Como parte do especial Inovadores Negros que esta coluna deu início no mês passado, buscamos nesta semana trazer um olhar para a falta de representatividade de mulheres negras à frente de negócios de base tecnológica. Dados que registrem a presença destas empreendedoras são inexistentes, mas a pesquisa disponível mostra que o ecossistema nacional de startups está longe de ser diverso.
Em um estudo de 2019, a Associação Brasileira de Startups (ABStartups) mapeou mais de 12 mil novos negócios e verificou que 84,3% dos fundadores de startups são homens, contra 15,7% de mulheres que lideram estas novas empresas. Outro estudo, o 100 Super Founders, da Distrito, contém uma centena de líderes de empresas inovadoras em sua última edição, lista duas mulheres – Cristina Junqueira, do Nubank e Karin Thies, da Geru, ambas brancas.
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A forte sub-representação de negras em cursos superiores que invariavelmente levam à criação de startups de sucesso, como engenharia e outras carreiras de exatas, é um dos fatores que explicam a escassez destas mulheres na liderança de startups de tecnologia, mas existem outros elementos a considerar, segundo Silvana Bahia, diretora de projetos da organização social Olabi e coordenadora do PretaLab, primeira iniciativa no Brasil com foco na inclusão de mulheres negras e indígenas no ecossistema de tecnologia e inovação.
“Para além da questão da educação, há uma falta de acesso a espaços de experimentação, de pensar que isso é uma possibilidade, além da falta de investimentos em negócios de mulheres negras na área de tecnologia”, diz Silvana, acrescentando que mulheres negras que já estão empreendendo também sofrem com a falta de apoio: “Além de o estímulo para que outros negócios nasçam não existir, os negócios que existem acabam morrendo por falta de investimento, pois não são vistos como algo promissor.”
Os desafios em relação à falta de investimento apontados por Silvana são relatados pelas empreendedoras reunidas nesta lista, e reiterados em estudos recentes sobre o tema: dados do relatório “wX Insights 2020 – The Rise of Women STEMpreneurs”, do Banco Inter-Americano de Desenvolvimento e do Santander X mostram que 78% das fundadoras de startups brasileiras recorrem a contatos próximos, como amigos, como fonte principal de capital, por conta da dificuldade de acessar outras fontes.
Segundo Maitê Lourenço, CEO da aceleradora BlackRocks Startups, estas empreendedoras não conseguem acessar capital por conta de um racismo estrutural presente no processo de tomada de decisão de investidores, o que impacta também a capacidade de atrair sócios para estas novas empresas: “As pessoas não nos identificam como as profissionais capazes de desenvolver negócios e muitas vezes [estas startups] acabam tendo este deficit, tanto em investimento quanto em parceiros para agregar, porque essas mulheres não são vistas como ideais para ocupar estes espaços”, ressalta.
A falta de recursos faz com que mulheres não consigam se dedicar inteiramente aos seus projetos, diz Maitê: “Isso gera um atraso muito grande no desenvolvimento do negócio e na prototipagem do produto. [Startups] que acompanho há anos não saem do lugar porque essas mulheres precisam trabalhar em outras coisas para poder fazer com que seus negócios existam, pois não é a startup em si que gera monetização para elas”, aponta.
Segundo Ana Fontes, presidente do Instituto Rede Mulher Empreendedora, o desemprego resultante da pandemia levará a um aumento no empreendedorismo, tanto em áreas mais convencionais quanto negócios na Internet – mesmo que a digitalização seja etérea para muitas empreendedoras e que existam limitações como o acesso à Internet entre a população negra. Segundo a pesquisa TIC Domicílios 2019, lançada pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), 58% dos brasileiros, em sua maioria pobres e negros, acessam a rede exclusivamente por meio de seus telefones celulares, o que dificulta a geração de renda online.
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Ana também ressalta a necessidade de criar mais oportunidades de crédito e investimento para estas mulheres, bem como garantir a capacitação, além de dar visibilidade a quem já empreende: “Dar espaço para que mulheres negras apresentem seus projetos é vital, pois outras que acham que não é possível veem pessoas que são exatamente como elas e enfrentam os mesmos desafios conseguiram criar negócios de base tecnológica”, aponta.
Silvana Bahia, da Olabi, ressalta a importância da representatividade, por mais que o empreendedorismo não seja possível para todas: “A camada de representatividade é só um primeiro passo para que possamos trabalhar a inclusão e equidade: há uma tendência de esvaziar este conceito, mas ele é necessário, pois sem ele você nem sonha. É fundamental se inspirar”, aponta.
