Organizações que buscam inovar para responder às realidades apresentadas pela pandemia começam a olhar para a importância da diversidade na construção de soluções. Mas o debate precisa avançar e incorporar elementos como o afrofuturismo para que novos produtos e serviços sejam realmente inclusivos.
Essa é a visão de Ale Santos, autor, professor e influenciador digital, que trabalha com empresas que buscam sofisticar suas estratégias de inovação. Além de seu trabalho como consultor, Santos atuou por anos na produção do IT Forum, um dos maiores eventos de inovação e tecnologia do país, e tem familiaridade com o discurso típico dos tomadores de decisão neste espaço.
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“Tem muita gente falando de futurismo, mas ainda não percebendo que esse futuro hiper-tecnológico está muito distante de ser acessível pelas pessoas mais pobres”, afirma, em referência à predominância de homens brancos e privilegiados no setor de tecnologia e entre fundadores de startups de base tecnológica.
O afrofuturismo é um movimento que abrange narrativas baseadas no imaginário negro em cenários futuros de desenvolvimento tecnológico, e, ainda, interroga eventos históricos com ficção científica, sempre da perspectiva africana e diaspórica. Este conceito estético, social e cultural beneficia diretamente a criação de produtos e serviços, segundo Santos, que usou a abordagem em diversos projetos de gamificação em edições do IT Forum.
A importância da criação de ofertas que falem com a população negra se deve ao fato de que estas pessoas respondem por 56% do contingente populacional e movimentam R$ 1,7 trilhão por ano no Brasil, segundo dados do Instituto Locomotiva. Segundo Santos, ao não considerar pautas como o afrofuturismo, empresas estão perdendo a oportunidade de se conectar com este vasto público:
“Por mais que [estas organizações] achem que estão inovando, elas não estão atuando realmente na vida das pessoas pretas e periféricas, pois deixam de incluir essas pessoas na conversa e considerar suas experiências de vida.”
SAINDO DA BOLHA
Um passo inicial sugerido por Santos para tomadores de decisão e empreendedores que queiram implementar o afrofuturismo em suas estratégias de inovação é a leitura de ficção escrita por negros. Profissionais também devem estar conscientes de que é preciso investir no processo.
“As maiores discussões de tecnologia estão em bairros centrais e hegemonicamente brancos. Sair dessa bolha requer um investimento em buscar novas pessoas, estudar o que não se conhece”, aponta Santos. “E isso dá trabalho: não é possível fazer uma transição que não requeira algum tipo de esforço.”
Além disso, é preciso questionar o status quo. Santos observa que, apesar de o discurso de profissionais do ecossistema de tecnologia e inovação frequentemente citar “disrupção” como mantra, a comunidade tende a ser conservadora.
“[Tomadores de decisão] precisam se arriscar um pouco mais, conversar com pessoas com quem nunca conversaram antes”, avalia. O autor nota que também é preciso lembrar que o trabalho conduzido em inovação pode contribuir para o agravamento de sérios problemas sociais.
“[Gestores] devem estar muito atentos sobre até que ponto algoritmos estão criando uma população de pessoas invisíveis, através de consensos baseados numa bolha, que são retroalimentados por um sistema interno de ideias e crenças”, ressalta.
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Do ponto de vista institucional, um posicionamento também se faz necessário. Santos cita a Netflix como um exemplo de empresa que tem conseguido bons resultados com o investimento em produções com pessoas negras como protagonistas, bem como diretores e roteiristas. “[A inclusão] traz um crescimento de audiência, com mais pessoas pagando para ter acesso àquele conteúdo – mas isso requer investimento e um manifesto.”
A AUSÊNCIA DE ESTATÍSTICAS
Além de equipes pouco diversas com exposição insuficiente ao tema, existem outros motivos pelos quais o imaginário negro não é adequadamente integrado em estratégias de inovação. Segundo Santos, o principal deles é estrutural, já que produtos e serviços de base tecnológica, bem como a internet em si, nascem de um contexto de segregação racial.
Para embasar seu argumento, o autor nota a prevalência de brancos entre os influenciadores que operam nas plataformas mantidas pelas Big Techs, um problema agravado pela exclusão digital de negros no país. Segundo a última pesquisa TIC Domicílios, 65% da população negra só tem acesso à internet via smartphone, o que impõe grandes limitações a atividades como trabalho e estudo online, principalmente durante a pandemia.
“Quanto mais a tecnologia evolui, mais distantes as pessoas mais pobres ficam das que estão participando da produção de inteligência coletiva na internet”, afirma Santos, que no ano passado foi eleito Top Voice pelo LinkedIn.
A questão étnica na internet precisa ganhar visibilidade, e as empresas que controlam as principais redes sociais têm um papel importante neste debate, segundo Santos, já que a base de usuários destas plataformas no Brasil não inclui a maioria dos brasileiros.
“Quando analisamos os números das redes sociais no Brasil, a segregação é óbvia: o Twitter, por exemplo, tem menos de 30 milhões de usuários em um país de 209 milhões. É uma rede social que interfere na democracia, mas não temos todo o país participando [desta plataforma]”, diz o autor afrofuturista. “Isso cria um cenário de exclusão muito forte para a população negra e periférica.”
Um dos caminhos possíveis, segundo Santos, é resolver a invisibilidade do debate étnico online gerando estatísticas, com o intuito de convidar à reflexão: “Precisamos que [a Google] diga que existem poucos [influenciadores] negros no YouTube Brasil, precisamos que o Facebook divulgue a configuração étnica [dos usuários de suas plataformas], pois o problema existe e só vamos conseguir resolver isso se soubermos os números”, ressalta.
A democratização da internet é outra urgência, segundo Santos, que frisa o desafio para fazer com que isso aconteça em um país onde milhões de brasileiros ainda não têm água para lavar as mãos na pandemia. Por outro lado, o autor fala da importância de incluir e gerar prosperidade com e para a população negra, através de tecnologia.
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“A internet tem que chegar para todo mundo, pois dessa forma criam-se mais negócios e, principalmente, tem mais pessoas participando de produção de inteligência coletiva”, aponta Santos. O autor acrescenta que uma mobilização mais efetiva da sociedade civil, das empresas e do governo se faz necessária para que o acesso alcance a população negra e pobre.
“Precisamos que a indústria perceba a dimensão do problema [da exclusão digital] e provoque o Estado a facilitar inovações de impacto social com tecnologias que sejam acessíveis a todos e fazer com que a internet se torne um serviço básico, assim como água e luz.”
Angelica Mari é jornalista especializada em inovação há 18 anos, com uma década de experiência em redações no Reino Unido e Estados Unidos. Colabora em inglês e português para publicações incluindo a FORBES (Estados Unidos e Brasil), BBC e outros.
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