Com uma estratégia em que grandes mudanças organizacionais caminham em paralelo a um processo intensivo de modernização, o Grupo Boticário (GB) constrói a base que permitirá à companhia avançar em suas ambições digitais.
Em entrevista exclusiva à Quem Inova, o CEO da empresa, Fernando Modé, falou sobre as prioridades do grupo de 40 anos, que tem um faturamento de R$ 15,7 bilhões e mais de 12 mil colaboradores. A companhia inclui um portfólio de marcas como O Boticário, Quem Disse Berenice, Eudora e Beauty Box e o e-commerce Beleza na Web, e também engloba a desenvolvedora de soluções para o varejo Casa Magalhães e a consultoria especializada em inteligência artificial para dados GAVB, ambas adquiridas em 2021.
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Segundo Modé, terceiro líder na história do grupo e sucessor de Artur Grynbaum desde março desde ano, o momento atual da gigante de cosméticos é de transformação. O plano, anunciado no final do ano passado por Grynbaum, atual vice-presidente do conselho, tem como objetivo o aumento de eficiência e sinergias entre as marcas da companhia.
“Do ponto de vista de estratégia, não estamos falando de revolução, e sim de evolução. Quando criamos o grupo em 2010, ganhamos espaço de mercado muito rapidamente com cada uma das marcas tendo muita autonomia para criar seu espaço de fato, mas agora estamos em uma nova etapa”, diz Modé.
O esgotamento do modelo anterior utilizado pelo GB, criado a partir de uma lógica de unidades de negócio, começou a gerar consequências ao longo dos últimos anos, segundo o CEO. Entre elas, estão a redução de eficiências de processos operacionais e limitações no uso de marca e no atendimento às necessidades do consumidor de cosméticos através das diversas grifes do grupo.
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Para endereçar estes entraves, a companhia deu início a um processo de renovação e integração do parque tecnológico, e a introdução de uma estrutura horizontal, em que áreas como tecnologia e logística atendem todas as marcas e canais da empresa. Mais de 900 profissionais assumiram diferentes – e muitas vezes, novos – cargos no últimos três meses como parte deste processo.
“Reorganizamos completamente a companhia com um aproveitamento interno de expertise e, ao mesmo tempo, aceleramos nossa transformação digital“, conta Modé, um veterano com 22 anos de casa, que ocupou a cadeira de vice-presidente corporativo antes de se tornar CEO.
A empresa atualmente tem uma equipe de mais de 1.000 profissionais de tecnologia em funções como ciência de dados e inovação, número que aumentou 50% em 2020 em relação ao ano anterior, para atender aos objetivos de sofisticação digital. Apesar de ser um instrumento crucial para viabilizar os objetivos do GB, Modé ressalta que a tecnologia só entrega os resultados esperados a partir de uma mudança cultural.
“Qualquer transformação, inclusive a digital, é uma questão de gente: acreditar em formas diferentes de fazer as coisas, desaprender para poder aprender, aceitar o erro, a vulnerabilidade. Se você não cria um ambiente para isso, é impossível evoluir”, pontua o CEO.
Nesse contexto de mudança cultural, Modé prevê que um passo futuro da horizontalização da companhia deve incluir a dissolução da área de tecnologia, um objetivo que traçou há dois anos com Daniel Knopfholz, líder de operações de tecnologia do grupo.
“Estamos numa agenda de desconstrução de silos e dessa dualidade entre o que é tecnologia e o que é business. Tudo tem que ser uma coisa só, trabalhando de uma forma sinérgica, com interação entre pessoas diversas com diferentes expertises, a favor do consumidor”, ressalta o executivo.
AVANÇO DIGITAL
Atualmente, o Grupo Boticário investe cerca de R$ 250 milhões em projetos que envolvem tecnologia, segundo o CEO da empresa. Além deste valor, a companhia investiu em aquisições recentes de empresas como a GAVB e Casa Magalhães, que não tiveram o valor divulgado.
Grande parte do investimento em tecnologia do GB tem sido direcionado para iniciativas como a implantação de uma plataforma de ERP (sistema integrado de gestão empresarial, que visam melhorar os processos internos e integrar as atividades de diferentes setores de uma empresa, como vendas, finanças, estoque e recursos humanos), fornecida pela SAP. O objetivo é substituir as diversas instâncias do sistema nas marcas do grupo por uma só plataforma, em um projeto que deve terminar em 2023.
“O sistema que temos foi implementado em 2005, sob uma outra lógica de negócio, monomarca e monocanal. Agora [a estratégia] é multimarca e multicanal”, diz o executivo, em referência à renovação dos “bastidores” da tecnologia da empresa, que precisam atender às novas imperativas do setor.
