Criado como mecanismo de proteção para situações inesperadas, o seguro foi colocado à prova durante a pandemia. Nas apólices de vida, as restrições de pagamento de indenização em caso de pandemia foram retiradas. Nos planos de saúde, a tecnologia da telemedicina foi acelerada para dar atendimento remoto aos clientes quando os hospitais estavam lotados com pacientes de Covid, situação que ultrapassou todas as expectativas das operadoras do setor em termos de utilização e custos. E, enquanto o seguro do carro passou a ser menos acionado, aumentaram as solicitações em apólices de residência e condomínio por causa do aumento repentino da quantidade de pessoas trabalhando e estudando em casa. A intensificação do uso da internet fez disparar as ocorrências de fraudes e ataques cibernéticos, aumentando a procura por produtos específicos. E a crise financeira decorrente da pandemia impactou a receita, exigiu renegociação de contratos e flexibilização de produtos.
Em meio a tantas adaptações, o mercado de seguros também se prepara para uma mudança estrutural, o open insurance, um modelo de compartilhamento de dados – semelhante ao que está sendo implantado no sistema bancário – que permitirá a troca de informações dos clientes entre as seguradoras, com o objetivo de baratear, simplificar e diversificar a oferta de seguros no país. Um processo complexo que o governo espera ver funcionando ainda no final deste ano.
Recuperação em V
Mesmo encarando o risco como parte do negócio, a resiliência do setor frente à crise sanitária foi surpreendente. “Nossa recuperação foi em V”, analisa Marcio Coriolano, presidente da Confederação Nacional das Seguradoras (CNSeg). “A pandemia foi declarada no final de fevereiro e em março tudo já tinha caído no vértice do V, o PIB, a arrecadação de todos os setores, a mobilidade e tudo mais. O curioso é que, quando chegou maio, os números começaram a se recuperar – e continuam em ritmo de recuperação até hoje.” O executivo lembra que o setor ainda não chegou ao patamar que estava no quarto trimestre de 2019, mas, na comparação entre os primeiros quatro meses de 2021 em relação ao mesmo período do ano anterior, o avanço foi significativo. “Claro que houve um impacto no mercado, mudou a realidade no mundo inteiro. Por outro lado, a pandemia fez despertar nas pessoas uma importância ainda maior sobre proteção e segurança com relação à vida, à saúde e aos bens patrimoniais. Dessa maneira, entendemos que a indústria de seguros passará a ocupar um espaço maior na economia, justamente por operar no conceito de oferta de proteção”, diz Roberto Santos, presidente da Porto Seguro.
Para Ivan Luiz Gontijo Junior, CEO da Bradesco Seguros, o bom resultado da sua companhia se deve à “heterogeneidade de desempenho entre os diferentes ramos” em que atua e ao “redirecionamento do foco para novos produtos e coberturas, flexibilização de prazos, contratação ágil, além do avanço da digitalização”.
A diversidade de ramos é uma característica que costuma favorecer as seguradoras multilinha, compensando o desempenho ruim de uma carteira com a performance melhor de outra. Nos últimos anos, seguros de riscos financeiros e o seguro rural, por exemplo, têm tido desempenho melhor que o seguro de transportes ou de automóveis. Com a pandemia, os especialistas buscam reconhecer nas mudanças de comportamento quais prevalecerão e que tipo de proteção poderão oferecer. “Nos últimos anos, vimos os seguros voltados para pessoa física ultrapassarem o mercado de seguros para veículos. Agora observamos um apelo ainda maior dos produtos que protegem a vida e a residência, dada a nova dinâmica de trabalho em home office, assim como observamos queda nos sinistros de veículos pela menor circulação. Essas tendências, mesmo que em uma escala menor, devem seguir no futuro, considerando um ambiente de trabalho mais remoto, a nova sensação de risco e uma preocupação com planejamento financeiro e sucessório”, observa Eduardo Domeque, diretor de seguros do Itaú Unibanco.
Eduard Folch, presidente da Allianz, ressalta que a ação das seguradoras nos últimos meses mostrou o valor da atividade, pois “fortaleceu as premissas básicas da contratação de seguros: garantir a saúde e os bens, principalmente em um cenário de crise”. O economista Francisco Galiza concorda que o consumidor agora está mais propenso a fazer seguros, sobretudo na área de benefícios, mas lembra que “o problema é que ficamos mais pobres, o que pode influenciar a demanda. O ganho no mercado de seguros virá no médio prazo”, afirma, destacando que o setor continuará perseguindo a redução de custos, com crescimento dos investimentos em tecnologia e uso de mídias diferenciadas.
Estudo da consultoria global de RH Robert Half também aponta que a inovação tecnológica tornou-se prioridade para o setor segurador, impactando diretamente no perfil dos profissionais que atuam na área, com oportunidades para aqueles com conhecimentos em inovação digital. De acordo com Ana Guimarães, gerente de recrutamento da Robert Half, o desafio das empresas do setor será ampliar a carteira de clientes e garantir boa participação no mercado. Para isso, farão uso, entre outras ferramentas, do chamado know your customer (KYC). “Esse procedimento evita crimes e fraudes e permite que as organizações conheçam o perfil de cada cliente, para avaliar e monitorar os riscos envolvidos na relação. Além disso, o KYC possibilita à companhia oferecer uma precificação do produto mais justa para o consumidor”, afirma.
