A aprovação da PEC (Proposta de Emenda à Constituição) 23/21, conhecida como PEC dos Precatórios, pela comissão especial da Câmara dos Deputados esteve no centro do debate econômico na última semana. Ontem (26), o plenário teve sessão deliberativa para discutir o documento, que sugere parcelamento dos precatórios e alterações no cálculo do teto de gastos do governo federal.
Ainda não há data prevista para a votação na Câmara e, se aprovada pelos deputados, a proposta ainda precisa passar pelo Senado, onde pode ser freada por resistência às alterações.
Mas as mudanças sugeridas já trazem incertezas para os investidores. Na última quinta-feira (21), após a aprovação do projeto pela comissão especial, o Ibovespa, principal índice da Bolsa brasileira, encerrou o pregão a 107.735 pontos, o menor patamar de fechamento dos últimos 11 meses. A queda se deu pela possibilidade de o governo driblar a regra do teto de gastos, o que acarreta um desconfiança no mercado em relação ao comando da área fiscal do país.
Para entender a PEC, o advogado Vicente Coelho Araújo, sócio do escritório Pinheiro Neto, explica que “precatórios” são uma espécie de dívida da União. Essa dívida surge de uma disputa judicial geralmente iniciada por prestadores de serviços ou beneficiários públicos contra o governo federal.
Ou seja, tanto uma empresa que prestou serviços para algum ministério e não teve seu pagamento realizado, quanto uma pessoa física que teve o auxílio doença negado pelo INSS, por exemplo, podem recorrer judicialmente contra a União. Se ganharem o caso, a dívida é formalizada e entra para a conta de precatórios que devem ser pagos pelo governo.
“Geralmente, as pessoas e empresas têm 48 horas para pagar suas dívidas após a ação julgada, ou seus bens são penhorados”, diz Araújo. “Com relação à União, isso não acontece. Todas as pessoas que estão na fila para receber a dívida devem formalizar seus precatórios até 31 de julho e, em tese, este pagamento deve ser feito no ano seguinte e ser incluído no orçamento”.
Quando não há possibilidade de incluir os pagamentos no orçamento do ano seguinte, por conta do teto de gastos, Araújo explica que a dívida é adiada para o ano subsequente. “Temos estados que ainda estão pagando precatórios de 2015, por exemplo. O princípio constitucional de pagamento no ano seguinte não está sendo cumprido”, afirma.
Manoel Pires, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da FGV, aponta que nos últimos anos a despesa com os precatórios tem crescido consideravelmente acima da inflação, e isso causa a principal dificuldade de incluir o pagamento no orçamento. “Neste ano, os precatórios estavam próximos de R$ 55 bilhões. A previsão para o ano que vem é de R$ 90 bilhões. É um crescimento desproporcional”, diz.
Neste cenário, o pagamento das dívidas passa a ocupar uma parcela significativa e imprevisível dentro do teto de gastos, impossibilitando o direcionamento de recursos para outras áreas. Para 2022, o valor correspondente ao aumento dos precatórios era o montante que estava previsto para o rajuste de R$ 400,00 dos benefícios do Bolsa Família, que será substituído pelo Auxílio Brasil.
Com a PEC 23/21, o governo federal propõe alterações no pagamento dos precatórios e no cálculo do teto de gastos para que ambas as despesas caibam no Orçamento de 2022.
A proposta em curso no Congresso prevê que o pagamento dos precatórios seja parcelado e, para aqueles credores que necessitem receber na data prevista pela lei, seja aplicado um desconto de 40% no valor, afirma Araújo. “O problema é que as pessoas e empresas já estão há muitos e muitos anos esperando por esse pagamento, e essa alteração pode gerar ainda mais insegurança.”
Já em relação ao teto de gastos, André Marques, professor de economia no Insper, diz que o projeto propõe que o reajuste no valor do teto seja calculado com base na inflação acumulada entre janeiro e dezembro do ano anterior. Atualmente, a regra considera julho de um ano até junho do ano seguinte.
Por exemplo, na regra atual, o teto de gastos para 2022 é calculado com base no teto de gastos de 2021 corrigido pela inflação acumulada entre junho de 2020 e junho de 2021. Se aprovada, a PEC consideraria janeiro de 2021 a dezembro de 2021 para reajustar o valor máximo de despesas públicas.