Parte deste processo de mudança também envolve o desenvolvimento de um sistema de gestão de pedidos integrado, para melhorar aspectos desde o fornecimento de insumos para as centenas de linhas de produtos incluindo maquiagens, perfumes e itens de higiene pessoal lançados anualmente pela empresa, até os processos de fabricação dos itens e a distribuição dos mesmos através dos diversos canais de varejo.
Enquanto as fundações tecnológicas da empresa são reforçadas, a gigante de cosméticos também aposta no fortalecimento de sua estrutura de e-commerce. Plataformas digitais atualmente respondem por cerca de 50% da receita da companhia, que adotou uma estratégia omnicanal, em que um consumidor pode começar uma compra em uma loja e concluí-la online, por exemplo.
Segundo Modé, a empresa tem olhado o e-commerce a partir de uma perspectiva que surgiu desde a emergência da Covid-19: “É um novo patamar de vendas que se criou e se mantém. Há uma tendência para recuar, pois os outros canais voltam a competir com o canal de e-commerce, mas estamos muito confiantes de que não devemos retornar aos níveis de venda que tínhamos pré-pandemia, e sim continuar crescendo a partir dos níveis já conquistados no último ano”, pontua.
A digitalização das marcas do grupo tem avançado nos últimos anos. Por exemplo, a Eudora tem metade de suas vendas digitalizadas. N’O Boticário, canais digitais respondem por cerca de 40% das vendas, impulsionadas por frentes como o app, que atingiu mais de 1,5 milhão de downloads desde o ano passado.
ABORDAGEM TRANSVERSAL
Aspectos da atual fase de transformação da companhia também incluem um trabalho mais assertivo em relação à implementação de boas práticas de e-commerce trazidas por marcas que compõem o grupo. Entre os líderes digitais do grupo, está o Beleza na Web, e-commerce multimarca de cosméticos adquirido pelo GB em 2019. Segundo Modé, as soluções tecnológicas da empresa se destacavam em relação ao que o grupo tinha à época, o que permitiu a disseminação de aprendizados nas diversas unidades da empresa.
“As necessidades do consumidor [do varejo físico] e do e-commerce são muito parecidas do ponto de vista tecnológico e operacional e a [Beleza na Web] incrementou muito rapidamente a qualificação das operações das nossas marcas”, ressalta.
Neste processo, a transformação organizacional se encontra com a digital, diz Modé, em aspectos como a consolidação. Por exemplo, a empresa chegou a ter cinco plataformas de e-commerce, e tinha processos diferentes para a aprovação de crédito para franqueados para cada uma das marcas. A frente de soluções financeiras também tem passado por uma modernização, liderada pela Mooz, braço de fintech da companhia.
“Hoje, um desenvolvimento feito para uma marca está automaticamente feito para todas as outras; as soluções já nascem com essa perspectiva transversal e têm o consumidor no centro de tudo. Isso deve gerar não só mais agilidade, como redução de custos em grande escala,” diz o executivo.
As melhorias no campo digital devem aproximar a companhia da criação de um marketplace, que também deve se beneficiar de incrementos em logística planejados pelo grupo. Entre as iniciativas já em curso nesta frente, está a inauguração de um novo centro de distribuição em Campina Grande do Sul, no estado do Paraná. “A ampliação da capacidade logística e tecnológica vem para compor uma nova perspectiva, em que tudo parte de um olhar mais integrado e sofisticado”, pontua Modé.
O trabalho de inovação feito pelo GB inclui as atividades lideradas por três laboratórios de inovação, que trabalham com as metodologias ágil, design thinking e sprint em soluções para todas as áreas do grupo, desde o aspecto industrial, com uso de inteligência artificial para o desenvolvimento de fragrâncias, até suprimentos e marketing.
Os avanços feitos nos últimos anos, como o nível sofisticado de uso de dados da empresa aliado a uma visão centrada no usuário em seus diferentes canais, têm gerado frutos: em julho deste ano, o Grupo Boticário tornou-se a primeira empresa brasileira a atingir o maior nível de maturidade no gMaturity, método criado pelo Google para apoiar o progresso de grandes empresas em suas estratégias digitais.
Além das iniciativas dentro de casa, a transformação do Grupo Boticário também passa por uma agenda de inovação aberta. Sob o programa de aceleração GB Ventures, lançado em 2020, 13 startups estão sendo aceleradas, incluindo companhias que desenvolvem produtos relacionados ao universo Boticário, como a sextech Feel e a startup Meu Q, que oferece produtos capilares personalizados com ajuda de inteligência artificial.