É no ponto da representatividade que trazemos a nossa contribuição, com uma lista de mulheres negras de diversas partes do Brasil que contrariam as estatísticas e estão à frente de negócios de base tecnológica. Esta lista não é exaustiva, e continuaremos em busca de histórias de inovadores negros para contar. Conhece inovadores negros? Entre em contato: [email protected]
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Divulgação Caroline Moreira, Negras Plurais (Rio Grande do Sul)
Formada em contabilidade, a gaúcha Caroline Pereira tinha uma trajetória profissional bem definida na cabeça: ia trabalhar na área por algum tempo, fazer mestrado e dar aulas de gestão tributária. Até que o racismo se apresentou na sua frente de uma maneira como nunca tinha acontecido antes. Ao dar à luz ao filho, em uma das maternidades mais caras de Porto Alegre, viu a mãe ser impedida de ficar no mesmo quarto que ela – benefício a que tinha direito pelo convênio.
A partir daí, começou a perceber que essas coisas aconteciam com uma frequência sobre a qual ela não tinha se dado conta – e decidiu que não dava para continuar ignorando essa condição. Desde então, tem se dedicado a ocupar cada vez mais espaços no cenário do protagonismo negro – e a abrir espaços para outras mulheres como ela.
Atualmente, Carol comanda o Negras Plurais, uma rede de aceleração de negócios entre mulheres. A startup está finalizando um aplicativo que concentra os perfis de profissionais e empreendedoras das mais variadas áreas – mais de 5 mil – e automatiza o “match” para disponibilizá-la com mais agilidade e eficiência. A comercialização de produtos e serviços será automatizada, tornando mais fácil para as consumidoras praticarem o giro econômico entre mulheres negras.
Além do pilar empreendedor, a Negras Plurais tem também um viés empresarial. Caroline usa sua experiência e seus contatos para ajudar a preencher vagas para companhias interessadas em investir na diversidade.
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Helen Salomão/Divulgação Elida Aquino, AfrôBox (Rio de Janeiro)
Élida Aquino é a empreendedora à frente da beautytech AfrôBox. A startup do Rio de Janeiro é pioneira no desenvolvimento de um clube de caixas de beleza por assinatura do Brasil com foco em pessoas negras e com cabelos afro. O serviço entrega mensalmente de 5 a 8 produtos e já atraiu o interesse de empresas como a L’Óreal, que acelerou a empresa através de sua iniciativa Fábrica de Startups, bem como da Shell, através do programa Iniciativa Jovem. Para incrementar a curadoria especializada nos públicos primários que atende, a empresa desenvolveu seu próprio sistema de recomendações, que permite maior assertividade nas escolhas de produtos cosméticos.
Segundo Élida, o foco no momento é a busca por oportunidades de captação de investimento para escalar o negócio após a etapa de validação. A empreendedora também está trabalhando em novas possibilidades de colaboração no time e em melhorias para a nova plataforma do clube, que deve ser relançado em breve.
Romper a barreira da escala é o maior desafio para a fundadora da beautytech, que já comprovou sua viabilidade e, através de parcerias com grandes empresas, melhorou o planejamento. “Sem dúvida, é um negócio pioneiro e relevante pro mercado de beleza hoje, mas ainda tenho encontrado contratempos para otimizar o desempenho quando o assunto é escalabilidade”, conta.
Élida sente que é preciso transcender lugares que foram reservados para mulheres negras e aumentar a representatividade para trazer a inspiração necessária para que outras fundadoras de startups possam emergir: “Como jovens negras vão pensar em ocupar lugares dentro de áreas tecnológicas se a quantidade de negras nesses lugares ainda é ínfima, especialmente em posições de destaque e, mais especialmente ainda, com grande visibilidade?”, questionam acrescentando que investimento na criação destas empreendedoras é crucial:
“A transformação deve vir através de investimento na base, tanto de recursos financeiros quanto intelectuais: promover oportunidades de inspirar a mente das crianças e jovens vulneráveis com essas imagens que geram identificação e, sobretudo, levar ferramentas para que identifiquem suas vocações, entendam o que são essas carreiras e do que precisam para avançar dentro delas, desenvolvam ao máximo suas habilidades desde cedo”, ressalta a fundadora.
