro e, com movimentos habilidosos, prendia o animal para que os adultos levassem ao Butantan para confirmar suas informações (que sempre estavam corretas). Eu ficava impressionada a cada cena dessas ou a cada vez que ele dizia o nome científico de uma árvore, enquanto eu, imersa nas minhas ideias e planos, mal havia notado uma árvore ali. Sempre espirituoso, ele passava os dias aprontando pegadinhas e armadilhas, assistindo à televisão de ponta-cabeça ou escalando a casa, com uma energia que não diminuiu ao longo do tempo. À noite, caía exausto e dormia – na cama, no sofá ou na cadeira do restaurante, com uma tranquilidade de dar inveja.
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O Léo cresceu e, aos 18 anos, foi passar uma temporada na Austrália (temos uma tia que mora lá há mais de duas décadas, o que ajudou na escolha do destino). Eu também fiz isso, mas cinco meses depois estava de volta. Já formada em jornalismo e a fim de seguir carreira no Brasil, não titubeei. Já ele, virou cidadão australiano e vive há 14 anos a mais de 15 mil quilômetros de “casa”.
Pouco depois de chegar lá, ele começou a construir o próprio caminho. Fez um curso de estudos marinhos, tirou carta de navegação e se tornou cozinheiro profissional. Morou por quase oito anos numa cidade de 2.500 habitantes e trabalhou boa parte desse período num restaurante italiano local, que preza pelos ingredientes frescos e receitas tradicionais. Tornou-se praticante de pesca submarina (na maioria das fotos que manda está segurando um ou dois peixões, exatamente como num retrato antigo no sítio, onde ele aparece, pequenininho, exibindo o sucesso da pescaria com o avô). Nos últimos anos, ele tem se aventurado por outras regiões da Austrália, atravessando o país de carro, trabalhando por temporadas em outros restaurantes, desbravando novos cenários da natureza. Aprendendo, como ele sempre enfatiza nos áudios que envia pelo WhatsApp.
É disso que eu falo quando escrevo sobre atitude empreendedora. Quando defendo que empreender não necessariamente tem a ver com construir uma empresa. O Léo empreendeu a própria vida, sem seguir cartilhas nem se deixar comandar por expectativas dos outros. Teve a coragem para ser o protagonista da aventura que criou. É feliz e sabe.
Embora nossas escolhas externas sejam muitas vezes opostas, vejo que os nossos valores e visão de mundo têm a mesma raiz – que, inevitavelmente, partiu dos nossos pais. Eles sempre falaram sobre liberdade e verdade (de cada um) como os mandamentos da vida. No fundo, estamos fazendo a mesma coisa: construindo aquilo que escolhemos viver, na medida do que nos é possível. Aproveitando intensamente a jornada. Preservando o que nos faz sentir livres acima de qualquer acordo. Encaramos a realização pessoal como o caminho para a realização de feitos externos. Somos ambos empreendedores, movidos por vocações e paixões diferentes.
Temos em comum ainda a curiosidade que se traduz numa infinidade de perguntas que trocamos em longas mensagens, o prazer de ter conversas profundas e filosóficas e de ouvir as aventuras um do outro. Vibramos juntos porque compreendemos além dos fatos, o que significam para cada um de nós. Ao longo dos anos, empreendemos também nossa relação com dedicação, cuidado, respeito. Aprendemos a discordar em voz baixa, não deixando que opiniões diferentes maculem a companhia inigualável que gostamos de fazer um para o outro, principalmente quando está em jogo o que realmente importa.
Outro dia ele me ligou preocupado com tudo isso que está acontecendo no mundo. E, pensando no pior cenário, me dei conta de que se tudo acabasse hoje, nós teríamos a sorte de nunca ter deixado de nos chamar de “irmãos”, de ter tempo de qualidade para compartilhar a qualquer distância e de dizer “eu te amo” ao fim das ligações.
A vida, assim como qualquer empreendimento, é sempre um risco. O que faz valer a pena, para mim, é a clareza do objetivo, a coragem da entrega e as companhias na jornada. Nisso tudo e em muito mais, Léo, estamos juntos.
Ariane Abdallah é jornalista, autora do livro “De um gole só – a história da Ambev e a criação da maior cervejaria do mundo”, co-organizadora do “Fora da Curva 3 – unicórnios e start-ups de sucesso” e fundadora do Atelier de Conteúdo, empresa especializada na produção de livros, artigos e estudos de cultura organizacional. Praticante de ashtanga vinyasa yoga, considera o autoconhecimento a base do empreendedorismo.
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