Para Marques, o problema dessa mudança é que, no primeiro ano de aplicação, a inflação corrigida com base em dezembro seria muito maior do que a acumulada em junho. “É como se o governo estivesse aumentando o valor do teto com base no IPCA de 18 meses, e não de 12. Por isso, o teto fica muito maior e pode compreender todas as despesas”, explica o professor.
“A falta de informação e estudos por trás da proposta gera especulação de que esse aumento no teto no primeiro ano após a aprovação da PEC tem interesses eleitorais para 2022”, avalia o economista.
Impactos Econômicos
Para os especialistas, as propostas de alteração previstas na PEC trazem principalmente mais insegurança para investidores, beneficiários do governo federal e prestadores de serviços, e perda de credibilidade para a instituição. “Quando você muda uma regra vigente, o investimento de médio a longo prazo fica mais afetado. O investidor não sabe como será o dia de amanhã e não consegue fazer seu planejamento”, comenta Marques, do Insper.
O economista também aponta para os efeitos negativos de destinar um gasto de longo prazo (o pagamento dos precatórios) para um de curto prazo (o Auxílio Brasil de R$ 400,00), considerando que o pagamento do auxílio que substitui o Bolsa Família está com validade prevista para dezembro de 2022.
“As mudanças na fórmula de reajuste do teto de gastos podem parecer artimanhas para ter um espaço maior de despesas às vésperas de uma eleição que já está se mostrando dura”, diz o professor.
Pires, da FGV, também alerta que adiar despesas que são recorrentes, como os precatórios, podem ocasionar em uma bola de neve para a União.
“Entre os riscos, aqueles que estão esperando para receber o pagamento terão menos renda e vão precisar se ajustar financeiramente. As empresas que prestam serviços para o governo podem aumentar o valor de seus contratos, para incluir o risco de não receber o pagamento. E a credibilidade da União em acordos comerciais é perdida pela ineficácia dos contratos”, diz ele.
Para Araújo, do Pinheiro Neto, a PEC também pode afetar o mercado de vendas de precatórios. Aqueles que precisam receber rapidamente o pagamento das dívidas costumam vender o precatório por um valor menor para uma empresa ou investidor. Com o parcelamento das dívidas, a venda antecipada pode ser ainda mais desvalorizada.
Crescimento dos precatórios
O pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da FGV aponta algumas razões para o aumento no volume de precatórios a serem pagos pelo governo federal. Para ele, um dos fatores que contribui para o crescimento é que está previsto para 2022 o pagamento de um precatório cuja disputa judicial se iniciou em 2002, referente a um repasse equivocado feito pela União aos Estados.
Na época, o repasse estava relacionado com o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef). Os estados ganharam a causa, e o valor do precatório é de R$ 15 bilhões.
Pires aponta que “vazamentos” de ajustes fiscais também contribuíram para o crescimento das dívidas do governo. “Desde 2016, iniciou-se um processo de ajuste fiscal em que os ministérios têm menos recursos para gastar. Portanto, eles contratam serviços e apenas depois descobrem que o caixa não compreende o pagamento”, explica.
Por conta da dificuldade desse ajuste fiscal, na visão do economista, mais empresas têm entrado na Justiça. Ao mesmo tempo, vale ressaltar que o governo tem sofrido derrotas maiores e mais frequentes. “Há uma perda de capacidade de administrar e defender a União juridicamente. A defesa não aceitou alguns acordos que diminuíram o custo do pagamento, então perderam a causa e agora o precatório é ainda maior”, afirma Pires.
Nesse contexto, os precatórios relacionados à Previdência também se tornaram mais comuns. “De 2021 para 2022, esse tipo de precatório cresceu R$ 9 bilhões”, diz. Para o pesquisador, isso acontece porque os peritos do INSS estão mais criteriosos para oferecer o benefício da Previdência Social, o número de atendimentos está menor e a população, envelhecendo. “A fila do INSS é gigantesca. Chega um momento em que as pessoas se cansam de esperar e entram na Justiça”, pontua.