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Divulgação Joana Mendes, YGB.BLACK (Rondônia/São Paulo)
A rondoniense radicada em São Paulo Joana Mendes é a criadora do YGB.BLACK, o primeiro banco de imagens de mulheres negras do mundo. Depois de ter se formado em publicidade em Porto Velho, se mudou para o Rio de Janeiro, onde fez pós-graduação na ESPM e morou por seis anos. A decisão de mudar para São Paulo se deu em 2012, depois de Joana ter sido selecionada pelo Festival de Cannes para fazer parte do primeiro Young Lions Creative Academy.
A motivação para criar o YGB.BLACK, em 2017, veio com percepções de Joana sobre o racismo imbuído nas rotinas do trabalho publicitário, onde a escolha de fotos para campanhas reflete uma preferência pelo padrão eurocêntrico de beleza, com pessoas brancas e magras. A iniciativa, que conta com a operação brasileira e global da Havaianas como primeiro cliente, já tem 100 fotos no momento, número que deve aumentar para 170 nos próximos três meses.
O principal entrave do empreendimento, segundo Joana, é a falta de networking para fazer o negócio ganhar escala: “O maior desafio é o fato de eu não ser muito conhecida: por ser uma mulher negra não tenho tanto capital social e não conheço tanta gente”, conta a publicitária, acrescentando que este problema é ampliado por um movimento de precarização no mercado publicitário em curso no momento, em que potenciais consumidores do serviço não pagam tanto por este tipo de trabalho.
No entanto, a empreendedora segue confiante na expertise que conseguiu reunir para o projeto e busca novas marcas que queiram produzir editoriais com o material do banco. Orquestrada por Joana, uma rede independente e colaborativa de mulheres – todas negras – trabalha na construção do projeto, com competências que incluem desde fotografia e maquiagem até produção de moda, direção de arte e desenvolvimento web. “Temos um know-how que a maioria das outras empresas não tem, com mulheres negras que fazem tudo, de ponta a ponta. [A iniciativa ocupa] um lugar de pioneirismo para mostrar mulheres negras nas suas potencialidades, e além disso, somos muito boas no que fazemos.”
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Divulgação Itala Herta, Diver.SSA (Bahia)
Baseada em Salvador, Itala Herta é a fundadora da Diver.SSA, uma edtech com foco nas regiões Norte e Nordeste, cujo objetivo é desenvolver o empreendedorismo feminino de impacto social, bem como o intra-empreededorismo, ao conectar inovadoras com grandes empresas. Itala também é a cofundadora da Vale do Dendê, aceleradora baiana de negócios focada em diversidade do Nordeste.
Com a Diver.SSA, a empreendedora atua em três frentes: ORG, voltada a projetos de cunho social, com o que Itala chama de acolhimento estratégico: “Antes de falar de educação empreendedora é preciso acolher mulheres, pois muitas vezes elas trazem muitas necessidades básicas e questões como violência doméstica, e conduzimos nossos processos considerando estes contextos e vulnerabilidades”, aponta. Além disso, há a Educa, atualmente focada em migrar a educação empreendedora para o contexto digital, através de meios acessíveis como WhatsApp, sempre trabalhando com mulheres que, em sua maioria, estão em situação de vulnerabilidade social.
Esta frente também ajuda mulheres na digitalização de seus negócios, principalmente no que diz respeito a acesso às ferramentas necessárias para o processo. Segundo Itala, isso é especialmente importante no momento, dada a aceleração do digital durante a pandemia e a importância destes canais para estes empreendimentos. “As mulheres estão bem distantes não na intenção, mas no ferramental e na disponibilidade em suas rotinas empreendedoras para digitalizar,” afirma, se referindo ao aumento do trabalho para estas que já tinham papeis profissionais e domésticos acumulados, durante a pandemia. “Precisamos ajudar, sendo elas ficarão na informalidade e não conseguirão acompanhar a aceleração digital que vivemos.”
A terceira área de atuação, a Company, é onde a edtech tem ganhado mais músculo, com um trabalho que conecta fundadoras de startups com grandes marcas que evolui a atuação de Itala como consultora nos últimos anos. “Inserir startups lideradas por mulheres na cadeia de valor de grandes empresas é muito valioso, tanto para as mulheres, que recebem a confiança de serem fornecedoras e recebem um grande empurrão financeiro, quanto para marcas que tratam inovação sob a lente de gênero e interseccionalidade”, ressalta.
