As mulheres vêm quebrando paradigmas em todos os setores da sociedade – inclusive no historicamente masculino agronegócio. Estão derrubando preconceitos e conquistando posições de liderança em fazendas, em entidades representativas e em todos os elos da cadeia da agroindústria. Segundo levantamento da Associação Brasileira do Agronegócio (Abag), as mulheres já estão na liderança de 31% das propriedades rurais brasileiras.
Algumas histórias singulares mostram o potencial do avanço feminino no campo, como a trajetória da socióloga Teresa Vendramini. A família de Teresa tem um histórico de 80 anos atuando no agronegócio, e ela vivenciou experiências afetivas durante a infância no campo. Mas decidiu desenvolver carreira em sociologia. O destino, contudo, acabaria por fazer com que ela voltasse os olhos para as raízes familiares.
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Quando seu pai morreu, ela herdou uma fazenda que pertencia aos avós. Foi aí que, aos 46 anos, decidiu se aposentar da carreira em São Paulo e encarar o novo negócio, gerindo a Fazenda Jacutinga, em Flórida Paulista (SP). “Não me programei para assumir a fazenda. Eu não tinha competência para aquilo, mas precisava que fosse rentável. Contratei um agrônomo e comecei o negócio do zero”, conta.
A fazenda, que naquela época tinha terras arrendadas por uma usina para o cultivo de cana-de-açúcar, foi repaginada. Teresa decidiu desenvolver a pecuária de corte e promoveu grandes mudanças, investindo na formação de pastagens de qualidade, em genética bovina, sanidade, sustentabilidade e bem-estar animal. “Depois de alguns anos nisso, eu já era a mulher conhecida por ter um boi de qualidade na região. Quando você tem um bom produto, as pessoas reconhecem o trabalho.”
Teresa se tornou uma pecuarista de sucesso, uma referência no setor. Foi convidada para criar o Departamento de Pecuária da Sociedade Rural Brasileira (SRB), onde se destacou ao desenvolver projetos de capacitação de pecuaristas e de difusão de tecnologia.
Ela diz se lembrar com carinho de quando relatou sua trajetória para 700 jovens em Chapecó (SC) e da participação em um encontro de mulheres em um assentamento no Pará. “Busco mostrar para as meninas que é possível ter uma oportunidade no agro”, diz. “Os grupos de mulheres estão se proliferando. Mas, em algumas regiões, especialmente no Norte e Nordeste, ainda faltam oportunidades e capacitação para as mulheres.”
O reconhecimento de sua trajetória atingiu o auge quando assumiu a liderança da SRB. A tradicional entidade, fundada em 1919, pela primeira vez em sua história ganhou uma presidente mulher. Aos 61 anos, Teresa ocupa o cargo desde fevereiro de 2020. “Quando fui eleita, foi uma loucura. Mulheres do Brasil inteiro me escreveram, fui recebida com festa”, lembra.
Outro grande interesse da pecuarista é investir em educação. “Precisamos levar tecnologias para os pequenos produtores, capacitá-los e ficar mais perto deles.”
Outra jornada inspiradora no campo foi trilhada pela cientista da computação Maria Antonieta Guazzelli, de 56 anos. Após a morte do pai, em 2002, ela herdou a fazenda Palmito, em Boa Esperança (MG). Inicialmente, conciliou a gestão da fazenda e a carreira em TI. Mas, em 2013, decidiu se dedicar integralmente ao agronegócio. Apaixonou-se pela pecuária leiteira.
Por ter experiência na área de TI, ela já estava acostumada a trabalhar em ambientes masculinos, mas foi no agro onde mais enfrentou desconfianças. Maria Antonieta chegou a ouvir boatos de que a fazenda herdada seria vendida, algo que não cogitava. Para provar que tinha chegado ao agro para ficar, iniciou uma gestão surpreendente. “Exercitei a humildade: sempre perguntava a opinião dos consultores”, afirma. “O agro exige um conhecimento técnico multidisciplinar que não é fácil. A produtora tem que entender de agronomia, veterinária, zootecnia, engenharia, mecânica, elétrica… É um negócio complexo.”
Essa postura favoreceu a expansão dos negócios. Quando ela assumiu a fazenda, a propriedade de 2 mil hectares contava com 250 vacas holandesas e produzia cerca de 2.300 litros de leite por dia. Em 2020, o retrato tomou outra dimensão: na mesma área, o rebanho é de 1.800 animais e a produção leiteira já atingiu 37.500 litros por dia. “Isso foi resultado de melhoria dos manejos, investimento em genética, melhoria de processos e infraestrutura”, diz Maria.
Em sua gestão, Maria Antonieta também levantou as bandeiras da sustentabilidade e do bem-estar animal – como a estruturação de confinamento Free Stall, com dois galpões climatizados capazes de abrigar até 2 mil animais. O ambiente é limpo, com pisos e camas apropriadas para as vacas holandesas, numa temperatura controlada que não passa dos 20 graus – para que as vacas se sintam confortáveis e possam produzir mais leite. Além do negócio leiteiro, Maria possui outras duas fazendas onde cultiva café, milho, soja, sorgo, aveia e eucalipto.
