Após alguns dias de repercussão marcados por boicotes de artistas e usuários, o Spotify, por meio de uma carta de seu fundador, Daniel Ek, no domingo, (30), informou que adotará medidas para combater desinformação relacionada à Covid-19 em seu conteúdo. Joe Rogan, apresentador do podcast The Joe Rogan Experience, também pediu desculpas por ter desencadeado os boicotes em função de suas opiniões sobre a pandemia.
O tema ganhou proporção internacional após os artistas Neil Young e Joni Mitchell anunciarem, na semana passada, que estavam removendo suas músicas do serviço de streaming em protesto contra a desinformação sobre a Covid-19 transmitida no programa de Rogan. Um grupo de 270 cientistas e profissionais médicos chegou a pedir ao Spotify que evitasse que Rogan “espalhasse desinformação”.
Em uma postagem de vídeo de 10 minutos no Instagram, na noite de domingo, Rogan pediu desculpas pela repercussão, mas defendeu a participação de convidados controversos. “Se eu te irritei, me desculpe”, disse. “Farei o melhor para tentar equilibrar esses pontos de vista mais controversos com as perspectivas de outras pessoas.”
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Ian Black, CEO, Founder & Partner da New Vegas, empresa da B&Partners, explica que boicotes podem acontecer sob os mais diversos aspectos. Desde os mais simples, onde os cidadãos comuns deixam de consumir um serviço ou produto, passando pelo apoio de celebridades, instituições não governamentais, empresas que financiam algum processo através de patrocínios ou verba publicitária, até ações mais estratégicas de advocacy, como influenciar no valor de mercado.
“Essas primeiras ações têm como objetivo chamar atenção da sociedade para um determinado problema e engajar mais pessoas, e também provocar uma perda de recursos repentina que pode fazer com que a instituição boicotada sinta-se pressionada a mudar ou adotar um posicionamento”, afirma, reforçando que, no caso do Spotify, o ponto é sobre como a empresa exerce os critérios editorias dos conteúdos que são publicados na plataforma sob contrato de exclusividade.
Sobre a resposta do Spotify, Ian analisa como rápida, mas ainda ambígua. “Em um primeiro momento, permitiram a saída de Neil Young da plataforma, o que serviu como um atestado da preferência pelo Rogan e seu conteúdo. Contudo, no último domingo, eles se manifestaram de forma mais enfática e objetiva, divulgando uma nova política da plataforma.”
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O episódio do Spotify, de adotar uma política após sofrer boicotes, é mais um dentre vários outros que também ocorreram entre empresas de tecnologia. Youtube, Facebook e Twitter já foram boicotados em vários momentos por não adotarem sistemas mais rígidos contra discurso de ódio e fake news. Em todos os casos, houve adoção de políticas de transparência ou recursos de maior controle no caso de protesto por marcas.
Impacto financeiro
Muito mais do que crise de imagem, o Spotify sofreu impacto direto da situação chegando a perder pouco mais de US$ 2 bilhões em valor de mercado. Thiago Lobão, CEO da Catarina Capital, explica que a situação foi um fator de risco que se materializou. “Isso ocorre porque a produção do Spotify de podcast e o quanto ela representa para a plataforma é significativa. O podcast, diferentemente de outros conteúdos como séries, onde a edição vive um processo mais acurado, acaba por ser um produto suscetível ao dinamismo do dia a dia, o que traz desafios de curadoria e gestão.” O The Joe Rogan Experience foi o podcast mais ouvido do mundo em 2021.
Ainda de acordo com Thiago, a postura do Spotify, de defender a democratização de conteúdo, é clara inicialmente, mas em se tratando de um tema delicado como o da pandemia tornou-se uma crise para a empresa. “Apesar das oscilações de curto prazo, a precificação da empresa não deve ser afetada. A partir de agora, a plataforma sinalizou novas posturas e uma ação voltada à pluralidade de conteúdo.”
Gestão de imagem e ações coordenadas
Bruno Fernandes, professor associado da Fundação Dom Cabral (FDC), explica que movimentos de boicotes demonstram, em última instância, não só a insatisfação, mas a falta de conexão das empresas com os envolvidos. “Estratégias, muitas vezes impostas, tendem a gerar movimentos contrários. Nos dias atuais, é muito importante envolver aqueles que irão operacionalizar a estratégia desde o início, além de escutar, co-criar e desenvolver conjuntamente o que será colocado em prática. Isso faz parte do aprendizado organizacional contemporâneo”, sinaliza.
No caso do Spotify, explica Bruno, a questão é ainda mais sensível, por lidar com artistas renomados, fãs, e, naturalmente, ter as situações amplificadas. “Se por um lado, a plataforma quer abrir espaço democratizado para todo o tipo de discussão, por outro tem total responsabilidade em alertar sobre a possível falta de veracidade dos fatos. É um dilema que já poderia ter sido discutido e trabalhado (principalmente porque o Twitter havia feito isso recentemente), uma política clara estabelecida evitaria maiores ruídos.”
Veja boicotes que resultaram em ações práticas das empresas:
YouTube
Em 2017, um boicote de marcas e agências, iniciado na Europa, afetou vários mercados do YouTube no mundo. À época, os anunciantes retiraram seus investimentos da plataforma exigindo que a empresa criasse ferramentas de maior controle a discurso de ódio e vídeos de conteúdo violento. Isso ocorreu após alguns anúncios aparecerem vinculados a vídeos considerados inapropriados. Desde então, o YouTube passou a adotar maior transparência e criou ferramentas de controle para que as marcas acompanhassem onde seu conteúdo estava sendo veiculado.
Em junho de 2020, várias redes sociais, entre elas o Twitter, também foram afetadas por um recuo de anunciantes globais como Honda e Unilever que exigiam resposta mais contundente a discurso de ódio, racismo e fake news. Na ocasião, o Twitter também assumiu compromissos e aprimorou ferramentas de controle e transparência. Em janeiro deste ano, também após pressão do público, a plataforma criou uma ferramenta de denúncias contra fake news, entre outras medidas para impedir desinformação.
Também em junho de 2020, um grupo de anunciantes iniciou um novo boicote ao Facebook, alegando o desafio de controle de fake news e discurso de ódio. Uma das primeiras marcas a retirarem investimentos, a Unilever, alegou que só retomaria os investimentos quando a empresa conseguisse conter com maior eficiência conteúdos não apropriados. Coca-Cola também entrou na lista. O Facebook respondeu com várias políticas e, ao final daquele ano, já havia retomado o fluxo de publicidade na plataforma.