Em meio a um novo e desafiador contexto de negócios imposto ao setor de viagens pela pandemia do novo coronavírus, a Latam está reinventando processos e investindo em tecnologia e automação para responder a demandas por agilidade, flexibilidade e eficiência operacional.
A companhia, que enfrenta nos Estados Unidos o Chapter 11, processo equivalente à recuperação judicial, reportou receita operacional de US$ 913,1 milhões no primeiro trimestre de 2021, uma redução de 61,2% sobre o mesmo intervalo no ano passado, que marcou o início da pandemia. Por outro lado, o prejuízo líquido foi reduzido em 79,7%, de US$ 2,12 bilhões entre janeiro e março de 2020 para US$ 430,8 milhões nos primeiros três meses do ano.
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Em estatísticas operacionais divulgadas na semana passada, a aérea reportou que somente 20% da oferta internacional de assentos foi restabelecida em relação a junho de 2019. Mas a oferta atual de assentos na operação nacional é três vezes maior do que há um ano. A Latam está otimista com o avanço da vacinação, e espera retomar 100% da oferta de assentos na operação doméstica este ano.
Apesar da perspectiva de dias melhores no horizonte, o CEO da empresa Jerome Cadier descreve o momento atual como “o mais desafiador de todos os tempos”, que tem despertado profundas reflexões na companhia sobre como será um futuro pós-pandêmico no setor, e como responder a estas novas demandas.
“O setor aéreo sempre foi acostumado a trabalhar com planejamentos de longo prazo, e hoje não consigo ter certeza [do tamanho da frota] que vai voar daqui a dois meses. Isso requer muito mais flexibilidade e agilidade na operação”, diz o executivo, em entrevista à Quem Inova.
Além disso, a companhia lida com uma mudança comportamental trazida pela pandemia, que deve continuar impactando os negócios. A Latam sofreu uma queda vertiginosa no volume de passageiros com as medidas de restrição da Covid-19, e durante os últimos meses de mobilidade reduzida as empresas se acostumaram a usar tecnologia para substituir reuniões presenciais, diz o CEO.
“No longo prazo, o [volume] de passageiros vai voltar ao que era antes, mas o mix vai mudar: teremos mais viagens de turismo e menos pessoas viajando a negócios. Talvez o número total seja similar em um ano ou dois [em relação ao nível pré-pandemia], mas a tarifa média cai, porque quem paga mais é o viajante a negócios”, pontua.
Com a previsão de margens ainda mais apertadas, a companhia busca uma “eficiência brutal” para reagir às novas realidades do setor, diz Cadier. Isso inclui a sofisticação de um modelo com tarifas mais agressivas e serviços adicionais ofertados separadamente, como assentos diferenciados e serviço de bordo. Aeronaves serão reconfiguradas, com a expansão da seção intermediária entre a primeira classe e a econômica (chamada no setor de premium economy).
“Olhando para a frente, companhias que não tiverem a eficiência num patamar muito mais agressivo do que antes da pandemia não vão sobreviver no setor de transporte aéreo”, ressalta o executivo, acrescentando que o foco em inovação tecnológica tem sido crucial para atingir os objetivos da companhia em um contexto de retomada.
“Quando me perguntam como tenho lidado com a escolha entre investir em inovação e sobreviver, digo que inovar é uma questão de sobrevivência”, aponta.
PLATAFORMA DIGITAL
Uma das primeiras providências que a Latam tomou quando a pandemia começou a impactar o negócio fortemente entre fevereiro e março de 2020 foi repensar os custos. A pintura dos aviões que tinham as antigas marcas da TAM e LAN Chile é um dos projetos que foram interrompidos. No entanto, o investimento em tecnologia aumentou e a empresa deu início a uma série de esforços e a substituição da plataforma digital da empresa, liderada pela nova unidade de E-Business, criada em 2019.
“Tomamos a decisão de não reduzir esse investimento: por mais que fosse muito dinheiro, dissemos que valeria a pena porque se trata do nosso futuro. Se cortássemos isso, também limitaríamos a capacidade da Latam de competir no longo prazo”, ressalta Cadier. A Latam não revela o budget exato de tecnologia do grupo.
As iniciativas em torno da plataforma digital, iniciadas há dois anos, contam com o apoio da empresa de serviços de tecnologia Globant e envolvem a introdução de metodologias ágeis de desenvolvimento e a migração de toda a infraestrutura para a nuvem até o ano que vem. O projeto contempla um novo fluxo de compra no site, uma conta de usuário com perfil com todas as informações do cliente em um só lugar, assim como notificações personalizadas e check-in automático.
A visão da nova plataforma, descrita por Cadier como a “espinha dorsal” da companhia, inclui o site e vários sistemas nos bastidores, cobrindo áreas como atendimento e gestão de relacionamento com o cliente. Os sistemas anteriores funcionaram em paralelo à implementação faseada da nova plataforma e foram desligados em fevereiro deste ano.
Avanços recentes da implementação, anunciados na semana passada, incluem o lançamento de uma carteira digital, a Latam Wallet, que permite armazenar e utilizar digitalmente créditos oriundos de reembolsos ou problemas como extravio de bagagem, além de compras por boletos, transferências bancárias e Pix. Além disso, a empresa anunciou uma nova experiência para o programa de milhagens Latam Pass, que a partir de outubro permitirá ao cliente do programa selecionar o assento e produtos do voo como bagagens e seguros no fluxo de compra e administrar reembolsos pelo canal digital, em vez do call center.
