Balões norte-coreanos voltaram a aterrissar ao Sul do território nesta semana, esquentando a “guerra dos balões” ao redor do Paralelo 38 Norte, que divide a Coreia em duas desde 1953. O conflito inflável tem como armas uma variedade de lixo enviado através da fronteira, de um lado; e folhetos anti-Pyongyang, vídeos de K-pop e K-drama, de outro.
Desde maio, a Coreia do Norte enviou balões com sacos repletos de resíduos de papel e plástico, cigarros e fezes, causando transtornos ao vizinho. Pyongyang alega retaliação contra uma campanha de desertores e ativistas, que lançaram balões contendo folhetos contra o líder Kim Jong Un, notas de dólares e pen drives com músicas e vídeos.
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A batalha inusitada faz lembrar uma série coreana de sucesso da Netflix. “Pousando no Amor” conta a história de uma jovem herdeira sul-coreana que sofre um acidente de parapente após ser atingida por um tornado durante o voo. Ela acaba sendo jogada para fora da fronteira sul, caindo em solo norte-coreano. O episódio deve ter inspirado telespectadores na vida real.
A série, que estreou em 2019, foi o quarto programa de TV mais visto na história da Coreia do Sul. As cenas entraram na mente dos fãs, causando um turismo indesejado de asiáticos à Suíça — a pequena vila de pescadores de Iseltwald, na margem sul do Lago Brienz, foi local de filmagens.
Mas o sucesso das produções culturais não se restringe apenas ao turismo nem à diplomacia sul-coreana. O estilo rende cerca de US$ 5 bilhões (cerca de R$ 30 bilhões) ao ano à economia da Coreia do Sul. Ou seja, músicas e novelas surtem efeito no PIB, que passou de US$ 500 bilhões para US$ 1,650 trilhão entre 2000 e 2020.
Cultura-K
Além de movimentar a economia local, trata-se também de um bem de exportação, gerando consumo. Para se ter uma ideia, fora da Ásia, o Brasil é o segundo país que mais consome K-dramas, ficando atrás apenas dos Estados Unidos.
Com isso, o fenômeno cultural vindo da Coreia do Sul ganhou um nome e é chamado de “onda coreana” – ou “hallyu” na língua local. O movimento é formado por uma variedade de produções artísticas e culturais, tendo na crista o K-pop e o K-drama.
Apesar desse tsunami que abrange 225 milhões de pessoas no mundo, o surgimento dessa onda foi algo planejado. Tudo começou no fim dos anos 1990, quando o governo de Seul passou a estimular a indústria de entretenimento.
O objetivo era se recuperar da crise dos “Tigres Asiáticos”, de 1997. A partir daí, a verba pública passou a apoiar a cultura popular com subsídios e políticas de incentivo ao investimento privado, como empréstimos a juros baixos e fundos voltados a uma vasta gama de produção.
Mas essa maré só chegou ao Ocidente em 2012, com o hit Gangnam Style, de Psy. O vídeo foi o primeiro na história da internet a ultrapassar um bilhão de visualizações e permaneceu como o mais visto no Youtube até julho de 2017. A expressão que dá nome à música refere-se a um estilo de vida associado ao bairro nobre de Gangnam, na capital.
Qualquer semelhança não é mera coincidência
A arte da ficção de representar a realidade expõe os desejos da reunificação – tida como um consenso nos dois lados da fronteira. Ao mesmo tempo, expõe os desafios de unir um país que era único desde a antiguidade e que deixou de ser um há cerca de 70 anos.
“Esse fenômeno do Hallyu é um tipo de soft power [do lado de Seul] que consiste em fazer com que outros queiram o que você deseja. Isto é, tornar atrativo e desejável os próprios objetivos da Coreia [do Sul]”, observa Paulo Gala, economista e professor da FGV.
“Soft power” ou poder brando é o termo usado para falar da influência que um país exerce através do seus produtos culturais e estilo de vida. Daí porque o governo sul-coreano trata a indústria “K” como um bem valioso, que precisa ser protegido – e disseminado, diz Gala.
Outro K-drama que ilustra bem os obstáculos no processo de reunificação é a versão coreana de “A Casa de Papel”. A produção adapta o roteiro original europeu de sucesso e traz à luz as grandes diferenças políticas e econômicas entre o Norte e o Sul, cuja história enquanto nação é anterior à Era Cristã, quando três reinos disputavam a soberania.
Um deles, Goryeo, deu o nome à Coreia e governou desde o ano 935 d.C até o século 14. Em 1392 teve início a dinastia Joseon, a última e mais longa da história coreana, que reinou até 1910 e sucumbiu às invasões do século 20. Foi durante a Guerra Fria que se consolidou a divisão da Coreia através de um tratado válido até os dias atuais que estabelece uma linha imaginária devido à falta de concordância sobre qual ideologia o país deve seguir.