
“Estar no olho do furacão” é o que guia as decisões de carreira de Paula Bellizia. Em 30 anos de trajetória na tecnologia, passou por algumas das maiores empresas do mundo e construiu sua reputação como uma das lideranças mais respeitadas e admiradas do país. “Esperar que as coisas acontecessem, sem estar fazendo acontecer, nunca foi o meu forte”, diz a executiva, que soube enxergar e abraçar oportunidades, ainda que não se sentisse pronta, para continuar subindo.
Foi essa necessidade de estar à frente das transformações em momentos-chave para as empresas que a atraiu para a AWS (Amazon Web Services), divisão de computação em nuvem da big tech, onde ocupa desde agosto de 2024 a posição de vice-presidente na América Latina. “Democratizar o acesso à inteligência artificial é o maior desafio e a maior oportunidade hoje, e eu quero fazer parte disso.”
Para ela, o frio na barriga é um combustível, mas deve vir acompanhado de riscos calculados. “Quando eu olho para trás e penso nas minhas escolhas, elas tiveram algo em comum: tomei riscos para continuar aprendendo”, observa. Antes de chegar à Amazon, Paula havia mudado de indústria para liderar o Ebanx, unicórnio do setor de pagamentos e cliente da AWS. “Tomei decisões baseadas nos meus objetivos de carreira e conciliando com os objetivos da família”, diz ela, que foi promovida a diretora pela primeira vez grávida de sua segunda filha.
Formada em processamento de dados na Fatec Santos, nos anos 1990, estudou ao lado de outras poucas mulheres, projetando uma carreira técnica enquanto os PCs se popularizavam entre os consumidores. “Minha habilidade com pessoas me trouxe para essa posição mais de liderança do que de desenvolvimento.”
Foi vice-presidente de marketing do Google para a América Latina, vice-presidente da Microsoft na região e presidente da empresa no Brasil, além de country manager da Apple e diretora de vendas do Facebook. Também passou pela Telefônica e pela Whirlpool, onde começou a carreira como programadora de informática para a área de marketing e vendas. “Sempre ia levantando a mão para novas oportunidades e corria para me preparar e fazer daquela nova oportunidade um grande passo.” Hoje, também é conselheira da Globo e integra o conselho consultivo da ONG Gerando Falcões.
Depois de alcançar o topo, Paula não tem interesse em recuar e estar fora de mais um grande momento da indústria. “Tenho mais de 50 anos hoje e não acho que já deu. A experiência trabalha a nosso favor e quero contribuir com algo que eu nem sei aonde pode chegar.”
Segundo dados do IDC (International Data Corporation), o setor de TI terá crescimento de 11% na América Latina em 2025, e o Brasil, de 13%, com impulso da computação em nuvem e da inteligência artificial.
A AWS lançou sua segunda região de infraestrutura na América Latina, no México, e vai investir quase US$ 6 bilhões (R$ 35,4 bilhões) na região nos próximos anos. Especificamente no Brasil, o investimento será de US$ 1,8 bilhão (R$ 10,6 bilhões) em 10 anos para ampliação e modernização da infraestrutura. “Toda a capacidade de processamento e escala necessários para as aplicações de IA só são possíveis com a nuvem”, diz a executiva, citando cases de empresas como Mercado Livre e iFood – onde um usuário passa por mais de 100 modelos de IA para fazer um pedido.
Em entrevista à Forbes, Paula Bellizia, VP da AWS na América Latina, conta o que espera dessas transformações no mercado e como mantém uma jornada de aprendizado contínuo, conciliando carreira, vida pessoal, saúde e maternidade.
Forbes: O que te destacou para continuar crescendo na carreira?
Paula Bellizia: Sempre quis estar no “olho do furacão”, sempre levantei a mão para novos projetos, mudanças, novos negócios. Corria o risco mesmo sabendo que não estava 100% pronta, que é algo que as mulheres em geral não fazem, de acordo com vários estudos. Ia atrás, buscava o conhecimento, as pessoas, fazia todas as perguntas. Eu tentava traçar o caminho que me levaria para onde eu sonhava estar.