Enquanto o braço corporativo da startup cresce, Itala está buscando capital semente para o braço ORG e Educa da Diver.SSA, que servirá para aumentar o alcance das iniciativas de educação e mentoria, atualmente feitas a preços populares, ou de forma voluntária. Porém, existem barreiras a romper, mesmo com a atuação de Itala em mais de uma década no desenvolvimento de negócios de base tecnológica: “É um paradoxo: por mais que eu esteja inserida no ecossistema de empreendedorismo e inovação, é muito difícil para uma mulher negra conseguir capital semente ou um investimento de risco para construir uma startup, pois os critérios são sempre definidos por um homem branco, que muitas vezes desconhece nossas realidades e não vê negócios de periferia como viáveis e escaláveis.”
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Divulgação Priscila Gama, Malalai (Minas Gerais)
Priscila Gama fundou a Malalai, startup que desenvolve tecnologia para segurança pessoal feminina, depois de se deparar com um relato de violência sexual durante um translado, em 2015. Arquiteta e urbanista de formação, é baseada em Belo Horizonte. Sua empresa desenvolve um app que analisa a rota de deslocamento planejada pela usuária, com base em critérios como policiamento fixo no caminho, comércio aberto no horário planejado para o trajeto, bem como ocorrências de assédio no local em que a usuária planeja passar. A empreendedora teve seu trabalho reconhecido nos últimos anos por múltiplos prêmios, como o Creator Awards, da WeWork, e homenagens como o Trip Transformadores.
Segundo a fundadora, o app se baseia laços de confiança e na colaboração como instrumentos de prevenção à violência. Priscila, que acredita que “big data tornará as cidades mais seguras”, agora busca desenvolver uma solução de software gratuito mais simples, e de menor custo operacional, que ainda será validada. A empreendedora também estava buscando redução de custo de produção de tecnologia vestível no exterior antes da pandemia, mas esta frente de trabalho foi pausado por falta de retorno dos fornecedores, localizados principalmente na China.
Os maiores desafios relatados por Priscila são relacionados a tornar a Malalai minimamente sustentável em um médio período de tempo, e conta que a startup, que surgiu com foco em Big Data, teve diversos entraves internos e externos ao longo de sua jornada. “No momento, estou validando alternativas com outros focos, mas que possibilitem a gratuidade do software. Uma solução mantenedora, digamos assim”, aponta.
A falta de empreendedoras negras no ecossistema de tecnologia, segundo a fundadora, se deve à mesma razão pela qual mulheres e homens pretos tem baixa representatividade em diversas outras áreas que exigem qualificação técnica de nível superior: “Vivemos em um mundo racista, com marcas profundas de um longo período escravocrata. Ao meu ver, [o problema] reverte-se com autonomia: pessoas pretas em rede, criando seus próprios negócios, contratando seus semelhantes, com foco em fortalecimento de seus iguais.”
Caroline Moreira, Negras Plurais (Rio Grande do Sul)
Formada em contabilidade, a gaúcha Caroline Pereira tinha uma trajetória profissional bem definida na cabeça: ia trabalhar na área por algum tempo, fazer mestrado e dar aulas de gestão tributária. Até que o racismo se apresentou na sua frente de uma maneira como nunca tinha acontecido antes. Ao dar à luz ao filho, em uma das maternidades mais caras de Porto Alegre, viu a mãe ser impedida de ficar no mesmo quarto que ela – benefício a que tinha direito pelo convênio.
A partir daí, começou a perceber que essas coisas aconteciam com uma frequência sobre a qual ela não tinha se dado conta – e decidiu que não dava para continuar ignorando essa condição. Desde então, tem se dedicado a ocupar cada vez mais espaços no cenário do protagonismo negro – e a abrir espaços para outras mulheres como ela.
Atualmente, Carol comanda o Negras Plurais, uma rede de aceleração de negócios entre mulheres. A startup está finalizando um aplicativo que concentra os perfis de profissionais e empreendedoras das mais variadas áreas – mais de 5 mil – e automatiza o “match” para disponibilizá-la com mais agilidade e eficiência. A comercialização de produtos e serviços será automatizada, tornando mais fácil para as consumidoras praticarem o giro econômico entre mulheres negras.
Além do pilar empreendedor, a Negras Plurais tem também um viés empresarial. Caroline usa sua experiência e seus contatos para ajudar a preencher vagas para companhias interessadas em investir na diversidade.
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