Ainda criança, quando ia à feira com seu pai, Cíntia Barcelos impressionava os feirantes ao fazer contas de cabeça e acertar os números antes de suas calculadoras. Ela era ótima em matemática e, também com o pai, aprendeu que seria por meio do estudo que conquistaria a sonhada independência financeira e poderia fazer suas escolhas. Cíntia seguiu o conselho: se formou em engenharia eletrônica, com uma única colega mulher em sua classe, e, hoje, é CTO do Bradesco, um dos maiores bancos do Brasil.
Como sempre esteve cercada de homens que a apoiavam, Cíntia não enxergava o machismo que fazia parte das carreiras em engenharia e tecnologia. “Se eu voltar e repensar alguns momentos, talvez eu tenha sofrido machismo e não percebi”, diz. Ela tinha pavor de aparentar ser jovem demais ou inexperiente, então fazia questão de estar sempre bem preparada.
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Além do pai, o marido, segundo ela, sempre teve uma “cabeça diferente”. “Eu quase só tinha colegas homens e ele nunca se importou. Quando eu comecei a trabalhar com sistema operacional, entrava quando as coisas paravam e virava a noite, e em nenhum momento ele reclamou, me restringiu ou teve ciúmes.”
Como uma pessoa da área de exatas, Cíntia é uma mulher prática, mas se emociona ao falar do marido, seu primeiro namorado. “Em todos os momentos da nossa vida em que eu fraquejei, foi ele que me ajudou.”
Um desses momentos foi o período depois de ter a primeira filha, Sofia, quando teve dificuldade de conciliar a maternidade com o retorno ao trabalho. “Eu achava que ninguém poderia cuidar dela como eu cuidava”, diz. Conhecendo a esposa, o marido sabia que ela iria se arrepender se não voltasse a trabalhar e fez questão de incentivá-la.
Como patrocinadora executiva do grupo de afinidades das mulheres na empresa de tecnologia da informação IBM, onde trabalhou por 28 anos, ela ouviu outras histórias de executivas de tecnologia. “Foi um divisor de águas”, afirma. Entendeu que muitas mulheres não tinham tido o apoio que ela teve dentro de casa. Seu casamento, diz Cíntia, sempre foi uma sociedade. São 33 anos juntos e 24 de casados. “Às vezes eu abria mão de algumas coisas para ele focar na carreira dele e tiveram vezes em que ele assumiu isso.”
Trajetória tech
Uma delas foi quando ela assumiu um cargo em São Paulo e teve que se mudar do Rio de Janeiro. Cíntia entrou na IBM como estagiária e passou por diversas funções na empresa. Quando se formou, foi contratada na área de infraestrutura de serviço.
Em 2017, ganhou o título de “distinguished engineer”, um dos mais altos níveis de reconhecimento que um profissional técnico pode atingir na empresa. Em um século de história no Brasil, a IBM reconheceu cerca de uma dezena de profissionais e Cíntia foi a primeira mulher na América Latina.
O namoro com o Bradesco já era história antiga. Ela teve a oportunidade de atuar como CTO da IBM para algumas empresas no Rio de Janeiro e, depois, para o banco. Mas isso implicaria uma grande mudança: trocar o Rio por São Paulo. A família já tinha a vida estabelecida, com rede de apoio, escola para as filhas e trabalho para o marido. Cíntia resolveu testar e ficou dois anos na ponte Rio-São Paulo. “Às vezes, é pior para quem vai do que para quem fica.” Em 2018, a família toda deixou o Rio de Janeiro.
Sair da cidade natal não foi fácil, assim como deixar a empresa onde já tinha quase três décadas de atuação. Mas Cíntia não nega um desafio; muito pelo contrário, é isso que a move. Ela vem de uma trajetória técnica, mas abraçou a liderança. “Quando você vira a melhor naquele assunto, esse é o momento de mudar. Porque ali o seu aprendizado vai ser pouco, não vai ser uma coisa disruptiva que vai te fazer crescer.”
Maternidade e trabalho
Mesmo com a rotina intensa de trabalho, a executiva sempre se desdobrou para estar em casa com as filhas e ajeitava a rotina como podia para se fazer presente. Grávida de Júlia, a mais nova, trabalhou até o último segundo: reunião à tarde e trabalho de parto à noite.