Comecei na Whirlpool, como programadora de informática para a área de marketing e vendas. Quando apareceu a oportunidade de me candidatar a uma vaga de gerente de produtos em marketing, não tive dúvidas e logo decidi fazer uma pós-graduação em marketing. E assim foi… Da indústria de bens duráveis, fui para telecom, tecnologia, marketing, vendas, posições de gestão e liderança.
Foi essa vontade de estar “no olho do furacão” que te atraiu para a AWS?
Eu falo do “olho do furacão” com um tom super positivo. Tenho que aprender uma série de coisas, tenho que estar “on top” dessa transformação tecnológica, mas isso só me aguça. Eu tomei o risco de trabalhar numa empresa diferente, numa cultura que eu não conhecia. Para mim é importante que haja esse frio na barriga, mas é tudo calculado. Qual é o grande desafio e oportunidade que a gente tem hoje? Democratizar o acesso à inteligência artificial. Então eu quero fazer parte disso, que é exatamente a missão que nós temos na AWS hoje. Poder colocar essa tecnologia e capacitação à disposição de todas as empresas, todas as pessoas, numa região como a nossa, que tem uma grande oportunidade de dar um salto de produtividade, de transformação digital, é um desafio, mas é um privilégio também.
O que você precisou desenvolver ao longo da sua carreira que foi importante para o seu sucesso?
A primeira decisão positiva que eu tomei na carreira foi a minha escolha de curso. Me formei em desenvolvimento de sistemas. Isso me trouxe não só uma capacidade técnica, mas também uma lógica, uma capacidade de pensamento analítico que sempre me ajudou muito. E ao longo da minha carreira, ter tido a oportunidade e a responsabilidade de me preparar para liderar pessoas também foi muito importante.
A liderança foi algo natural ou você se preparou para isso?
É uma grande responsabilidade que eu sempre tomei com muito zelo, com muito cuidado. Porque você realmente tem impacto nas pessoas. Os melhores líderes que eu tive ao longo da minha carreira deixaram marcas muito importantes. Você lidera por elas, para abrir caminhos e para que elas sejam realizadas e bem-sucedidas. Outro ponto importante é escalar como líder. Quando você tem a responsabilidade de liderar uma empresa como a AWS para uma geografia grande, dispersa, com tantas culturas diferentes, você tem que aprender a escalar. E você só faz isso através da cultura e das pessoas. Então, acho que outra habilidade que eu fui adquirindo ao longo da minha carreira é a experiência relacionada a construir culturas fortes. Isso faz com que os negócios tenham sucesso sob a sua liderança, mas sem depender da sua atuação direta.
E quando você fala da escolha da sua formação, o que você imaginava nessa época? O que você projetava para a sua carreira?
Sempre tive uma visão de longo prazo: queria ter uma carreira, queria independência financeira, viajar pelo mundo. Escolhi me graduar em tecnologia de processamento de dados. Tinha o sonho de estar na indústria de tecnologia, estávamos vivendo uma grande onda de transformação na época, com os PCs (Personal Computers) chegando aos consumidores, e as novas empresas de tecnologia chegando para acelerar essa onda.
Não era necessariamente uma carreira que muitas mulheres estavam seguindo. No meu curso tinham poucas mulheres. Eu pensava em ser uma desenvolvedora bem técnica, que foi verdade durante um momento da minha carreira, pensava em trabalhar em empresas e usar a tecnologia para resolver problemas complexos. Mas acho que depois, a minha habilidade com pessoas, a necessidade de liderar, à medida que eu fui me desenvolvendo na minha carreira, me trouxe para essa posição mais de liderança do que necessariamente de desenvolvimento.
De lá para cá, quais desafios foram fundamentais para o seu crescimento e sucesso profissional?
Conciliar todos os papéis, incluindo maternidade e carreira, aceitar ou não convites para outros projetos, considerar oportunidades de trabalho fora do Brasil. Precisei escolher entre ficar na empresa em que estava e sair do Brasil, ou sair da empresa e ficar no Brasil. Acabei ficando no país para o bem-estar da família. Eu tomava minhas decisões baseada nos meus objetivos de carreira no longo prazo, conciliando os objetivos da minha família.
