Queijos artesanais, sofisticados e elaborados com a mais refinada matéria prima, o leite de qualidade, é um produto que tem ganhado espaço na mesa do consumidor brasileiro. Mas como saber qual o mais saboroso, o mais aromático, o de melhores características sensoriais e de composição química? Acredite, queijo tem até som, um som à percussão ao batimento da mão. Um queijo pode estar entre os azuis, os brancos e frescos, os macios e suaves, de média cura ou com bastante cura. E mais, pode ser um queijo autoral, em vez de um tipo gorgonzola, colonial, minas, entre outros.
Para desvendar esse mundo que começa no campo e termina nas mãos dos apreciadores de queijos artesanais, começou no dia 15 e vai até amanhã (18), o Mundial do Queijo Brasil 2022, em São Paulo, para avaliar e premiar 1.130 produtos, sendo a quase totalidade de queijos, com alguma presença de manteiga, iogurte e até doce de leite.
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No final da tarde de ontem (16), depois de um dia inteiro de avaliações, foram anunciados os dois ganhadores do prêmio máximo, a categoria super ouro. Com a presença de queijeiros da Bélgica, França, Itália, México, Inglaterra, EUA, Espanha, Portugal, Panamá e Suíça, o primeiro lugar ficou com um produto belga. Mas, a segunda posição entre os melhores queijos do concurso ficou com o Capril do Bosque, no município de Joanópolis (SP), da produtora de cabras Heloísa Collins, 72 anos, que desde 2010 vem transformando sua queijaria em um laboratório de sabores.
A professora e doutora em microbiologia pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), Cristina Zaffari Grecellé, médica veterinária que atua no segmento de laticínios há duas décadas, e que foi uma das juradas do Mundial do Queijo do Brasil, diz que nos últimos cinco anos – “talvez não mais que 7 ou 8 anos”, afirma –, o setor queijeiro artesanal do país tem dado saltos espetaculares em qualidade. A Forbes conversou com ela para entender esse movimento queijeiro e sua maturidade atual.
O Mundial do Queijo do Brasil, que acontece pelo segundo ano consecutivo, e que neste ano veio com duas novidades, o 1º Concurso de Melhor Queijeiro do Brasil e o 1º Concurso de Melhor Queijista do Brasil (comerciantes, chefs de cozinha e profissionais da cadeia), vai apresentar na tarde de hoje os ganhadores dessas premiações e também as categorias ouro, prata e bronze do mundial. Confira a entrevista:
Forbes: Qual a primeira impressão desse mundial, logo que começou as avaliações?
Cristina Zaffari Grecellé: Vimos nos queijos do Brasil muito profissionalismo e de nível elevado. É gratificante para toda a cadeia entender que o país entrou nesse ciclo que, até então, era um mundo de outros países. Neste mundial, a gente tem heterogeneidade de pessoas com informações diferentes, de etnias diferentes e com vieses técnicos diferentes.
Forbes: Como é o ritual de uma avaliação de queijos?
Cristina: O primeiro ponto é entender a diferença entre um avaliador, que é uma pessoa que faz análise sensorial, e um degustador que come um produto e avalia se gosta, ou não. O avaliador precisa de conhecimento técnico e científico de repetição, para fazer um juízo sensorialmente sem descaracterizar um produto, porque é necessário julgar o mérito independentemente do gosto pessoal.
O segundo ponto é a análise sensorial, propriamente dita, que é o visual, a estrutura do produto. É como o queijo se comporta e ao que se propõe em consistência, sabor e aroma. Em geral, os queijos são julgados por mais de um juiz, que podem trabalhar sozinhos ou em conjunto, com as notas em fichas. A depender desses critérios, algumas avaliações sensoriais são mais longas, principalmente quando os jurados precisam entrar em consenso.
Forbes: Em um concurso, é possível avaliar não somente o talento, mas, pelo nível do queijo, visualizar o que está por trás do produto?
Cristina: Sim, a análise sensorial permite isso. Normalmente, ao final da avaliação de cada item do queijo, a gente consegue dar um feedback para o produtor e identificar alguns desafios que podem estar prejudicando o desempenho do queijo. O que não podemos é dar impressões muito genéricas. A gente escreve na ficha, quando visualmente ou sensorialmente, se identifica algo que é marcante. É uma recomendação, porque a gente acredita que, além de melhorar o produto, muitas vezes esse é único contato do produtor com o avaliador, porque a avaliação é sempre às cegas.
Forbes: Em que estágio se encontra esse universo de concursos queijeiros no Brasil?
Cristina: Esse mundo vem de uns anos para cá – nos últimos cinco anos ou oito no máximo, não mais que isso. Isso é visível. Primeiro, vieram as ações para estimular concursos, com os produtores cada vez mais entendendo como participar e que as medalhas poderiam trazer mais valor aos queijos, ajudar na promoção e no marketing.
O segundo aspecto é o nível tecnológico, quando se começa a avaliar o Brasil como produtor de queijo. Principalmente nos queijos artesanais autorais e mais tradicionais. Tem uma revolução queijeira acontecendo no Brasil, nos últimos 10 anos. Começou pelo queijo minas e foi indo para outros estados, onde há produtores de pequeno e médio portes, familiares, que começam a se formalizar e ir para o mercado. E o consumidor urbano começa a gostar disso, principalmente aquele que não conhecia o produto artesanal.
Forbes: O leite do Brasil é bom para queijos artesanais?
