Foram vários os temas levantados em torno do vídeo da Volkswagen, lançado no início desta semana, que recriou por meio de inteligência artificial a imagem e voz de Elis Regina, morta em 1982. No filme, ela canta ao lado de sua filha, Maria Rita. Dentre os pontos em questão os direitos autorais sobre o uso de imagem de pessoas mortas e os limites éticos desta prática.
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A ressureição digital de Elis Regina foi feita por meio de deepfake, conceito que consiste em uma junção de técnicas que sintetiza imagens e sons por meio de inteligência artificial. A tecnologia se popularizou após uma série de vídeos de personalidades e políticos com vozes e falas reconstruídas repercutirem na internet nos últimos anos.
Bruno Sartori, jornalista e humorista, foi um dos pioneiros no uso de deepfake no Brasil. Há anos envolvido com a técnica, ele explicou recentemente à Forbes Brasil que a tecnologia pode ser útil para negócios, entretenimento e até mesmo para a saúde.
João Gebara, especialista em propriedade intelectual e advogado do escritório Murta Goyanes, explica que, em primeira avaliação, os direitos de personalidade que englobam o de imagem, por exemplo, são intransmissíveis e irrenunciáveis, conforme prevê o artigo 11 do Código Civil. “Ou seja, não é um bem material, tal como imóvel ou automóvel, sujeitos à sucessão hereditária. A ação da Volkswagen é uma estratégia inovadora e ousada, mas o Código Civil prevê o uso dessas imagens desde que não firam a honra e a reputação da pessoa”, explica.
Morto em 2014, o ator Robin Williams é uma referência no direito para a decisão da pessoa ainda em vida. Williams deixou um documento que restringia o uso de sua imagem até 25 anos após sua morte. O documento especifica, inclusive, a proibição de uso para formatos como holografia, por exemplo.
Conheça 6 artistas que tiveram suas músicas recriadas por IA
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Reprodução/Bettmann Archive The Beatles
De acordo com o músico Paul McCartney, ainda este ano será lançada uma “música fina” dos Beatles feita através de Inteligência Artificial. Para completar a canção, a tecnologia extraiu de uma demo antiga a voz do integrante falecido John Lennon.
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Getty Images The Weeknd e Drake
A música Heart on My Sleeve foi criada pela inteligência artificial com as vozes de The Weeknd e do rapper Drake, mesmo que eles nunca tivessem cantado a música de fato. A letra da canção fala sobre o término do namoro entre The Weeknd e a cantora Selena Gomez.
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Divulgação Renato Russo
A voz do cantor Renato Russo, que faleceu em 1996, foi utilizada em uma nova versão da música sertaneja, Batom de Cereja. Porém, o espólio do artista ameaçou entrar na justiça caso o autor da montagem não retirasse a música do ar.
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Getty Images Rihanna e Beyoncé
A música “Cuff It” da Beyoncé foi recriada através da inteligência artificial na voz da cantora Rihanna, logo a nova versão da música viralizou na internet e trouxe mais pontos a serem debatidos na regulamentação das músicas criadas por IA.
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Getty Images Frank Sinatra e Britney Spears
A OpenAI, dona do ChatGPT, criou uma nova rede neural chamada Jukebox, capaz de mesclar diversos artistas com gêneros musicais diferentes. Através dessa ideia o aplicativo gerou uma versão da música “Toxic” de Britney Spears na voz do cantor Frank Sinatra.
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Getty Images Ariana Grande, Anitta e Pabllo Vittar
A voz da cantora Ariana Grande foi recriada em canções de vários artistas, incluindo as brasileiras Anitta e Pabllo Vittar, nas músicas “Envolver” e “Disk Me”. As novas versões das músicas viralizaram de maneira engraçada nas redes sociais.
The Beatles
De acordo com o músico Paul McCartney, ainda este ano será lançada uma “música fina” dos Beatles feita através de Inteligência Artificial. Para completar a canção, a tecnologia extraiu de uma demo antiga a voz do integrante falecido John Lennon.
No caso de Elis Regina, Gebara ressalta que houve um consenso entre os descendentes da cantora, tendo em vista que o uso da sua imagem para fins comerciais pressupõe autorização, conforme prevê o artigo 20 do Código Civil. “A melhor saída é obter a autorização de todos os herdeiros, especialmente a dos descendentes para uma mitigação de riscos. Isto porque o parágrafo único do artigo 20 do Código Civil estipula que o cônjuge, os ascendentes e os descendentes são partes legítimas para impedir o uso da imagem do finado nas hipóteses em que há violação à honra, à boa fama ou à respeitabilidade”, afirma.