Tomei decisões difíceis, tive grandes líderes, que me mostraram qual o estilo de liderança eu gostaria de ter e qual não ter. Construí times com talentos incríveis. E trabalhei duro, muito duro. Acredito que tive mais acertos do que erros, e aprendi com esses erros. Avaliando hoje, acho que consegui equilibrar bem.
Eu acredito que não se pode desperdiçar o valor de um “não”. Encontrar desafios e ventos contrários, ouvir negativas para algumas posições, para mim tudo isso funcionou como uma injeção de energia, para provar para mim mesma que eu seria capaz, que eu poderia sim ter aquela posição. O sucesso na carreira começa com o que fazemos por e com nós mesmas.
Sendo líder de uma empresa como a AWS, o que você faz para estar à frente das inovações?
Tem um dos princípios de liderança que a gente tem aqui e que eu acredito muito, que é o que a gente chama em inglês de “dive deep” [mergulhar fundo]. E eu não acredito que é possível estar numa posição de liderança, liderar a AWS na América Latina, sem fazer esse dive deep. Então eu tenho estudado muito sobre inteligência artificial, sobre o que significa para as empresas de diferentes indústrias fazer sua transformação digital. Faço todos os treinamentos que nós oferecemos. Aprendo com currículos oficiais, com leituras, me aproximando dos cases de sucesso e dos aprendizados de insucesso, onde quer que eles ocorram. É uma demanda de estudo, de aprendizado contínuo. Não dá pra sentar aqui e operar no piloto automático. Treinamento e certificação é uma parte importante dessa transformação tecnológica e cultural que a gente está vivendo hoje. Estabelecemos um compromisso há alguns anos de treinar 29 milhões de pessoas ao redor do mundo até 2025, e já superamos esse número em mais de 2 milhões, e uma parte importante está no Brasil.
Como as empresas podem usar (e já estão utilizando) a nuvem para impulsionar inovação e se destacarem no mercado?
A nuvem está em toda parte. Todo mundo passa pela nuvem todos os dias, na maioria das vezes sem perceber. Entrar no seu e-mail, armazenar suas fotos, pedir algo no Ifood ou um Uber, assistir algo na Netflix ou no Prime Video, Gympass, QuintoAndar, seu aplicativo bancário. Ela já está se tornando algo tão incorporado que, em pouco tempo, será como a energia elétrica, que possibilita o funcionamento de tantas coisas sem que a gente pare para pensar. E com a inteligência artificial não vai ser diferente. Toda a capacidade de processamento e escala necessários para as aplicações de IA só são possíveis com a nuvem. Ela também possibilitou o nascimento de startups que revolucionaram seus mercados, como algumas dessas que citei, porque ela oferece a chance de inovar e testar a custos bem mais baixos que possuir equipamentos próprios.
Como vocês têm ajudado as empresas a incorporar IA generativa de forma eficiente?
A AWS está democratizando o acesso à inteligência artificial, assim como democratizou o acesso à nuvem quase 20 anos atrás. A AWS se concentra nos modelos básicos de linguagem e na infraestrutura de nuvem necessária para ajudar os clientes corporativos a criar, integrar, implantar e gerenciar com segurança suas aplicações de IA generativa usando seus próprios dados. Empresas de todos os setores, em todo o mundo, estão transformando suas operações e o relacionamento com o cliente por meio de ferramentas avançadas de IA e IA generativa. Isso está acontecendo muito rápido.
Pode compartilhar alguns cases na América Latina que ilustrem isso?
Um dos dos exemplos dessa democratização na América Latina vem do Mercado Livre. Com IA, a empresa gerou mais de 90 mil banners de produtos, atualizando automaticamente os anúncios de milhares de vendedores. O resultado foi um aumento de 45% nas impressões de display e uma taxa de cliques 25% maior. Muito além de criar imagens, o GenAds capacita pequenas empresas, que são a maioria dos vendedores do Mercado Livre, para competir efetivamente no mercado digital. No iFood, quando um usuário entra no aplicativo e faz uma compra, ele passa por mais de 100 modelos de IA. Considerada a escala de operação da empresa, com mais de 80 milhões de pedidos ao mês, a tecnologia é a única forma eficiente de entregar experiências customizadas para cada usuário.