Segundo o CEO da companhia aérea, a estratégia digital da Latam também passa pelo uso de análise avançada de dados e machine learning, que apoiam melhorias em mais de 30 processos. Exemplos de uso de insights gerados por dados incluem o cruzamento de informações das aeronaves e dos centros de manutenção para identificar e antecipar possíveis problemas da operação, e marketing, com um direcionamento mais assertivo de campanhas.
“Quando entrei na Latam há sete anos, na área de marketing, me lembro que existiam sete versões do meu próprio cadastro, cada uma com informações diferentes: tínhamos uma visão incompleta e segmentada do cliente, com gaps de experiência. Era uma colcha de retalhos”, diz o CEO, sobre a forma como a aérea geria os dados de clientes.
“Anteriormente, cada [iniciativa digital] era um megaprojeto e demorava muito, além de não ser 100% confiável por causa do [funcionamento] do sistema antigo, que precisamos jogar fora e começar de novo. Hoje podemos visualizar o histórico e a jornada do passageiro de forma muito mais integrada, em uma plataforma que nos dá a flexibilidade que precisamos”, aponta.
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Além da nova plataforma, a aérea deve intensificar sua colaboração com startups, sob o Latam Labs, célula criada como um piloto no final do ano passado. Entre as áreas de foco estão soluções, ainda em andamento, como tecnologia própria para medição automática de filas e embarques, novo layout para o atendimento presencial nas filas do aeroporto e QR Code para comunicação do cliente com a empresa via WhatsApp no caso de bagagens extraviadas.
“Estamos aprendendo como oferecer os dilemas que temos a solucionar para terceiros fora da companhia, e agir como integrador destas soluções por meio do Labs. Isso tem sido um desafio no nosso ecossistema e estamos investindo para saber trabalhar [com startups]”, pontua Cadier.
FOCO EM AUTOMAÇÃO
Entre as melhorias tornadas possíveis pela transformação digital da Latam, estão uma série de iniciativas com foco em automação. Entre elas, melhorias que o viajante não vê, em frentes como a desinfecção de aeronaves: desenvolvida pela equipe da base de manutenção da companhia em São Carlos (SP), a tecnologia da Latam utiliza um robô que opera de forma autônoma e aplica luz ultravioleta para higienizar superfícies, como poltronas e bandejas de refeição, reduzindo o emprego de produtos químicos.
Projetos que impactam passageiros diretamente incluem a eliminação de checkin para voos domésticos, com um bilhete digital que é atualizado com informações como portão de embarque à medida em que o horário do voo se aproxima. Além disso, a companhia introduziu atendimento remoto, em que passageiros interagem com um agente por meio de terminais nos aeroportos no Brasil e no Chile.
Outros avanços feitos no ano passado na digitalização e que impactam o processo de viagem incluem o auto despacho de bagagens, e uma ferramenta de realidade aumentada que permite ao passageiro checar se sua bagagem de mão atende aos requisitos de embarque. A companhia também está testando o reconhecimento facial por biometria para o embarque.
“A necessidade de evitar aglomerações e ter mais distanciamento aumentou o investimento em tecnologia para tornar a experiência do passageiro melhor e mais rápida. São efeitos que a pandemia trouxe e que vão ficar: vamos estranhar ter pessoas no futuro verificando documentos para autorizar o embarque”, aponta o executivo.
Atualmente, cerca de 40% de todos os clientes da Latam no Brasil são usuários frequentes da nova experiência em canais digitais, segundo a empresa. A companhia reporta, ainda, uma redução de mais de 50% do uso do call center para as funções mais básicas, como compra e remarcação de passagens, nos últimos cinco meses.
Cadier prevê um cenário em que tripulações ainda permanecerão para acompanhar procedimentos de emergência e execução de serviço de bordo, mas a operação nos aeroportos será muito diferente. “Veremos bem menos presença humana, [que será restrita] aos casos mais específicos. Para os casos mais corriqueiros, teremos muito mais automação, biometria e tecnologia”, ressalta.
Em um contexto de automação acelerada, o CEO diz que um dos grandes aprendizados é relacionado à necessidade de atender aos diferentes públicos da companhia, que nem sempre têm possibilidade ou conhecimento para usar ferramentas digitais.
“Nunca seremos uma Amazon, pois transportar pessoas é diferente de entregar produtos. Além disso, existem vários casos de atendimento ao cliente em que não é possível automatizar, por mais que se tente, pois o ganho de eficiência é baixo e a complexidade muito alta: teremos uma solução que atende 85% dos casos, mas para 15%, haverá temas não-automatizáveis”, pontua o executivo.
A solução para atender a todos os públicos, segundo o CEO, é ter um período de transição digital mais longo, com mais pessoas disponíveis em determinados horários e locais para apoiar clientes que não sejam “fãs” do digital. “Durante um tempo, a adoção [para uma parcela da base de clientes] acaba sendo mais lenta, mesmo que a pandemia tenha acelerado este processo”, acrescenta.
“Será preciso ter um equilíbrio, com pessoas à disposição para resolver os problemas e interagir diretamente com o cliente [e disponibilizar meios de] resolver questões automaticamente pelo celular. Esse é um dos grandes aprendizados para as empresas que vão sobreviver no futuro”, finaliza.
Angelica Mari é jornalista especializada em inovação e comentarista com duas décadas de atuação em redações nacionais e internacionais. Colabora para publicações incluindo a FORBES (Estados Unidos e Brasil), BBC e outros. Escreve para a Forbes Tech às quintas-feiras
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