O chef Rodrigo Oliveira, do Mocotó, diz que é preciso olhar para o mundo sem esquecer do quintal. É o que faz na sua cozinha de raízes nordestinas, técnicas apuradas e ingredientes de alta qualidade que atrai do motoboy ao presidente do banco, do crítico gastronômico internacional à família da Vila Medeiros (bairro periférico de São Paulo onde o restaurante está instalado). É também o que ele e a mulher, a historiadora Adriana Salay, fazem no projeto Quebrada Alimentada, que, desde março de 2020, já distribuiu mais de 80 mil marmitas para a população do entorno. Pela atuação social, o casal recebeu nesta quinta, 4, o “The Macallan Icon Award”, categoria Pasado y Futuro!, concedido pelo prêmio Latin America’s 50 Best Restaurants 2021.
“O Mocotó tem um papel transformador na região”, diz Adriana, referind0-se também às oportunidade oferecidas pelo restaurante em termos de emprego (com salários acima da média da região) e educação (por meio de bolsas). Sobre o prêmio, Rodrigo se diz surpreso: “Fico até um pouco constrangido por ver tanta gente lutando na mesma causa, tantos nomes que podiam estar listados ali. Mas tem uma mensagem positiva, por mostrar que você não precisa de um orçamento gigantesco para fazer diferença na vida de algumas pessoas”.
A maior parte do financiamento do Quebrada Alimentada, que agora também distribui cerca de 400 cestas básicas por mês, vem do próprio Mocotó. Também há doações em dinheiro ou alimentos, muitas vezes de fornecedores e outros parceiros da casa.
Reconhecido internacionalmente (inclusive com a 43ª posição no ranking Latin America’s 50 Best Restaurants), Rodrigo mantém os pés firmes no lugar onde começou. O que não o impede de caminhar para fora. A base do chef continua a ser o Mocotó, aberto pelo pai dele em 1973. Rodrigo transformou a casa simples, que atendia moradores do bairro, em uma referência gastronômica capaz de atrair foodies de diferentes regiões da cidade (e até do mundo). Hoje, mantém em São Paulo também duas unidades do Mocotó Café e o Balaio, no Instituto Moreira Salles. E agora expande os negócios para os Estados Unidos, com a abertura em Los Angeles do restaurante Caboco – parceria com o restaurateur americano Bill Chait, sócio de estabelecimentos como Tartine Bakery, Bestia, Republique e Otium.
A Forbes Brasil conversou com Adriana e Rodrigo sobre passado e futuro, gastronomia, premiações. Confira trechos a seguir.
Como vocês veem o papel do Mocotó na gastronomia brasileira e na comunidade em que ele está?
Rodrigo Oliveira: O Mocotó é um restaurante improvável. Com o seu formato, a sua temática e o seu contexto, ele destoa do cenário gastronômico nacional e internacional. Se seguir a lista dos 50 (Latin America’s 50 Best Restaurants), há muitos restaurantes parecidos entre si, mas nenhum parecido com o Mocotó. O trabalho que a gente faz aqui mostra que excelência pode ter muitos formatos, e deveria ter muitos formatos. O Mocotó traz pluralidade para o campo da alta gastronomia. Dentro desse contexto de excelência – em que cada ingrediente de uma refeição carrega excelência em si, não importa se é feijão, arroz ou angus -, a gente acolhe um grupo maior e mais diverso do que esse nicho do fine dining consegue acolher. E as pessoas do entorno, da comunidade, se apropriam do Mocotó de maneiras diferentes. Tem gente daqui que usa o Mocotó no dia a dia, vem almoçar ou tomar um caldinho, uma pinga, uma cerveja no final do dia. Tem gente que usa para celebrações especiais. E tem gente que se apropria só para falar do orgulho de estar na mesma comunidade, de ter visto o restaurante crescer e ser celebrado internacionalmente. O perfil do público mudou um pouco, mas as pessoas da Vila [Medeiros] continuam prestigiando e apoiando o Mocotó.
Adriana Salay: Tem uma parte importante que o Rô não falou do papel do Mocotó na comunidade, algo que é da porta para dentro. Há uns quatro anos, a gente fez uma análise de indicadores das pessoas que trabalham no Mocotó em relação a indicadores de pessoas do distrito da Vila Medeiros, que é composto por 13 bairros – 65% das pessoas que trabalham no Mocotó são da Vila Medeiros. A gente tem no Mocotó o dobro do salário médio da região (que na época era de R$ 1.900) e uma escolaridade muito maior – não por selecionar as pessoas por escolaridade, mas porque o Mocotó tem projetos de bolsa de estudos para todos os níveis (fundamental, médio, universitário, pós-graduação e supletivo, além de curso de inglês). Por tudo isso, o Mocotó tem um papel transformador na região. Ele transforma a oportunidade das pessoas de terem uma vida melhor de forma digna, através do salário e da educação.