No dia a dia, como você se mantém atualizada?
Eu leio dois, três jornais, tenho acesso a várias assinaturas de veículos globais e nacionais. Procuro entender o mundo ao meu redor. Entender o contexto ajuda muito, mas você precisa encontrar tempo pra fazer isso. Eu busco deixar aproximadamente 20% do meu tempo para ter certeza de que eu tenho a leitura do contexto do Brasil, da América Latina, do mundo. Também viajo bastante, estou sempre em um avião e há uma oportunidade nesses momentos onde eu já estou longe da família mesmo, de encontrar com clientes, com as equipes e eu procuro usar esses momentos como momentos produtivos de leitura. E obviamente, eu acho muito importante ter um pouco de equilíbrio pessoal.
Como manter esse equilíbrio?
Eu tenho uma filosofia de que as coisas podem não caber em um dia. Mas se você busca esse equilíbrio, qualquer que seja ele, que vai ser diferente para mim do que é para você, você faz caber. Se não for em um dia, você faz caber em uma semana. Se não for numa semana, em um período um pouco maior de tempo. E a vida vai mudando. Agora, meus filhos estão para lá da adolescência, então eu tenho mais tempo e minha preocupação é menos física e mais do ponto de vista do bem-estar deles. Eu tenho conseguido equilibrar os pratinhos e estou feliz com o resultado até agora. Mas não pode deixar cair nunca o cuidado com isso.
O que é importante para você nesse equilíbrio dos seus pratinhos?
Eu gerencio meu tempo e minhas prioridades de forma intencional. Viajo muito na minha posição de VP para a América Latina, mas treino quase todos os dias junto com meu marido e meus filhos. Faço musculação e corro duas vezes por semana. Eu acho que sem isso eu não vou conseguir ter o impacto que eu desejo como líder, especialmente nesse momento tão demandante. Tenho o objetivo de ler 12 livros por ano (em 2024 cheguei perto da meta, li 11 livros). Estou lendo agora o “Livro do Desassossego”, do Fernando Pessoa. Faço aulas de kitesurfing. Tento ter sempre algum projeto de aprendizado pessoal. Procuro proteger a minha saúde, ter tempo com a minha família – eu tenho dois filhos, sou casada há um tempão, viajo bastante com eles –, e ter muita disciplina na gestão do tempo. Ter as prioridades bem mapeadas e saber dizer não é importante para você se manter focada, além de amar o que faz.
Como foi e é a relação entre maternidade e carreira para você?
Sempre deixei claro para os meus filhos que a minha carreira e meu trabalho são importantes. Nós temos conversas muito francas e eu nunca falei para eles que eu trabalhava porque eu precisava, apesar de precisar. Eu sempre falei que eu amava o que eu fazia e que eu ficava muito feliz em fazer a diferença na vida das pessoas. O que acabou acontecendo é que hoje meus filhos têm orgulho, eles entendem as fases que nós fomos passando e eu acho que eu deixei para eles não um exemplo, mas um caminho possível para eles tomarem as suas decisões de carreira, que eles vão precisar trabalhar duro, que seria mágico se eles encontrassem uma profissão e uma carreira que eles fossem apaixonados, que eles tivessem um propósito, não só trabalhar pelo dia a dia do trabalho, mas por um objetivo maior. A minha relação com os meus filhos e a minha carreira foi mudando, mas a filosofia central não mudou. Eu sempre quis estar num lugar onde eu pudesse fazer a diferença, e continua sendo isso.
Se pudesse voltar no tempo e dar um conselho para a Paula do início da carreira, o que você diria?
Teria dito para a Paula de 25 anos ter pedido mais ajuda, ter construído mais aliados e buscado pessoas que pudessem ter me desafiado e me dado ainda mais feedbacks para acelerar meu desenvolvimento e oportunidades de crescimento. E acho que poderia ter enfrentado mais furacões.