Ainda que unicórnios, startups com valor de mercado acima de US$ 1 bilhão, tenham como seu lema o rompimento com práticas de negócio estabelecidas, a falta de diversidade racial na liderança das maiores startups do mundo reflete a realidade de empresas tradicionais. Porém, estas empresas de base tecnológica têm a oportunidade de virar o jogo e causar real impacto socioeconômico para além dos próprios números, segundo especialistas.
Entre as 500 maiores corporações globais, o número de CEOs negros não chega a encher os dedos de uma só mão, com nomes como Kenneth Frazier, da multinacional farmacêutica Merck, e Jide Zeitlin, que comanda a Tapestry, holding que detém as marcas Coach e Kate Spade. Para além das empresas ditas tradicionais, a mais recente lista global de unicórnios da CB Insights traz um único fundador negro: Robert Reffkin, CEO da proptech Compass. No Brasil, a presença de negros entre os fundadores de unicórnios é inexistente.
O racismo visto no portfólio de startups de maior sucesso no Brasil tem diversas ramificações estruturais. Segundo Ricardo Sales, fundador da Mais Diversidade, uma delas é a natureza patriarcal da sociedade brasileira, onde homens são incentivados a estudar carreiras elitizadas que os equipam para criar negócios de impacto, como engenharia, economia e administração, não raro em universidades de ponta, no Brasil e no exterior.
“Quando adicionamos a dimensão racial a este problema, lidamos com outras camadas de complexidade relacionadas à oportunidades de estudo, de acesso à informação e, principalmente, networking. É muito importante que um empreendedor seja alicerçado por relações que podem levar a investidores e espaços mais privilegiados e pessoas negras encontram inúmeras barreiras para isso”, ressalta.
No que diz respeito à contratação de negros para o alto escalão de unicórnios, Sales comenta que a mentalidade atual de tomadores de decisão contém um conjunto de crenças limitantes que englobam, por exemplo, a percepção de que não existem profissionais negros com boa formação, bem como a tradição de um sistema de indicação para cargos de diretoria, que insiste em trazer mais do mesmo.
“Se o o topo das startups é majoritariamente masculino e branco e se essas pessoas estiverem recrutando outros e outras para atuarem em seus cargos de diretoria a partir de um círculo pessoal em que pessoas são iguais entre si, dificilmente vai haver diversidade”, ressalta. Segundo o especialista, saídas para unicórnios incluem profissionalizar a gestão de recursos humanos, buscar mudanças efetivas junto a outros atores como universidades e o poder público, bem como ter intencionalidade na busca de profissionais negros.
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Ir além do trivial no que diz respeito à recrutar e reter negros em startups bilionárias é um ponto citado pela especialista em diversidade e inclusão Arlane Gonçalves. Por mais que unicórnios sejam empregadores atraentes, ainda não conseguem aumentar a representatividade de negros em sua força de trabalho e, segundo a especialista, isso se deve à práticas estabelecidas no mercado, também utilizadas por startups de alto crescimento.
“[Unicórnios] continuam reproduzindo de forma automática o que o mercado sempre fez, da forma que sempre fez, o que nos trouxe ao resultado que temos hoje. Não tem como fazer as mesmas coisas de sempre e obter resultados diferentes”, ressalta.
Outro problema a ser endereçado inclui o conjunto de pré-requisitos que, segundo Arlane, excedem o que de fato o candidato precisa ter para exercer a função: “Muitas competências passíveis de aprendizado e muitos anos de experiência em determinada atividade são colocados como determinantes quando, na verdade, não o são”, frisa.
ASSUMINDO RESPONSABILIDADES
As mudanças no cenário de diversidade e inclusão em empresas como startups de alto crescimento passa por um reconhecimento do passado. Sem isso, é impossível compreender os problemas atuais na atração e retenção de profissionais negros nestas empresas, bem como traçar estratégias para desafios futuros, segundo Beatriz Santa Rita, fundadora da Diverse, consultoria paranaense de diversidade e inclusão.
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“Pode parecer óbvio, mas lideranças e profissionais em geral de muitas empresas, incluindo aqui startups promissoras e unicórnios, chegaram a 2020 sem saber que hoje trabalham e fazem negócios em um país majoritariamente negro que teve a escravidão como base do sistema econômico durante 388 anos e com apenas 132 anos de abolição incompleta deste sistema”, ressalta.
Reconhecer a ausência de negros no mercado de trabalho como um sintoma do racismo estrutural fundado na história do Brasil é o primeiro passo que estas empresas devem dar, segundo Beatriz, bem como se assumir parte do problema – e, portanto, da solução. A especialista aponta que sem esta consciência, mobilizações recentes como o #VidasNegrasImportam terão um impacto superficial, limitado e aquém do potencial que estas empresas podem trazer no combate ao racismo.