As empresas aceleradas pelo GB também incluem startups atuantes em áreas que podem trazer eficiências para o grupo, como a Hendrik, que desenvolve um sistema de ponto digital, e a Beegol, que desenvolve modelos de machine learning que utilizam bases de dados de clientes e dados externos para recomendar ações para apoiar metas. O portfólio de aceleradas também inclui a Be Beleza Tech, escola de beleza digital que ensina consumidores a fazer rotinas de beleza usando realidade aumentada.
“O Grupo Boticário é um parque de diversão bem amplo com várias áreas de foco”, ressalta o CEO, em referência às possibilidades de colaboração com startups. “Nós não somos só varejistas, não somos só indústria, e nem somente uma operação de distribuição e logística: temos um negócio complexo e uma maior integração aumenta as oportunidades de colaboração.”
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Quando o assunto é a estratégia de aquisições do grupo, Modé diz que a companhia constantemente analisa possíveis compras em seu setor de higiene pessoal, perfumaria e cosméticos, além de oportunidades para a Multi B, unidade multimarca que atua tanto com marcas em farmácias e perfumarias com marcas como o protetor solar Australian Gold e o óleo Bio Oil, além dos produtos Revlon, que a empresa importa e distribui no Brasil.
Mais especificamente sobre aquisições futuras que apoiem as ambições do grupo em tecnologia, o executivo nota que a análise de aquisições futuras ou joint ventures de empresas atuantes em segmentos como desenvolvimento de soluções de ponto de venda (PDV) faz sentido, assim como oportunidades relacionadas a desenvolvedoras de plataformas de gestão financeira para a rede de mais de 3.600 franqueados da companhia, e de ferramentas que podem ajudar a aumentar a eficiência na gestão de estoque.
“Estamos sempre estudando formas de fortalecer as questões do core business, muitas vezes através de aquisições. Hoje estamos em passo mais estruturante, o que temos em casa é muito bom, mas atende uma perspectiva que não é essa multicanalidade frenética [que se impõe] hoje. Nesse processo de ‘reformatar a máquina’, vamos entender quais serão os ângulos que precisaremos atender,” observa o CEO.
DESENVOLVIMENTO SOCIOEMOCIONAL
Considerando as agendas paralelas de transformação organizacional e digital, o maior desafio enfrentado pela gigante de cosméticos é lidar de forma adequada com as diversas nuances de um histórico construído ao longo de quatro décadas. “Não somos uma companhia que nasceu ontem, temos um legado de cultura, negócios e modelos de gestão, que estamos ressignificando de forma muito positiva”, diz o CEO, acrescentando que a empresa tem conseguido lidar com seu outro grande desafio, que é o acesso a pessoal qualificado para a nova fase do grupo, através de programas de formação.
Outro dilema atual na atual agenda de transformação do grupo, segundo o executivo, é a priorização. “Acertar a ordem e tempo das escolhas é um grande dilema, que muitas empresas têm. O mundo digital apresenta muitas oportunidades para extrair valor, e é preciso muito disciplina e foco, ou você acaba se perdendo”, ressalta.
Para lidar com as múltiplas demandas de seu cargo, Modé, que é advogado de formação, tem mergulhado em uma agenda de cursos de atualização, em instituições como a Universidade de Cambridge, e buscado se envolver com a comunidade acadêmica e o ecossistema de inovação. “Procuro devorar o máximo de informação possível para me posicionar melhor em relação às novidades, tenho contato com muita gente para melhorar minha observação e entendimento destes temas, e invisto muito tempo pessoal nisso”, pontua.
Além de buscar uma sofisticação de seu repertório técnico para liderar uma grande empresa em transformação, o executivo diz que sua própria mudança como líder passa por um exercício diário de desenvolvimento de capacidades socioemocionais. “Tenho buscado ser um líder que é aceito por ter uma capacidade de liderança e orientação, mas que também tem suas vulnerabilidades declaradas. O objetivo é construir soluções com uma participação ativa daqueles que podem trazer soluções melhores do que um suposto grande líder oráculo que sabe tudo”, aponta.
“Muitas vezes, um CEO pode ter a percepção de que, [ao promover a colaboração] está perdendo poder. Estou bem tranquilo em relação a isso: nessa minha nova fase, estou tendo a oportunidade de devolver parte de tudo o que conquistei ao longo de mais de duas décadas de casa, em escala. Coletivamente, somos muito mais inteligentes”, conclui.
Angelica Mari é jornalista especializada em inovação e comentarista com duas décadas de atuação em redações nacionais e internacionais. Colabora para publicações incluindo a FORBES (Estados Unidos e Brasil), BBC e outros. Escreve para a Forbes Tech às quintas-feiras
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