A contínua e persistente expansão da agricultura brasileira pode significar que os Estados Unidos terão de disputar com o Brasil, mais frequentemente, a coroa de maior exportador global [de milho]”. Assim termina a análise do Grain: World Markets and Trade, boletim do mês de fevereiro elaborado pelo USDA (Departamento de Agricultura dos EUA), sobre a quase certeza de que em 2023 o Brasil tem potencial para fechar o ano com vendas externas acima das norte-americanas, o que na história ocorreu uma única vez – na safra 2012/13, em consequência de uma severa seca no meio-oeste americano. Para este ano, o USDA prevê exportações próximas de 50 milhões de toneladas em ambos os mercados.
Em 2022, o Brasil exportou 43,3 milhões de toneladas de milho, por US$ 12,1 bilhões. Mas as exportações são apenas parte do que ocorre com o mercado do cereal no Brasil, do campo à agroindústria, passando pela pesquisa e organização do setor. A produção estimada na safra 2022/23 é de 126,6 milhões de toneladas, segundo a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), seis vezes maior do que na década de 1980 e recorde histórico. No Mato Grosso, que neste início de junho começou a colheita da segunda safra e é o maior produto do grão no país, os ânimos são latentes para o volume, embora as cotações venham sob pressão.
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Na década de 1990, o milho começou a ganhar relevância, e avançar, com produções acima de 20 milhões de toneladas colhidas, tirando o Brasil da posição de importador para a autossuficiência do cereal. Dez anos depois, já era um exportador de expressão. O país é o único no mundo que consegue fazer até três safras da cultura em um único ano: a primeira safra de verão, a segunda safra em geral depois da soja, no Centro-Oeste, e uma terceira ainda em construção, por meio da irrigação.
“O milho é o grão mais democrático que existe”, diz o produtor paranaense Paulo Bertolini, de 55 anos. “Acho que nos mais de 5 mil municípios do Brasil é possível encontrar milho para exportação, para o mercado interno, na ração animal, para o etanol e na alimentação humana. Até a pamonha das pequenas cidades é negócio de milho cultivado quase no quintal.”
O milho entra em inúmeras formulações inimagináveis para o público de fora do agro: medicamentos (a penicilina é um deles), plásticos, papel, pneus, tintas, baterias elétricas, cosméticos, adesivos, rótulos, tecidos, graxas, resinas, produtos de limpeza, fogos de artifício e até na cabeça de um palito de fósforo. O milho também entra em subprodutos da extração de petróleo, no beneficiamento de minérios e na fundição de peças de metal.
Bertolini, ao lado do irmão Marcos, é dono do grupo paranaense Colpar, com sede no município de Castro, um conglomerado de cinco fazendas de agricultura, com cultivo de milho e soja – em que, dos cerca de 2,5 mil hectares, 50% são de milho para alimentação humana, com produção de 12 toneladas por hectare, um índice espetacular. A família também tem pecuária, com criação de nelore e angus, mais o processamento de 1,5 milhão de toneladas de calcário agrícola por ano e uma agroindústria de milho, a cerealista Brotas, em Piraí do Sul, a 30 quilômetros de Castro, que, junto com outros agricultores da região, destina 40% da produção para fabricar Doritos, as famosas tortillas lançadas em 1964 no mercado norte-americano. A marca hoje pertence à Pepsico e está entre os snacks mais consumidos no mundo.
O produtor também faz parte da diretoria da Associação Brasileira dos Produtores de Milho (Abramilho), criada em 2007, e foi presidente, em 2022, da Maizall (The International Maize Alliance, ou Aliança Internacional do Milho), entidade que representa no mundo os três maiores exportadores globais do cereal. Ano a ano, a cadeira muda de mãos, que agora está com a Argentina, vai para os EUA em julho e em 2024 retorna ao Brasil.
Os argentinos exportam cerca de 55 milhões de toneladas e os EUA já bateram, em anos passados, 70 milhões de toneladas vendidas, além de serem o maior produtor global, com cerca de 380 milhões de toneladas colhidas. Mas o que faz o Brasil, então, sentar-se à mesa com seus principais concorrentes? “Os três países são responsáveis por 50% da produção mundial, e, com a guerra na Ucrânia, têm 80% do comércio internacional”, justifica Bertolini. “A gente se juntou lá atrás por uma pauta comum e bastante importante, basicamente para normativas de regulamentação visando aos mercados consumidores, principalmente em relação a eventos de biotecnologia.”
Por exemplo, as aprovações de milhos transgênicos ou convencionais, métodos de segregação, resíduos máximos, defensivos permitidos, entre outros. “A ideia é trabalhar com os países para que a decisão de compra seja marcada pela ciência, e não pela política.” Foi justamente ela, a ciência, que tirou o Brasil de uma produtividade de 2 toneladas de milho por hectare, no fim da década de 1980, para 5,6 toneladas por hectare, estimadas na safra 2022/23.
