Ninguém esperava muito dos resultados financeiros do quarto trimestre da Tesla, já que 2024 marcou o primeiro ano de queda nas vendas de veículos elétricos desde que a empresa abriu o capital, há 15 anos. Mas os resultados de receita e lucro não foram apenas fracos. Foram piores do que os analistas previam.
No entanto, durante a teleconferência sobre os resultados da empresa, o campo de distorção da realidade do bilionário Elon Musk estava em pleno efeito, enquanto ele impulsionava as ações com histórias de táxis autônomos, robôs humanóides e alegações, ainda sem comprovação, sobre as habilidades da empresa em inteligência artificial.
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Os investimentos nessas áreas “trarão frutos imensos no futuro. Imensos. Na verdade, em uma escala tão grande que é difícil de compreender”, disse ele em 30 de janeiro. “Vejo um caminho — não estou dizendo que é um caminho fácil —, mas vejo um caminho em que a Tesla será a empresa mais valiosa do mundo, de longe, onde valerá mais do que as próximas cinco empresas juntas.” Isso equivale a absurdos US$ 15 trilhões (R$ 85,5 trilhões na cotação atual), mas os acionistas fiéis acreditaram.
As ações da Tesla subiram 3% na quinta-feira (30) e mais 1% na sexta-feira (31). Os investidores não se incomodaram que dois itens “fluffy” — um ganho de US$ 600 milhões (R$ 3,42 bilhões) com ativos em criptomoedas e US$ 692 milhões (R$ 3,95 bilhões) com vendas de créditos de EV — representaram mais da metade do lucro líquido da Tesla no trimestre, que foi de US$ 2,3 bilhões (R$ 13,11 bilhões).
O primeiro é altamente volátil; o segundo provavelmente cairá à medida que Trump revogue as regras federais de emissões. Tampouco se importaram que a margem de lucro bruto da Tesla, um indicador muito observado nas vendas de carros, continuou a cair, mesmo a empresa sendo conhecida por desfrutar de margens muito acima da média da indústria automotiva.
O movimento das ações “não teve qualquer relação com o desempenho financeiro da companhia ou com sua perspectiva de crescimento para o próximo ano”, escreveu Ryan Brinkman, o analista de ações do JP Morgan, observando que a Tesla se tornou “totalmente desconectada dos fundamentos.” Assim, como uma ação de meme, a TSLA está indo bem. Mas por quanto tempo?
Neste momento, a Tesla não é uma empresa de inteligência artificial (IA). Seu negócio é fabricar carros e baterias e fornecer serviços de carregamento de EVs (carros elétricos); essa é a fonte de mais de 90% de sua receita. E para continuar crescendo, precisa de um CEO em tempo integral, não alguém que esteja equilibrando um papel na administração de Trump, enquanto lidera a SpaceX, X, xAI, The Boring Company e Neuralink. Também não faria mal um CEO que não colocasse em risco a imagem da marca, abraçando a política ou adotando comportamentos controversos.
“É uma empresa privada do Elon, que por algum motivo é pública”, disse Ross Gerber, investidor da Tesla e CEO da Gerber Kawasaki, gestora de fortunas baseada em Los Angeles. Fã de Musk de longa data, e responsável pela participação de US$ 100 milhões (R$ 570 milhões) de sua firma na Tesla, Gerber ficou desiludido com ele desde a aquisição do Twitter. O executivo sabe do que está falando, já que tentou e falhou em conseguir votos suficientes para conquistar uma vaga no conselho da Tesla em junho passado.
Não que isso fosse mudar muito, porque, devido à participação de Musk de 13% na empresa e ao controle rígido do conselho, qualquer mudança na gestão seria apenas maquiagem. “Mesmo que se coloque um novo CEO, seria apenas para ‘sentar aqui, mas eu ainda vou continuar fazendo tudo o que estou fazendo’”, disse Gerber. “Se você comprar as ações, têm que aceitar que não será como uma empresa normal. É uma empresa privada do Elon, que por algum motivo é pública.”
Outro problema é que Musk não tem um vice claro na Tesla, que esteja comandando a empresa enquanto ele está distraído. Não há um diretor de operações e nem um presidente. Vários vice-presidentes, cujas estrelas começaram a brilhar, foram afastados ou saíram.
Os acionistas da Tesla, que não compram as grandes afirmações de Musk — o robô humanóide “Optimus” sozinho poderia gerar “mais de US$ 10 trilhões” (R$ 57 trilhões) —, também têm que lidar com seu comportamento cada vez mais bizarro, especialmente para um CEO de uma empresa que deveria prestar contas ao conselho. Mas, nesse caso, o conselho não intercedeu, já que ficou notavelmente rico com as ações da Tesla. Por exemplo, a presidente, Robyn Denholm realizou um lucro de US$ 32,5 milhões (R$ 185,25 milhões) no final de novembro, quando exerceu 112.390 opções, com a alta das ações da Tesla após a vitória de Trump.