Empresas de tecnologia são descritas por Beatriz como “uma ilha de prosperidade em um oceano profundamente desigual que é o cenário socioeconômico do país”. Porém, a especialista aponta que o sucesso destas empresas não foi construído de forma isolada da sociedade, já que elas recebem contribuições da sociedade em forma de trabalhadores, ideias, fornecedores e consumidores de todos os perfis. “Mesmo com toda a tecnologia embutida, sem estes recursos seria impossível gerar soluções em forma de serviços e alcançar este patamar de unicórnio”, ressalta.
Dadas as oportunidades de geração de desenvolvimento econômico das startups de base tecnológica, bem como seu profundo impacto na sociedade, Beatriz nota que é esperado que esta prosperidade vá além da tradicional geração de empregos e serviços. Ela argumenta que estas empresas, além de gerar lucro, também precisam desempenhar a função social de colocar o conhecimento e recursos à disposição da sociedade na qual se desenvolveram, e isso é uma questão moral e ética.
“Os unicórnios têm potencial para serem agentes proativos no combate de problemas estruturais como o racismo, não apenas assumindo compromissos com sua mudança interna, mas também investindo amplamente na formação de trabalhadores para a anunciada revolução digital”, diz Beatriz, acrescentando que esse processo pode passar por uma participação no desenho de competências para futuros egressos de cursos superiores, mediante contribuições para o desenho de políticas públicas que envolvem educação, trabalho e os impactos da tecnologia.
IMPULSIONAMENTO DE CARREIRAS NEGRAS
A escassez de mão de obra em tecnologia, que representa a maior parte do efetivo dos unicórnios, é algo que surge nas reclamações de diversos fundadores destas empresas. Dados divulgados pela pesquisa #quemcodabr, da Olabi e Thougtworks, citando informações da Associação Brasileira das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação (Brasscom), sugerem que o segmento de tecnologia precisa contratar 420 mil trabalhadores até 2024 para atingir as metas das empresas.
Como resultado desta falta de expertise, muitas das maiores startups de base tecnológica no Brasil, como o Nubank, têm buscado aquisições no exterior para superar esta demanda, além de firmarem bases em outros países. Neste cenário, Beatriz argumenta que existem oportunidades para que unicórnios e empresas de tecnologia em geral façam a diferença e se tornem verdadeiras impulsionadoras de carreiras negras.
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“É evidente que os trabalhadores negros – também maioria entre os desempregados – podem suprir este gap, com investimentos e esforços direcionados por estas empresas para que desenvolvam as competências desejadas. Há iniciativas neste sentido, mas precisam ser exponencializadas, usando um termo comum entre as startups”, ressalta.
Possibilidades apontadas por Beatriz neste sentido incluem, por exemplo, facilitar a transição de carreira de profissionais de outras áreas, especialmente de profissionais mais maduros. Empresas também devem focar em esforços para a formação dos profissionais negros uma vez que são contratados, e selecionar pelo potencial de desenvolvimento, e não pela experiência acumulada, e também valorizar competências socioemocionais, como a resiliência dos profissionais negros.
Ao reiterar os problemas da cultura de indicação prevalente nessas empresas mencionados por Ricardo Sales e Arlane Gonçalves, Beatriz ressalta que metas de contratação e estratégias inovadoras para atrair talentos negros também precisam ser desenhados e
envolver todas as áreas da organização.
“Ainda não faz parte do imaginário coletivo que negras e negros sejam desenvolvedores, programadores e cientistas de dados, por isso são necessárias metas e processos estruturados para contratar estes profissionais intencionalmente, porque a diversidade não chega por acaso”, pontua.
O interesse genuíno em criar uma cultura inclusiva nos unicórnios também envolve tornar o ambiente cada vez mais representativo e convidativo para outros profissionais negros, diz Beatriz. “Ao se enxergarem como únicos negros em ambientes extremamente elitizados e diante da falta de oportunidades de promoção – outro aspecto comum –, muitos profissionais podem desistir da carreira corporativa”, adverte.
Segundo Arlane Gonçalves, startups de grande porte precisam utilizar toda a sua estrutura no combate ao racismo, e agirem de forma contrária a isso. Porém, a especialista nota que não é um processo simples, já que a intenção é destruir estruturas presentes há mais de cinco séculos. “É preciso repensar os processos seletivos, as avaliações de performance, as promoções, os benefícios, a atuação em responsabilidade social, a estratégia de longo prazo, os produtos, o posicionamento interno e externo. Não é um processo fácil, nem imediato.”
Angelica Mari é jornalista especializada em inovação há 18 anos, com uma década de experiência em redações no Reino Unido e Estados Unidos. Colabora em inglês e português para publicações incluindo a FORBES (Estados Unidos e Brasil), BBC e outros.
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