Isso como média nacional, porque o topo da pirâmide tecnológica consegue produzir até quatro vezes essa média. Vai das fazendas altamente tecnificadas, como ocorre com as de Bertolini, porém de médio porte, até as gigantes do agro. Dificilmente um grande produtor de soja e algodão também não é expressivo no milho. Entre eles, SLC Agrícola, Grupo Bom Futuro, Amaggi e Grupo Scheffer, todos com grandes áreas em Mato Grosso. O Bom Futuro, por exemplo, controlado pela família Maggi Scheffer, tem cerca de 580 mil hectares cultivados, incluindo soja e algodão, e planta em torno de 100 mil hectares de milho, com produção na faixa de 630 mil toneladas, como mostra a empresa em suas apresentações públicas.
Não foi por acaso que o Brasil se tornou o terceiro maior produtor de milho do mundo, atrás de EUA e China, esta com cerca de 270 milhões de toneladas que servem para abastecer seu gigante mercado interno. Mesmo assim, a China é um dos maiores importadores globais: no ano passado, foram despachados para lá 28,4 milhões de toneladas, dos quais 1,16 milhão saíram do Brasil após o país asiático liberar, em 2021, as compras do cereal – que antes estavam fechadas por questões fitossanitárias e de transgenia, as mesmas abordadas pela Maizall.
A ciência do milho
Foi por causa da ciência, da pesquisa e da tecnologia que os produtores saíram de uma área de plantio de 12 milhões de hectares na década de 1980 para 22 milhões de hectares na safra 2022/23, ou seja, apenas dobrou, enquanto outros índices triplicaram ou quadruplicaram. Nessa tríplice corrida, as grandes multinacionais, como Basf, Bayer, Syngenta e Corteva, donas de espetaculares centros de inovação, não estão sozinhas.
“Na inovação aberta, a disputa é com as gigantes globais – e as tecnologias avançam, embora seja necessário esperar pelos ciclos da natureza”, afirma Fernando Prezzotto, fundador da agtech Sempre, de Chapecó (SC), que começou atuando na área de híbridos de milho, avançou para a genética e criou a WIN (World Innovation), uma nova unidade de negócios de pesquisa e desenvolvimento. No fim de janeiro, ele anunciou que está investindo R$ 190 milhões em recursos próprios, nos próximos dois anos. “Não adianta ter pressa, porque a agricultura vai por safras”, diz ele. “O milho é um híbrido, e sua genética é como se fosse uma chave criptografada.”
Na maneira clássica do melhoramento genético, é cruzando planta com planta que se chega a uma nova cultivar, aos híbridos tolerantes ou resistentes a certas pragas e doenças ou ao estresse hídrico, por exemplo. Mas hoje, na corrida das biotecnologias e no caso da Sempre, termos como GMO ou transgênico se juntam à edição gênica e RNA de interferência, tarefa no topo da cadeia científica.
“RNA de interferência é a mesma tecnologia da vacina da Pfizer contra a covid. Ela impacta o ser humano e impacta as plantas”, afirma Prezzoto. “E no milho estamos trabalhando com plantas primitivas, em busca de características positivas: que elas próprias façam de forma natural a fixação do nitrogênio no solo, por exemplo. Temos algumas que chegam a 80%.”
Fixar nitrogênio, que tem função fertilizadora, leva o produtor a economizar com tratos na lavoura. Vale registrar que o Brasil é o quarto maior consumidor de fertilizantes nitrogenados do mundo. A vontade dos produtores em fazer suas lavouras produzirem cada vez mais e com sustentabilidade pode levar o país em 2030 a 150 milhões de toneladas de milho colhidas por safra.
Glauber Silveira, produtor rural e diretor-executivo da Abramilho (Bertolini é tesoureiro) diz que, por ora, não consegue ver o Brasil disputando o posto de maior produtor mundial de milho. “Hoje, o país planta somente 10% de tudo o que é cultivado no mundo, mas se tornou um grande exportador e passou a protagonista”, afirma Silveira. E pode incomodar ainda mais na exportação, porque a China produz para ela mesma, os EUA estão engessados no atual patamar e os demais países que podem competir, como a Argentina, não têm terras.
“É possível imaginar o Brasil colocando mais 100 milhões de toneladas de milho no mercado”, acredita Silveira. “E daqui a 20 ou 30 anos, o que hoje parece longe, que são os 380 milhões de toneladas dos EUA, pode ser uma realidade por aqui”, diz Silveira. “Você já imaginou as imensas áreas de pastagens degradadas produzindo? O milho vai estar nelas também.”
* Reportagem originalmente publicada na edição 105 da Revista Forbes, que pode ser acessada pela APP ou impressa.