A dedicação da produtora ultrapassou as porteiras da fazenda: ela se engajou no movimento de mulheres do agronegócio, participando de eventos e grupos. É presidente do Núcleo Feminino do Agronegócio (NFA), organização que completou dez anos de atuação, promovendo ações de networking e capacitação das produtoras associadas. “O NFA representa uma grande oportunidade para compartilhar experiências e conhecimento. No nosso núcleo, temas de empoderamento feminino já são página virada”, conta. “Estamos discutindo mercado de carbono, inovação, comercialização de produtos. Mas a gente se relaciona com mulheres de outros estados com realidades diferentes. No Maranhão, por exemplo, o machismo é muito mais declarado.”
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Quando a engenheira agrônoma Malu Nachreiner ingressou no programa de estágio da Bayer, em 2003, a jovem de 24 anos nem sequer imaginava que um dia poderia liderar a divisão agrícola da multinacional no Brasil. “Meu sonho era ser gerente de produto e marketing”, revela. Após a formatura da faculdade, mudou-se de São Paulo para o Rio Grande do Sul e assumiu a função de representante técnica de vendas (RTV) da Bayer. De lá para cá, desenvolveu sua carreira na empresa alemã e ocupou posições de liderança nas áreas de vendas, operações comerciais e marketing. Em agosto de 2020, foi promovida a líder da Divisão Crop Science da Bayer no Brasil, sendo a primeira mulher a ocupar essa posição.
Malu credita o sucesso a três características pessoais: foco em resultados, comprometimento e construção de relacionamentos. “A entrega de resultados é o que habilita qualquer movimento de carreira, precisamos ter isso como prioridade. Sou comprometida e tive a felicidade de participar de projetos especiais na organização. Além disso, gosto muito de construir alianças. A área comercial é uma área muito relacional, e isso me ajudou em alguns momentos da carreira”, afirma.
A executiva tem como meta desenvolver a Iniciativa Carbono Bayer, um projeto pioneiro em parceria com a Embrapa que tem a missão de criar um mercado de carbono para o agronegócio. Os produtores serão estimulados a adotar práticas sustentáveis que visam fixar carbono no solo. Desse modo, geram créditos de carbono que contribuem para a redução das emissões de gases poluentes, em combate às mudanças climáticas. Além desse projeto estratégico, Malu pretende levantar a bandeira da inclusão e diversidade, um “pilar estratégico” para a companhia.
Aos 41 anos, é filha de “mãe solo” e foi criada em uma casa de mulheres, convivendo com a mãe, a avó e a bisavó. Ela considera que o exemplo familiar fez a diferença – por isso nunca se sentiu ameaçada por preconceitos de gênero. “Tenho um histórico de mulheres fortes na família.”
Já a executiva americana Corrine Ricard, de 57 anos, iniciou sua carreira em 1984 na Cargill e se desenvolveu em várias áreas do agronegócio, como grãos, comércio e fertilizantes. Atuou em operações de tesouraria e câmbio e negociou em bolsa. Desde 2004 na Mosaic Fertilizantes, ela ocupou várias posições no Canadá e nos Estados Unidos. Em novembro de 2019, mudou-se para o Brasil e assumiu a presidência da empresa no país.
Antes disso, Corrine supervisionava a distribuição internacional da Mosaic na China, Índia, Austrália, Tailândia, Vietnã, Argentina, Chile, Brasil e México, além das vendas globais. Embora tenha muita experiência em trabalhar com clientes e empresas de distribuição em outros países, ela está se surpreendendo com a posição no Brasil. “Morar e operar no país e tentar aprender sobre a cultura realmente estando aqui no Brasil é uma nova oportunidade para mim”, diz ela.
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Corrine vem observando “um cenário de otimismo” no agronegócio brasileiro e “um grande entusiasmo” com a valorização dos talentos femininos. “Acho que a indústria tem feito grandes esforços para tentar melhorar o número de mulheres na liderança em todo o agronegócio”, diz. “As mulheres precisam encorajar umas às outras a confiar em seus instintos. As mulheres são ótimas gerentes e grandes líderes de equipe e precisam estar mais confiantes para chegar lá.”
Segundo ela, uma boa líder deve acreditar em seu potencial e não sofrer com insultos. Corrine credita uma parcela de seu sucesso ao histórico familiar, já que ela trabalhou na concessionária de motocicletas do pai. Desde jovem aprendeu a interagir em ambientes masculinos. “Se alguma vez encontrei alguém que parecia resistente a trabalhar com mulheres, imaginei que era problema dele, não meu. Se você permitir que pequenas coisas te deixem com raiva e levá-las para o lado pessoal, você pode parecer hostil, agressiva ou insegura”, ensina.
“Muitas vezes, eu entrava em uma reunião internacional e tinha um pequeno grupo da Mosaic com quatro ou cinco pessoas, e eles simplesmente presumiam que o homem branco mais velho na sala era o chefe. Acho engraçado sentar e deixar minha equipe ter essas discussões com o cliente até que as pessoas entendam que eu sou a chefe.”