O uso massivo da tecnologia já permite que a AXA Seguros tenha uma dinâmica de vistoria acelerada para ocorrências de valores mais baixos, garantindo o pagamento da indenização em até cinco dias. “A tendência é olhar cada vez mais para os processos de uma forma simples, analisando o que faz mais sentido para o cliente”, diz Erika Medici, presidente da seguradora.
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Mercado aberto
A expectativa de que o open insurance promova uma revolução na forma de as seguradoras interagirem com os clientes, corretores de seguros e até mesmo com a concorrência tem gerado inquietação no setor. O modelo de compartilhamento de dados – que está sendo regulamentado por meio de resoluções do Conselho Nacional de Seguros Privados (CNSP) e circulares da Superintendência de Seguros Privados (Susep), autarquia vinculada ao Ministério da Economia que fiscaliza o setor – vai permitir que consumidores compartilhem seus dados com outras seguradoras ou terceiros, de forma segura e rápida. Com acesso a informações como o histórico de relacionamento, por exemplo, outras empresas poderão propor produtos mais adequados à sua necessidade e até mais baratos, aumentando a concorrência. “O ambiente do open insurance tem potencial para melhorar a forma como clientes, em especial pessoas naturais e pequenas e médias empresas, gerem as suas finanças, como as empresas interagem entre si e com os seus clientes, além de promover a inclusão financeira, a democratização do acesso a produtos de seguros e previdência e de transformar a concorrência no mercado”, comenta a superintendente da Susep, Solange Vieira. “Poderemos ver consumidores anteriormente com pouco ou nenhum acesso, mas com disposição ou necessidade para aquisição de produtos de seguro, podendo obter coberturas customizadas, mais baratas e sentindo-se capacitados para interagir com os diversos atores dos mercados de seguros e previdência.”
O novo modelo exige profundas alterações operacionais e tecnológicas nas empresas – e o prazo para adequação vai até 15 de dezembro, quando seguros deverão se incorporar à quarta fase de implementação do open banking. O modelo aberto no setor bancário entrou em sua segunda fase em 15 de julho, data a partir da qual os clientes podem compartilhar informações da conta bancária, dos cartões e operações de crédito, além de dados pessoais.
No caso das seguradoras, o modelo aberto ocorre em três níveis: nas transações realizadas entre clientes e seguradoras; nas transações entre as empresas reguladas e o órgão regulador, por meio da regulação do SRO (Sistema de Registro de Operações), que está sendo tratada em paralelo; e nas transações entre as próprias seguradoras, com os sistemas de dados compartilhados da CNSeg. “O open insurance tem um lado muito positivo, mas a Susep começou pelo lado do tripé que deveria ser o último, que é o da relação com o regulador. Além disso, estabeleceu um sistema muito complexo e muito amplo, exatamente em um momento em que as seguradoras estão buscando sobreviver e todos os seus investimentos, todos os esforços, estão voltados para a operação”, lamenta Coriolano, da CNSeg, que vê “uma insegurança grande no setor, porque não existe ainda um modelo de arquitetura de dados, embora existam prazos a cumprir.”
As seguradoras também reclamam da assimetria de exigências regulatórias entre as empresas que já atuam no mercado e as que podem chegar com a nova regulamentação (e demais atores que tendem a surgir a partir da abertura). Segundo Rafael Mottinelli, líder de engajamento da prática de Seguros da Accenture, o novo cenário preocupa as seguradoras líderes, que temem a perda de mercado. Hoje, as cinco maiores detêm mais de 50% da receita do setor. “A questão para elas não é somente como tomar vantagem do modelo open, mas como irão se proteger da competição que surge favorecida por esse novo formato de negócio.”
Especialista no setor, a advogada Márcia Cicarelli, sócia do escritório Demarest, analisa: “Ao se propor a aumentar a concorrência, o modelo também aumentará a penetração do seguro na sociedade que, no Brasil e na América Latina como um todo, é muito baixo. A proposta da Susep traz ainda um forte componente de inovação que visa permitir o surgimento de novos produtos e serviços para deixar esse mercado mais ágil e atraente para as novas gerações cada vez mais digitais”.
“Estamos atrasados”, polemiza Heverton Peixoto, o CEO da Wiz Soluções. “As leis estão se modernizando, o órgão regulador está aberto a discussão e o mercado é que tem dificuldade de sair na inércia.” O executivo avalia que, com o open insurance, a dinâmica de assessoramento e de compra dos seguros vai mudar. “O cliente vai descobrir seguros que ele nem imagina que contratou ou que ainda estão vigentes e com um aplicativo ele poderá fazer a portabilidade de todos esses contratos para uma cotação melhor.”
Reportagem publicada na edição 88, lançada em junho de 2021.
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