A logística não era fácil, mas sempre que possível buscava as meninas na escola e levava na médica ou dentista aos sábados. “A gente sempre foi muito próximo, mas na pandemia eu me dei conta de como sou uma pessoa de sorte, estando trancada em casa com as pessoas que eu mais gosto no mundo.”
No início da vida de mãe, com duas filhas pequenas e um trabalho que exigia muito, ela se viu angustiada. “Depois que você é mãe, sempre vive com culpa. De não estar o suficiente para os seus filhos e de não estar 100% no trabalho”, diz. Foi na terapia que ela encontrou a resposta para essa questão e se tornou uma profissional melhor no processo. “Comecei a dizer mais ‘nãos’ para o trabalho e fazer escolhas conscientes. Aprendi a priorizar, agregar valor e ser muito mais focada.”
Mulheres na tecnologia
Já com 20 anos de experiência em tecnologia, Cíntia foi em um evento de mulheres da área em que uma psicóloga palestrou sobre a síndrome da impostora. Foi a primeira vez que ela ouviu o termo, e identificou nele muitas das suas inseguranças. “Agora parece que acende uma luz, toda vez que eu começo a fazer isso eu percebo e paro”, diz. E, muitas vezes, quem dá o toque é o próprio marido.
Hoje, segundo ela, existe uma escassez enorme de profissionais de tecnologia. O mercado vem crescendo com o foco na jornada digital das empresas e buscando cada vez mais diversidade. “O gap de mulheres em tecnologia é muito maior do que o de homens. Então, se você for uma mulher boa em tecnologia, nunca vai te faltar emprego.”
O preconceito existe, assim como o estereótipo do profissional de tecnologia, do qual ela passa longe. “Eu nunca tentei parecer menino para me encaixar no meio. Eu sempre fui quem eu sou.”
Como uma referência na área, todos os dias ela recebe ligações de pessoas pedindo indicações de profissionais mulheres. Ela também não nega ajuda para as que a procuram pedindo indicações para trabalhar na área. “Eu me sinto muito responsável por trazer e apoiar mais mulheres.”
Turning point da carreira
“O maior foi quando eu aceitei vir para São Paulo que eu vinha ser CTO da IBM para o Bradesco. Aconteceu tanta coisa bacana desde então. Eu tinha um sonho na IBM que era ser ‘distinguished engineer’ e quando eu vim para cá em 2017 eu fui nomeada por todo trabalho que já tinha feito. Fui a primeira mulher da América Latina a receber esse reconhecimento e isso foi um marco muito grande.”
Quem me ajudou
“Não tem uma única pessoa, eu tive a sorte de ter algumas pessoas que acreditaram em mim e na minha reputação e me deram uma oportunidade. E quando você tem a oportunidade, você vai com tudo, não só para agradecer à pessoa que te deu aquela chance, mas para provar que você consegue fazer.”
O que ainda quero fazer
“Outro dia eu estava ouvindo um podcast que dizia que a expectativa de vida das pessoas hoje está em 100 anos. Eu sou super saudável e pretendo viver isso. Eu tenho 49, não estou nem na metade da minha vida. E estava lendo que vai ser normal daqui alguns anos as pessoas terem várias carreiras. Então agora eu estou começando uma nova. Fui consultora por 30 anos. Agora vou ser executiva de tecnologia, quero crescer aqui dentro do banco e pretendo ficar mais muitos anos aqui. E sei lá o que eu vou querer fazer quando eu tiver 80. Quem sabe eu não vou fazer uma outra faculdade. Nesse momento, eu quero transformar a área de tecnologia do Bradesco para o banco ser cada vez mais relevante e inovador.”
Causas que abraço
“Eu abraço mulheres em tecnologia. Eu sempre acreditei que a tecnologia pode mudar a vida das pessoas. Então eu nunca disse não a uma mulher que me pediu ajuda, eu me sinto muito responsável por trazer mais mulheres e por apoiar mais mulheres. Todas as vezes que eu apoiei uma mulher, eu não sei se eu ajudei mais ou aprendi mais com elas. O conhecimento pode transformar a sua vida, te dar independência e você leva para sempre. É isso que vai transformar muitas mulheres e o que eu posso fazer para ajudar elas a fazer isso eu faço.”
Minha formação
“Engenharia eletrônica na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).”