Cristina: De uma forma geral vem aparecendo produtos melhores. O Brasil tem leite de vaca cruzada, o da vaca holandesa, o da vaca gir, o da jersey, e tem os caprinos e ovinos. Não falo da produção em escala, mas o leite para o queijo artesanal tem melhorado, com ressalva para ovinos e caprinos. Ainda necessitam de uma melhoria tecnológica, embora tenham produtos muito bons no mercado.
Forbes: O que falta nessa corrida de amadurecimento do mercado?
Cristina: Ainda há uma necessidade de melhoria da equação entre criação, volume e escoamento do produto brasileiro. Também falta, de forma geral, uma educação para o consumo. Com queijos, por exemplo, de cabra e ovelha – mas principalmente de cabra – o consumidor dos grandes centros não está acostumado. Então, o primeiro momento é melhorar a educação do consumidor.
Concomitantemente, melhorar as tecnologias para o leite. O Brasil precisa entender os dois grupos de vacas leiteiras: as europeias e as cruzadas [com zebu]. Que isso traz modificações não só no sabor, mas na estrutura e no rendimento. Mas não tem nenhum problema porque, na verdade, a gente tem de produzir com vaca adaptada para a região onde vive, porque do contrário não vai dar certo.
Forbes: O brasileiro já se deu conta disso, ou ainda é um conhecimento do campo?
Cristina: Para quem acompanha sim. Porque não é só volume de leite, mas ele precisa ter na sua composição o extrato seco, senão não se produz queijo, além de ter a caseína e a gordura de qualidade. O Brasil rural já tem uma evolução significativa para entender o produto local.
Forbes: Daria para dividir em agrupamentos os mais de 1.000 queijos avaliados no mundial?
Cristina: Tomando somente os queijos, a grande predominância foi o que consideramos os de média maturação, que não são frescos. Vimos pouco queijo frescal, aquele que não matura e já vai para mesa. A média maturação é aquela que vai de menos de 20 dias e, dependendo de como a massa é cozida, pode ir a 30 dias. E há esse movimento de queijos autorais. Isso é uma tendência brasileira que eu, particularmente nas minhas consultorias, estou dando muita força. Porque aí o produtor sai da exclusividade da produção do tipo, que é importante na cadeia, mas ele vai além.
Forbes: Pode se dizer que o Brasil está entrando na era dos queijos autorais?
Cristina: Hoje, sim, o Brasil começa a entrar numa era de queijos autorais. O produtor tem o queijo de média maturação e longa maturação, mas é o queijo da sua queijaria. Tem o período de maturação curta, longa e média, e ele testa o produto em vários períodos, do seu jeito. O queijo é daquela região, com aqueles animais, naquela pastagem, com aquele sistema de produção que confere determinadas características. Eu não tenho como fazer esse queijo em outro lugar.
Forbes: O tipo então está fadado ao fim, nesses nichos de produção artesanal?
Cristina: Não está errado fazer tipo e temos que continuar a fazer o tipo gorgonzola, parmesão, entre outros. Mas, na comparação, o produtor já sai perdendo, por exemplo se ele faz um gorgonzola. Particularmente, converso muito com os queijeiros que produzem uma linha mais geral – que trabalham com queijo frescal e até mesmo uma muçarela – que trabalhem também com algum queijo autoral.
Forbes: Como se começa a produzir um queijo autoral?
Cristina: Um potencial para o autoral é ter o rebanho de vacas melhorado e com boa nutrição. Ajustar a ordenha, porque não é preciso levantar às 3 da manhã, depois de te ido deitar à meia-noite. Além de cuidar da estrutura, e não estamos falando de grandes instalações. Arrumar prateleiras, utensílios, organizar o fluxo, até por questões sanitárias. E manter o hábito de registrar até as pequenas coisas que acontecem, como uma temperatura errada. Aí o produtor vai entender e começar a avaliar o que faz. Isso é ser autoral: tira um ingrediente, coloca outro, vai formando na queijaria o seu queijo clássico. Quando esse produtor ganha um concurso, ele coloca o reconhecimento no rótulo e consumidor gosta disso.
Forbes: O Brasil nunca vai ser uma França, Bélgica e outras mecas do queijo?
Cristina: Quando a gente fala em produto queijo, se fala mesmo desses países. Trouxemos muitas coisas de lá, porque não temos uma extensa tradição queijeira e nem vamos ter naqueles moldes, a começar pelo frio, pelo tipo de animal e estrutura de produção e venda. Esses são países pequenos, o Brasil tem grande território e um desafio logístico importante. Como transportar uma exclusiva produção da Ilha do Marajó para ser vendida em São Paulo?
Mas isso acontece dentro de um movimento que a gente considera jovem perto de outros países, e o Brasil está a passos largos. Além disso, tem uma característica do povo brasileiro, que é a de melhorar com garra, de se desafiar. Talvez, o ponto mais importante é que tem mais jovens na produção, na faixa dos 40 anos, aqui do que lá fora e isso é um grande diferencial. Aqui, a gente tem andado mais rápido e isso, sim, podemos comparar com o mundo. Estamos numa revolução nas associações familiares, nas propriedades rurais, com filhos entrando na produção com uma cabeça de mundo. Estão indo para Nova York, mas com os pés em Minas, São Paulo e por todo o Brasil. Eles estão criando e dando valor para que a cadeia do queijo continue crescendo.