Muito antes de Musk ser acusado de fazer um gesto igual a uma saudação nazista em um comício da vitória de Trump este mês, seus cáusticos comentários, amplamente condenados como racistas, antissemitas e transfóbicos, já estavam prejudicando a reputação da Tesla, especialmente nos estados democratas, que são seus maiores mercados de veículos elétricos nos EUA.
No final do outono passado, a pesquisa anual da Interbrand sobre as marcas mais valiosas do mundo mostrou uma queda de 9% para a fabricante de carros de Musk.
Esse golpe na reputação está impactando diretamente as decisões dos estadunidenses sobre qual carro comprar. A Strategic Vision, uma empresa de pesquisa baseada em San Diego, que realiza sondagens semanais com dezenas de milhares de consumidores, descobriu neste mês que quase dois terços dos compradores de carros em potencial afirmam que definitivamente não considerariam um Tesla como seu próximo veículo, um aumento em relação aos 48% de 2023.
“Se você é um fabricante de automóveis ‘jogando um jogo longo, isso é imperdoável’”, disse Alexander Edwards, CEO da Strategic Vision. Ou seja, não é como se esses problemas não estivessem se refletindo nos números da Tesla.
Até 2022, Musk vinha dizendo em alto e bom som que as vendas da Tesla chegariam a 20 milhões de unidades até o final da década. Com as vendas globais da Tesla encolhendo 1% em 2024, para 1,79 milhão de unidades, ele já não fala mais dessa forma.
A queda, tomando somente os EUA, foi maior: 5,6%. E é ainda pior na Califórnia, o maior mercado de EVs da América do Norte, com uma redução de 12%. Enquanto isso, as vendas para os países da UE também estão despencando, caindo 13% no ano passado.
E mais. O comércio de carros da Tesla nos EUA não deve crescer muito, ou nem um pouco, neste ano, por causa da forte concorrência de marcas como General Motors, Hyundai, Kia, Honda, Rivian, Lucid e outras, que continuam lançando EVs mais baratos e em maior quantidade.
Vale registrar que o Cybertruck da Tesla, uma picape estilo militar que mais parece saída do videogame Minecraft, tem sido um fracasso de vendas, atingindo menos de um quarto da taxa anual de 250 mil unidades que Musk previu no ano passado.
O longamente adiado Tesla Semi está previsto para 2026, mas é improvável que gere volume significativo de vendas. Não é surpresa que Musk não tenha estabelecido uma meta firme de vendas para 2025, além de esperar que o volume aumente graças a uma atualização do Model Y e a carros mais baratos previstos para o primeiro semestre do ano.
Isso explica porque Musk está apostando o futuro da empresa nos robô-táxis autônomos — mais uma das promessas exageradas. Ele diz que, se tudo correr bem, a Tesla lançará um Cybercab autônomo em 2026. Mas isso parece improvável, já que a empresa ainda não dominou seu recurso “Full Self Driving” (dirigindo sozinha), que exige supervisão do motorista e já causou pelo menos 13 acidentes e múltiplas investigações governamentais.
E isso parece ainda mais improvável quando se leva em consideração que a versão da Tesla de carros autônomos navega apenas com câmeras, sem o radar e lidar a laser que tornaram a Waymo — que já opera um serviço viável de robô-táxi em várias cidades — a líder da indústria em direção autônoma.
“Os humanos dirigem sem disparar lasers dos olhos, a menos que você seja o Superman”, disse Musk esta semana. “Os humanos dirigem apenas com os olhos e o cérebro. O equivalente digital de olhos e cérebro são câmeras e redes neurais digitais ou IA.”
É uma boa linha, mas um tanto forçada. “Há dois problemas com essa analogia”, disse Phil Koopman, professor associado da Carnegie Mellon University, que estuda veículos autônomos. “Um é que os olhos das pessoas são realmente incríveis, e as câmeras da Tesla são meio ruins à noite”, quando muitas vezes falham em detectar adequadamente os perigos na estrada no escuro, explicou ele.
E o segundo problema é que, enquanto os humanos costumam responder bem a novas condições de direção, o software da Tesla tem dificuldades. “O aprendizado de máquina perde o fôlego antes de chegar ao senso comum”, disse ele. “O aprendizado de máquina não tem senso comum; tem falsa confiança.”
Na Tesla, há outra falsa confiança também — em Musk e na ideia de que seus planos brilhantes para o futuro da empresa são uma jogada mais inteligente do que melhorar as coisas que já faz. “A Tesla é um negócio fenomenal, focado apenas em mudanças climáticas–transporte e energia sustentáveis”, disse Gerber. “O fato de agora avançar com robótica e robô-táxis é apenas sua maneira de desviar, porque ninguém quer comprar seus produtos — por causa dele. Mas ainda são produtos incríveis, e as pessoas compram de qualquer forma.”