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“Ressuscitar personalidades mortas desde que autorizado pela família e pelos detentores de eventuais direitos patrimoniais desta personalidade, como foi no caso da Elis Regina, é um uso ético, permitido e pode, inclusive, prolongar o tempo de notoriedade de um artista”, afirma Julia Pazos, sócia e head da área de Propriedade Intelectual, Inovação, Tecnologia e Privacidade de Dados de DSMA Azulay. Ela prossegue: “O uso de IA para criação de obras originais, apesar de ainda haver uma discussão acerca da proteção de obras criadas por inteligência artificial generativa (nascem em domínio público?), é ético e não extrapola os limites da lei brasileira”, completa Pazos.
Nem tudo está na lei
Existem vários outros casos semelhantes ao de Elis Regina para várias finalidades. Há dez anos, por exemplo, o rapper Tupac Shakur, morto em 1996, surgiu nos palcos do Coachella por meio de uma projeção holográfica. Recentemente, Paul McCartney afirmou que uma canção inédita dos Beatles será lançada ainda em 2023 usando a tecnologia que extraiu a voz de John Lennon de uma demo antiga.
“A questão é: até o ano passado, inteligência artificial e afins não estavam disponíveis e acessíveis ao grande público. Isso mudou em 2023”, afirma Gustavo Miller, head de marketing da Defined.ai.
Rodrigo Volponi, cyberpsicólogo especializado pela Nottingham Trent University, na Inglaterra, pondera que é um assunto complexo pois envolve, além dos fatores culturais, também elementos biológicos e cognitivos.
“Por exemplo, o celular acabou se tornando uma extensão do nosso corpo. Não vivemos sem ele. Será natural que eventualmente o acesso à informação que o celular disponibiliza seja integrado à experiência biológica, e aqui entramos em uma temática pouco discutida, mas severamente importante, que é o transhumanismo. O que estamos vivenciando com estas experiências tecnológicas da atualidade não é nada perto do que acontecerá no futuro. Em ‘2001 – Uma Odisseia no Espaço’, o personagem principal faz uma videochamada com sua família enquanto passava pela Lua. Um filme de 1968, e à época acharam essa possibilidade das mais remotas: uma simples videochamada, sendo que hoje é tão natural quanto fazer uma simples ligação. Não sabemos e nem fazemos ideia das possibilidades do futuro”, afirma Volponi.
Os limites éticos e o direito ao luto
As implicações éticas que atravessam o âmbito jurídico são interessantes: a pessoa morta gostaria de ser retratada assim? A pessoa morta tem direitos? A quem se deve dar essa autorização? Ela deve ser feita em vida ou dada por um familiar? As perguntas são inúmeras e, segundo Volponi, tem de haver uma discussão filosófica e jurídica sobre esse assunto.
“A psicologia nos ensina que o processo de luto é uma das experiências mais importantes para o desenvolvimento psíquico. Aqui não me refiro apenas ao luto de morrer, mas aos inúmeros tipos de lutos que vivenciamos em toda a nossa experiência enquanto vivos. Aqui abrimos também inúmeras perguntas. Uma das áreas proeminentes da cyberpsicologia é a captologia, que é o estudo que se refere à capacidade de um computador ser usado para mudar a opinião de uma pessoa ou persuadi-lo com um determinado propósito. Não me parece tão distante do que acontecerá se as tecnologias de deepfake andarem de maneira desenfreada”, explica Volponi.
“Reforçar a associação da inteligência artificial com deepfake merece um ponto de atenção porque agora isso não é apenas uma ferramenta exclusiva de um estúdio de publicidade ou de um estúdio de Hollywood. Qualquer pessoa pode usar. Daí a importância de debatermos aquilo que chamamos de Inteligência Artificial Ética, que tem como um de seus principais pilares o seu uso responsável. É importante avançarmos com isso porque a Inteligência Artificial evolui mais rápido que a regulação. A Lei da UE (União Europeia) sobre IA pode ser um modelo a seguir”, completa Miller, da Defined.ai.