Continua sendo um lugar inclusivo?
Rodrigo: Sim. Chega um motoboy para tomar um caldinho e beber uma cerveja e chega uma personalidade da TV, um jogador de futebol. Vem uma família do bairro celebrar o aniversário e vem um dono de banco com três, quatro seguranças. Recebemos gente muito diversa. E tem um público cada vez mais importante que é o turista. Gente de fora de São Paulo que vem para o turismo gastronômico invariavelmente passa aqui.
O prêmio que vocês acabaram de receber do 50 Best fala de passado e futuro. Como veem essa relação?
Rodrigo: Essas dualidades fazem parte da identidade do Mocotó: a nossa origem sertaneja e o nosso contexto suburbano cosmopolita; ser um restaurante que preza o local, as suas raízes, mas que almeja criar uma linguagem universal – haja vista todos os prêmios internacionais que a gente ganhou. Ele trabalha também com o balanço muito delicado entre tradição e inovação e, claro, com a questão das gerações, pela minha relação com o meu pai, que é fundamental para o Mocotó ser o que é hoje. O lastro dessa herança paterna está presente e eu sinto que é o que sustenta o Mocotó. Da mesma maneira que eu tenho consciência de que, se não fosse o aporte que eu fiz, junto com o apoio de muita gente, o Mocotó não estaria mais aqui, já teria se desintegrado.
Adriana: Estou estudando fome, meu doutorado é sobre isso, e tenho feito vários trabalhos de análise de projetos de assistência alimentar nesse momento da pandemia. A gente obviamente não inventou a solidariedade. Ela já estava ali. E o que eu tenho observado é que ela já está há muito tempo não em grandes projetos, mas na solidariedade cotidiana entre as mulheres. Essa coisa que parece muito natural de “Estou sem arroz, me dá um pouco de arroz, um pouco feijão”; “Hoje eu não tenho óleo, me empresta óleo”. O livro da Carolina Maria de Jesus, “Quarto de Despejo”, fala bastante sobre essa troca de alimentos cotidiana entre as mulheres. É por isso que eu digo que nem nós nem as grandes organizações que estão distribuindo alimento nesse momento inventamos. Mas, pensando no futuro, eu queria que esses projetos não precisassem existir. É triste estar num país onde mais da metade da população está em alguma situação de fome. Que a gente possa endereçar essa função de alimentar as pessoas para o Estado, já que é papel dele fazer isso.
Rodrigo, você já falou que é importante olhar para o mundo sem esquecer o quintal. Como você está levando o quintal para a expansão internacional? Como é levar a sua raiz para Los Angeles?
Rodrigo: Foi um projeto muito estudado. Começou há mais de cinco anos e efetivamente está sendo construído há quatro. E a gente só embarcou nessa por ter apoio de gente com muito know-how e recurso, um grupo estabelecido. Nossa motivação era testar nosso produto em um mercado ultraexigente e profissional e também a chance de trazer know-how para cá. Mas especialmente a motivação era a chance de mostrar um Brasil moderno, viável, colorido, gostoso, provocativo. A gente está no bom caminho. Tivemos ótima repercussão na mídia e no público, com casa cheia desde a abertura. O Brasil merece, sim, um lugar na cena internacional de cozinha, inclusive contribuindo com essa cena.
Vocês compraram uma terra e já estão produzindo lá. Qual é o plano?
Adriana: É o novo filho do Rô.
Pai: Só que nesse caso eu sou a mãe. É uma propriedade em São José dos Campos (SP) que estava abandonada há dez anos, na beira da represa, na zona norte da cidade. Mais um sinal. Foi um achado. Estamos há um ano lá. São 16 alqueires, um terço dessa área de mata preservada. A ideia sempre foi criar quase uma extensão do restaurante. Porque a verdade é que aqui a gente não faz comida, a gente processa comida, mistura coisas. A gente queria estar mais perto da terra e aplicar um pouco da nossa visão na agricultura. Já tem duas estruturas montadas produzindo, uma dedicada a tomates, começando a colher agora, outra com hortaliças que a gente já que colheu. Foi muito experimental, então a gente dividiu com o restaurante e com a Quebrada Alimentada e especialmente com as nossas pessoas. Uma vez por semana a gente fazia uma feira, gratuita, em que as pessoas iam pegando e levando para casa e sentindo o gostinho desse projeto. É tudo orgânico, nossa certificação deve sair em novembro. E ideia é que a gente crie vivências, além de alguns cursos [voltados para a comunidade].