Para a executiva britânica Suzanne Heywood, de 51 anos, ainda existem casos de preconceitos não intencionais nos locais de trabalho. “As mulheres costumam ser subestimadas, pois as pessoas não estão acostumadas com que ocupem cargos de chefia”, diz. Residindo em Londres, Suzanne é CEO da CNH Industrial, fabricante de máquinas agrícolas, caminhões, ônibus e equipamentos industriais. A empresa marca presença no agronegócio com as marcas de máquinas agrícolas Case IH e New Holland.
Ela conta que chegou a vivenciar momentos constrangedores, por aparentar ser mais jovem. Para ultrapassar barreiras, a líder recomenda desenvolver características como determinação, resiliência, humildade e vontade de aprender. “Percebi, ao longo da minha carreira, que todos enfrentam grandes contratempos, e os que têm sucesso são os que se recuperam quando as coisas dão errado e seguem em frente”, analisa. Outro fator que ela considera primordial para ter sucesso é a capacidade de ouvir. “Trago para minhas funções de liderança a disposição de ouvir, de trabalhar em equipe e de dar crédito aos outros. Alguns líderes podem ver essas características como uma indicação de fraqueza, mas eu as considero uma indicação de força.”
No banco holandês Rabobank, a liderança feminina já deixou de ser uma novidade. Pollyana Saraiva, que lidera a divisão de agronegócios Rural Banking desde maio de 2019 e comanda cerca de 200 colaboradores, conta que a ascensão de carreira foi tranquila, creditando como benefício o legado deixado por outra líder mulher, a executiva Fabiana Alves. “Minha antecessora é uma mulher forte que fez um trabalho incrível voltado para as pessoas. A mulher dá importância para as pessoas, não só para números frios de resultados. É um olhar importante para entender os times e clientes e fazer a diferença”, diz ela.
A administradora de empresas, de 46 anos, foi contratada pelo Rabobank como gerente de crédito em 2007, numa época em que esse cargo era ocupado majoritariamente por homens com formação em agronomia. Com muitas viagens de campo para atender produtores, geralmente ela era a única mulher em reuniões e atendimentos aos clientes. Sentia falta da presença feminina, mas isso não a inibiu. “A vontade de entregar o melhor e de surpreender sempre foram meus motores de desenvolvimento na carreira. Isso foi mais forte do que as resistências que encontrei e do que o fato de ser mulher”, conta.
Inclusão e diversidade
As líderes ouvidas pela Forbes concordaram que o mercado tende a valorizar cada vez mais as políticas de inclusão e diversidade. Para Suzanne Heywood, é importante desafiar preconceitos e olhar para o real valor das pessoas, independentemente de gênero, etnia, escolaridade, orientação sexual ou outras características. “É extremamente vantajoso para as empresas diversificar sua liderança. Isso é um imperativo moral para as empresas e traz benefícios nos negócios”, diz.
Ela está especialmente comprometida com a atração de talentos femininos e a valorização das colaboradoras da CNH Industrial. “Faço disso uma de minhas prioridades pessoais em minha gestão como CEO. Lançamos uma série de programas na América do Sul para apoiar nossas funcionárias, incluindo coaching e mentoria de liderança feminina”, conta.
Na Bayer não é diferente. “Um ambiente diverso abre mais espaço para a criatividade”, afirma Malu Nachreiner. A companhia mantém grupos de afinidade para gênero, programa de mentoria, preparação de liderança inclusiva, entre outras iniciativas. De acordo com uma pesquisa de inclusão e diversidade (I&D) realizada pela empresa, o grau de satisfação com as ações de I&D é de 8,2 – e 78% dos colaboradores consideram que a liderança se compromete com a justiça e a equidade.
No Rabobank, as mulheres já ocupam 50% das posições de diretoria do banco holandês, e esse equilíbrio se observa em outras áreas da companhia. Segundo Pollyana Saraiva, só existe um gap carente de ajustes na área comercial da divisão de agronegócio, porque como as funções comerciais podem exigir muitas viagens e possíveis mudanças de residência, isso acaba afastando o interesse de muitas candidatas. A empresa tem como meta de Recursos Humanos minimizar essa dificuldade. “No trabalho para a inclusão e diversidade, o primeiro passo sempre é buscar a maior participação das mulheres.”
O posicionamento do banco vai além do quadro próprio de funcionários e inclui sensibilizar a cadeia do agronegócio. “Dentro das fazendas, quando víamos uma mulher liderando, isso ocorria porque alguma coisa drástica tinha acontecido, como o falecimento do pai ou marido. Hoje há outro movimento, elas estão assumindo as fazendas porque querem”, conta. O banco desenvolve iniciativas de capacitação em programas de sucessão, o que abre oportunidades para que as mulheres sejam preparadas para cuidar dos negócios da família.
Reportagem publicada na edição 82, lançada em dezembro de 2020
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